Bamiyan é um vale como outros
tantos vales no centro do distante Afganistão. No ceu centro, uma pequena
vilazinha à beira da estrada que liga Herat, na fronteira com Iraque, à capital
Kabul. Seguindo em direção ao Oriente, depois de Kabul, a rota segue, para o
sul, em direção a Islamabad, já no Paquistão e mais adiante, para a Índia. Ou
então, de Kabul, outra alternativa é pender para o Norte e, transitando entre os vales que separam o Tibet
de Xingiang, chegar até a China, o Império do Centro. É a Rota da Seda que,
durante milênios, fez a conexão entre o Oriente e o Ocidente. Marco Polo, no
final do séc. XIII e início do séc. XIV, fez o percurso e tornou-o conhecido no
mundo mediterrâneo. Hoje, a China, em seu anseio de firmar-se como liderança
econômica mundial, está reconstruindo a Rota da Sede não mais com camelas,
mulas e cavalos mas com modernos sistemas de transporte ferroviário, rodoviário
e naval.
Voltando a Bamiyan... O que torna
este vilarejo tão importante e tema deste nosso texto é que, nas encostas dos
vales que a circundam, estavam as famosas estátuas dos Budas gigantes de
Bamiyan. A maior das duas tinha 54 metros de altura. A outra, 36 metros.
Escavadas dentro das cavernas, sua construção teve início no séc. VI quando a
região era ocupada por dezenas de mosteiros budistas. No ano de 630, um chinês
budista que passou pelo local descreveu-as como “decoradas com ouro e pedras
preciosas”. Com o passar do tempo e a destruição dos mosteiros pela invasão
árabe do séc. VIII, o ouro e as pedras preciosas foram levadas para o tesouro
de alguma corte da região e só resistiram os Budas de pedra impávidos em suas
cavernas dominando a região habitada pelos pashtuns
e alternadamente dominada pelos impérios persa, árabe, turco e, finalmente,
de 1830 a 1919, pelo Império Britânico. Com a saída dos britânicos, a região
viveu décadas de instabilidade até que, em 1978, um golpe militar, apoiado pela
então União Soviética, instalou uma república socialista no Afganistão.
Em plena Guerra Fria, o novo
governo foi visto pelos Estados Unidos como uma ameaça para seus interesses na
região. Com o apoio do Paquistão e da Arábia Saudita, o serviço secreto
norte-americano começou a arregimentar, treinar e municiar grupos de opositores
ao novo governo pró-soviético. Para dar-lhe coesão ideológica, fez recurso ao
fundamentalista islâmico sunita. Nasceram assim os talibãs ou mujahidin.
Traduzidas, estas duas palavras significam estudante
ou guerreiro santo. Professando uma
interpretação literal do Al Corão, financiados, armados e assessorados pelos
Estados Unidos, lançaram-se à luta para expulsar os invasores soviéticos e seu
regime ateu e construir um Emirato Islâmico na região. A operação foi a mais
cara da Guerra Fria norte-americana e concluiu com a derrocada, em 1997, do
governo pró-soviético e a instauração do Emirado Islâmico do Afeganistão. Nele,
os estudantes do livro impuseram a sharia como legislação reguladora de
todas as instâncias da vida do país. E, como manda a sharia, toda representação humana ou divina, deveria ser destruída.
Entre estas representações, a mais simbólica, os Budas gigantes de Bamyian,
tornaram-se alvo dos talibãs.
Os apelos da UNESCO e a pressão
diplomática dos países ocidentais não foram suficientes para demover os
guerreiros. Pelo contrário, tal ato tornou-se, para eles, simbólico do seu
poder e de sua autonomia ante os antigos mestres. Para financiar a compra de
armas não mais necessitavam de ajuda americana. O comércio do ópio lhes fornece
os recursos de que precisam. Em março de 2001 as duas gigantescas estátuas
foram transformadas em disformes blocos de pedra pela explosão de centenas de
quilos de dinamite. Tudo filmado e disponibilizado na internet. Era o fim das
estátuas dos Budas gigantes de Bamyian. O governo norte-americano lamentou o
episódio mas foi incapaz de reconhecer que aquela barbárie só se tornou
realidade porque, na década anterior, havia colocado armas na mão de
fundamentalistas religiosos que, ao darem-se conta de seu poder, não mais
obedeciam às ordens de seus antigos patrões e resolveram continuar o seu
percurso fundamentalista independentes de seus antigos tutores.