Qual a relação entre a cifra de cem
mil mortos pela COVID19, o assassinato por sufocamento de um homem negro nas
mãos de policiais brancos em Minneapolis e o envio ao espaço pela SpaceX de um
foguete tripulado?
Os três fatos aconteceram nos Estados
Unidos. Todos os três, no curto intervalo de uma semana. Todos ocuparam espaço considerável
na mídia internacional. E, como não poderia deixar de ser, no noticiário brasileiro.
Um comentarista televisivo ressaltou a importância do lançamento do Dragon
Crew: possibilitar que, em um futuro muito próximo, qualquer pessoa possa
viajar para o espaço. E concluiu sorridente: “Reserve já o seu bilhete!”
Fiquei pensando cá comigo: Será que
George Floyd, o homem negro que foi sufocado pelos policiais brancos, já teria
ele reservado seu bilhete para um passeio espacial a bordo da cápsula do Elon
Musk?
Será que os cem mil cidadãos norte-americanos que morreram de COVID19 também já
haviam comprado seu bilhete para a viagem orbital?
Na certeza de uma resposta negativa
me pergunto: que país é esse que se permite o luxo de programas de turismo
espacial privado financiado com dinheiro público, enquanto cem mil cidadãos
morrem por uma “gripezinha” e a lei e a ordem treinam policiais brancos para
assassinar homens pretos que se sublevam contra mais um dos tantos atos de
racismo institucionalizado?
Esse país é o líder da civilização
ocidental. Líder econômico, político, cultural e moral. Se assim é a liderança,
o que não seria dos que por eles se deixam liderar? O neo-racismo brasileiro
está passando da versão “democracia racial” para a simbólica supremacista da Ku
Klux Klan com suas túnicas brancas em marchas noturnas à luz de tochas. E não é
numa cidadezinha do Alabama. É em frente ao Supremo Tribunal Federal. E nada
acontece... Assim como nada acontece com aqueles que, no mesmo colonialismo
racista, vêm a público brindar com copos de leite....branco! Já as forças da
lei e da ordem executam o lado prático: de cada cem pessoas assassinadas pela
polícia, oitenta são negros. Proporcionalmente, superamos os Estados Unidos.
Assim como, em breve, sempre proporcionalmente, também superaremos os Estados Unidos
no número de mortos pela COVID19. E, coisa que nos Estados Unidos nunca
aconteceu: temos, no Brasil, um astronauta como Ministro da Ciência e
Tecnologia. Sua maior habilidade: vender travesseiros de uma marca fake que
imita o nome da Agência Espacial Norte-americana.
O Ocidente está doente. O Brasil
está febril. E não é apenas a COVID19 que nos enfraquece. É a nossa civilização
que perece. Foi pro espaço. Foi pro
brejo. Precisamos urgente de uma vacina contra o coronavírus. E de anticorpos
de sensibilidade, empatia e solidariedade para enfrentar a doença do racismo,
do egoísmo e da desumanidade.
Que a Festa da Santíssima Trindade, o Deus-Amor que é
comunidade, nos inspire e fortaleça na conversão da cultura e da sociedade.
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Guimarães
Rosa, em seu clássico “Grande Sertão Veredas”, colocou na voz de Riobaldo uma
frase que lembra o trágico da vida. Diz o cangaceiro: “Viver é muito perigoso:
sempre acaba em morte”. Parece óbvio. Mas o óbvio, quando pensado, choca. Todos
os que estamos vivos, um dia morreremos. Como? Não sabemos. Quando? Também não.
Cada ano, cada mês, cada dia, cada hora, cada minuto, cada segundo, pode ser o
instante de nossa morte. Por isso, segundo ele, a vida é uma “travessia perigosa,
mas é a vida”.
Mas
há algo mais que o simplesmente viver. Segundo o filósofo da caatinga, “o mais
difícil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber
definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”. Se bem entendi
a frase, o desafio é estabelecer a relação entre o que somos, o que queremos
ser e o sentido que damos àquilo que vivemos. O que estabelece a coerência
entre os três elementos – ser, querer ser e dar sentido ao viver – é a palavra.
Por isso, se “viver é muito perigoso”, falar também é algo que precisa ser
feito com muito cuidado, pois também pode ser muito perigoso.
Martin
Heidegger, com toda a seriedade da filosofia alemã, dizia o mesmo que Riobaldo:
“A linguagem é a morada do ser”. É ela que nos permite sair da inércia das
coisas e passar a sermos no mundo junto com os outros compreendendo o sentido
da própria existência e da vida dos que conosco caminham perigosamente entre a
vida e a morte.
Fernando
Pessoa afirma que a nossa verdadeira pátria não é um território ou um Estado.
Nossa Pátria é a Língua que falamos. Dizia ele não chorar por nada que a vida
trouxesse ou levasse. Mas odiava a escrita mal feita, errada, criminosa, que
deturpa “a palavra que também é gente”.
Atrevo-me
a acrescentar à frase do poeta luso um artigo definido feminino singular: “a
palavra que também é a gente”. Faço
isso pensando numa altercação de Jesus com os fariseus onde ele, tomado de
raiva, os desafia: “Raça de
víboras, como podem vocês, que são maus, dizer coisas boas? Pois a boca fala do
que está cheio o coração. Mas eu lhes digo que, no dia do juízo, os homens
haverão de dar conta de toda palavra inútil que tiverem falado. Pois por suas
palavras você será absolvido, e por suas palavras será condenado”.
Para Jesus, são as palavras que
pronunciamos as que revelam o espírito que habita em nosso interior. Se é o
Espírito de Deus ou o espírito do diabo. Para saber quem é uma pessoa, basta
estar atento às palavras que saem de sua boca e, como dizia Riobaldo, ir “até o
rabo da palavra” para descobrir a casa e a pátria em que essa pessoa mora.
De fato, falar, assim como viver, é muito comprometedor.
É uma travessia perigosa. Mas essa é a vida!
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Há
muitas formas de sair de cena. Há aquela bem educada em que se pede licença,
despede dos presentes e toma o rumo da porta abanando para os que ficam.
Há
a saída à francesa: de fininho, sem
que os presentes se deem conta. Pode ser falta de respeito. Ou pode significar
discrição, desejo de não atrapalhar a alegria e a festa que segue.
Há
a saída estrepitosa daquele que sai causando.
É o correlato do chegar chegando,
fazendo barulho, chamando atenção para ser notado e se impor aos demais.
Também
há a saída forçada, não desejada, resistida, daquele que quer ficar, mas é
expulso, jogado para fora, de forma violenta ou com subterfúgio. E há a saída
disputada em que alguns querem que a pessoa permaneça e outros querem excluí-la.
E
há a saída não realizada, a saída incompleta, não acabada, inconclusa, não
finalizada em que a pessoa que sai, mesmo que não mais esteja, continua
presente. E, se procuramos por ela, mesmo que não a vejamos, sabemos que aí
está. Esta é a saída mais dolorosa. É a que mais dói porque nunca termina. É
uma saída no particípio presente. Essa forma verbal que na língua portuguesa
deixou de ser ação e passou a ser qualidade da qual ninguém pode desimpregnar a
quem foi com ela marcado.
É
a saída dos mortos que nunca morrem. Seja porque não pudemos deles nos despedir
de forma digna e respeitosa, como acontece hoje com os mortos por Covid19,
subtraídos ao carinho e pranto dos familiares e amigos antes mesmo do último
suspiro e enterrados às pressas em uma vala anônima. São os povos indígenas
que, desde a chegada dos europeus até hoje, continuam sendo desaparecidos
contra a sua vontade e, para não deixar em paz a consciência dos que os matam,
continuam teimosamente a resistir com sua incômoda presença. Ou os presos,
torturados e mortos pelas ditaduras e que tiveram seus corpos desaparecidos,
mas sua memória está viva naqueles e naquelas que seguem seu sonho de uma
sociedade justa, fraterna e feliz.
E
há os mortos que nunca morrem porque sua existência foi de tal modo intensa que
já não cabia somente neles. E a vida que eles carregavam e repartiam se
expandiu e tomou conta de todos aqueles e aquelas que com eles tiveram a graça
de conviver.
É
dessas vidas que dizia Dom Oscar Romero: “Se me matam, ressuscitarei na vida do
povo”. Não era uma frase vã ou pretensiosa. Pelo contrário: era o humilde
reconhecimento de que, aquele que foi morto, ressuscitou e já não está presente
como antes, continua vivo no meio de nós. Ele subiu aos céus, mas sua presença
esperançadora é maior e mais forte que todas as ausências. E Sua vida, que vive
em nós, nos impulsa a seguir fazendo o que Ele fez.
Conta
a lenda que o Oráculo de Delfos, consultado sobre quem seria o homem mais sábio
de Atenas, anunciou que este atributo correspondia ao filósofo Sócrates. Este,
ao ser informado do vaticínio divino, serena e calmamente respondeu: “Só sei
que nada sei!” Todos ao redor ficaram abismados. Estaria Sócrates desprezando a
voz dos deuses? Calmamente ele explicou a seus ouvintes que, a consciência da
própria ignorância, é o primeiro passo para a busca do verdadeiro conhecimento.
Segundo ele, aquele que está convencido de que já conhece tudo, não vê motivo
para inquietar-se em buscar a verdade e afunda-se em sua orgulhosa escuridão.
Naquela
mesma época, na Palestina, um grupo de homens recolheu e colocou por escrito a
sabedoria popular do povo judeu. Nasceu assim o livro dos Provérbios que está
na Bíblia. Nele, encontramos frases fantásticas sobre a sabedoria e a
ignorância. Uma delas é quase igual à de Sócrates: “Quem é sábio procura aprender,
mas os tolos estão satisfeitos com a sua própria ignorância”. Outra diz: “O
tolo pensa que sempre está certo, mas os sábios aceitam conselhos”. E ainda
outra: “Aquele que quer aprender gosta que lhe digam quando está errado; só o
tolo não gosta de ser corrigido”.
Nestes
tempos em que assistimos a verdadeiros shows de tolos nas portas dos palácios,
nas praças, nos púlpitos das igrejas, nos microfones e câmeras de rádio e
televisão e nas inúmeras telas das múltiplas redes sociais que tomam conta de
nosso cotidiano, estas frases convidam a pensar sobre o valor do silêncio que
busca a verdade.
Sobre
os gritões de verdades que não existem e que insistem em mentir para si mesmos
e para os outros, bem lembra o mesmo Livro dos Provérbios: “A pessoa prudente
esconde a sua sabedoria, mas os tolos anunciam a sua própria ignorância”.
O
dramático é que, o amor pela mentira, como lembrava recentemente o Governador
do Rio Grande do Sul, vem sempre acompanhado pelo desprezo à vida. Já o Livro
dos Provérbios afirmava: “Quem procura ter sabedoria, ama a sua vida”. E,
acrescentamos nós: o ignorante se apega à mentira, e com isso, acaba com a
própria vida e destrói a vida dos outros. Por ação ou por omissão, a mentira
como opção, é sempre culpável.
Para
resistir à opção ignorância é preciso contar com o Espírito da Verdade que
habita em cada um de nós e nos faz defensores da vida. E, por Sua força, ter a
ciência primeira de nossa própria ignorância e de nossa finitude que nos fazem
rezar com o Salmo 90: “Faze que saibamos como são poucos os dias da nossa vida
para que tenhamos um coração sábio”.
Que
Deus nos dê sabedoria para defender a vida dos outros e assim prolongar
eternamente a nossa própria existência.
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ACESSE AQUI o áudio desta reflexão que pode ser livremente utilizado.
Falar de Deus é algo temerário. Por
mais que nos esforcemos para escolher as palavras, sempre podemos dizer algo
inadequado a seu respeito. Nunca temos a palavra exata e completa para dizer
quem Ele é.
O melhor caminho para não calar – já
que quem experimenta Deus quer sempre comunicá-lo aos outros – é o uso de
metáforas. Através de algo que nos é familiar, tentamos dizer a realidade
divina que transcende à capacidade de nossas palavras.
Na tradição judaico-cristã, uma das
metáforas para dizer quem é Deus, é a da figura do Pai. Dizemos que Deus é Pai.
Mas não é pai no sentido da paternidade humana. Mas, a partir da paternidade
que todos, como pais e/ou como filhos, experienciamos, podemos dizer algo a
respeito de Deus.
Mas a metáfora do Pai não é a única
possível. Há muitas outras. Entre elas, está a metáfora da mãe. Na Bíblia,
várias vezes, Deus é designado com figuras femininas. O próprio Jesus as
utilizou. Ele comparou Deus e seu reino com a mulher que faz pão. Comparou
também com a mulher que varre a casa para achar a moeda perdida e, quando a
acha, faz festa com as amigas e vizinhas. E se comparou a si mesmo com uma galinha
que, para proteger seus pintinhos, os quer esconder sob suas asas.
Existe outra passagem em que Jesus
revela o rosto materno de Deus. Na chegada a Jerusalém, num momento de muita
tensão entre os discípulos e do conflito de Jesus com as autoridades judaicas,
ele diz aos que o seguem: “Na casa de meu pai há muitas moradas; se não fosse
assim, eu vo-lo teria dito. Vou preparar-vos um lugar.”
Leiamos esta frase a partir da
experiência de filhos. Nos momentos de dor, sofrimento, tensão, desesperança...
para onde corremos a fim de encontrar abrigo e proteção? A grande maioria, senão todos,
busca a casa da mãe. É lá que se encontra a proteção e o conforto para sanar as
feridas e recomeçar.
E mesmo quando a briga é entre
irmãos, todos, um de cada vez, vão correndo para a casa da mãe apresentar sua
queixa contra os outros. E a mãe acolhe, escuta e acomoda cada um de modo que
todos possam voltar a conviver nas muitas moradas existentes no seu coração.
Uma metáfora bonita em que Jesus,
mesmo chamando Deus de Pai, apresenta-o com o rosto e o coração de mãe. Uma
linda comparação que nos desafia a pensar e dizer Deus não apenas com nomes e símbolos
do masculino. Mas a incluir o feminino na nomenclatura e caracterização divina.
E, na prática do dia a dia, num
mundo dividido por todo tipo de tensões e desigualdade, nos impulsa a superar
as diferenças e divergências para que todos e todas possamos ter uma morada
pacífica na casa comum de Deus-Mãe, seja ela a nossa família, a Igreja, a
sociedade ou a criação.
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Aconteceu
comigo há alguns meses. Voltava de uma atividade no interior. Parei na tenda em
que sabia que havia um bom queijo. Havia uns quatro ou cinco carros
estacionados. Desci, entrei na tenda e, para minha surpresa, não havia nenhum cliente.
Saudei o rapaz que aí estava e, como era meu conhecido de longa data,
perguntei: “Cadê todo o pessoal desses carros aí na frente?”
Do
fundo da tenda saiu o pai, me saudou e disse com toda calma: “Os carros são
nossos. A gente traz aí de manhã e deixa estacionado. Se não tem nenhum carro na
frente, ninguém para. Se tem muito carro, todo mundo para!” Imagino que aquele
senhor de quase sessenta anos, nascido na Região das Missões e com seu negócio
instalado há dez anos no Vale do Caí, não tenha conhecimentos de sociologia e
psicologia social. Mas ele, com seu saber prático, descreveu um dos fenômenos
mais típicos de nossa época: o comportamento de manada.
A
sociologia descreve o fenômeno como a atitude de indivíduos em grupo que, em
uma situação de dúvida ou tensão, reagem todos da mesma forma, mesmo sem saber
para onde suas ações conduzem. É o clássico “João vai com os outros”. Só que
não é um só João. São muitos Joões e todos vão para o mesmo lado sem saber o
que os encontrará pela frente!
Duas
são as bases para este comportamento. A insegurança e a ignorância. Quanto mais
fragilizado e menos informado um grupo, mais fácil de ser conduzido. E com isto
já aponto para o outro lado da questão. Hoje, o comportamento de manada, é
conhecido, estudado e aplicado de forma científica em muitos setores da
sociedade.
Não
é só o seu Helmuth que deixa os carros na frente da tenda para que todos vejam
que a loja é bem frequentada. Nas propagandas, os supermercados estão cheios de
gente feliz. Duplas sertanejas inflam seus shows para dizer que são mais
populares. Pastores e padres reúnem multidões para mostrar que são eficientes
intermediadores da graça de Deus. Políticos pagam robôs para multiplicar
“likes”, comentários e compartilhamentos em redes sociais. E todos somos
convidados a ser rebanho que caminha alegremente em direção ao matadouro.
Se
queremos mudar o país e o mundo, precisamos deixar o comportamento de rebanho e
voltar a ser ovelhas. A diferença é simples. Jesus já a assinalou. A ovelha
conhece o pastor pela voz. E ele conhece cada ovelha e a chama pelo nome. O
ladrão, esse foge de toda conversa e desvia o olhar das ovelhas, porque sua
intenção não é cuidar, mas matar e roubar.
Ah!
Seu Helmuth, da tenda de produtos coloniais do Vale do Caí, quando chego, sempre
me chama pelo nome. É um bom pastor de compradores de queijo colonial. Abraços,
seu Helmuth! _____________________ Baixe aqui o ÁUDIO desta reflexão.