Por
uma destas contingências da vida, fiz meu Mestrado em Teologia na Universidade
Católica de Lyon, na França.Uma bela Universidade, de não longa tradição se
comparada com outras Universidades europeias, mas que foi, durante muito tempo,
uma referência no ensino de Teologia.
Situado
na Place Carnot, no centro da principal cidade do Vale duRhône, o prédio principal
da instituição mantém o seu estilo clássico francês. Nada de inovações
arquitetônicas nem de negociações com as sedutoras comodidades da modernidade.
Era a pura tradição de uma instituição de ensino que se propunha fiel às
tradições da sociedade e do catolicismo gaulês.
Tudo
no prédio era original. Portas, janelas, fechaduras, vidros, mesas, cadeiras...
remetiam à segunda metade do séc. XIX. Bonito, charmoso, mas incomodo.
Sobretudo incômodas eram as mesas e cadeiras, mormente as da biblioteca.
Desenhadas para uma época em que a altura média dos franceses não chegava a um
metro e sessenta, elas tinham dificuldades em oferecer comodidade – mesmo a um
brasileiro! – para quem passou do metro e oitenta. Quem se sentia muito cômodo
para trabalhar naquele espaço era o professor Christian Duquoc. Aposentado
daquela universidade, o eminente teólogo dominicano era assíduo e pontual em
sua presença na bliblioteca. Todos os dias, das duas às cinco da tarde, lá
estava ele. Sempre no mesmo lugar. Era seu
lugar que ninguém ousava ocupar, nem mesmo antes de que ele chegasse ou depois
que ele saísse.
A
Biblioteca ostenta como seu patrono um dos grandes nomes da teologia católica
do séc. XX: Henri de Lubac. Foi um dos grandes nomes que prepararam e
assessoraram a elaboração dos documentos, principalmente eclesiológicos, do
Vaticano II. Seu nome era e ainda é citado por aqueles que buscam pensar a
renovação da Igreja para que ela possa dar novas respostas aos novos desafios
que a realidade exige para o anúncio e o testemunho da Boa Nova.
Já
as salas de aula destinadas ao Mestrado em Teologia tinham nomes que para mim
não eram nada familiares. As salas Elie Blanc e Joseph Tixeront eram as mais
usadas. Enquanto estudante em Lyon, nunca me interessei por saber quem haviam
sido aqueles personagens. Mas, como a vida dá voltas, quase vinte anos depois,
tive que dar resposta àquelas interrogações que naquele tempo não me coloquei.
Em minha pesquisa de doutorado, encontrei a informação de que alguns dos mais
destacados capuchinhos franceses que lecionaram no Seminário Madre de Deus de
Porto Alegre entre os anos de 1903 e 1913, haviam sido alunos, na Universidade
de Lyon, dos professores Elie Blanc e Joseph Tixeront! E lá fui eu buscar
informações sobre aqueles dois nomes das salas de aula em que eu havia
estudado...
Descobri
então que Eli Blanc (1846-1926)
foi um eminente representante do neo-tomismofrancês do final do séc. XIX e
início do séc. XX. Intelectual de grande envergadura, foi filólogo, filósofo,
teólogo, jornalista e político. Distinguiu-se por ensaiar um diálogo entre as
ciências e a Teologia cristã e por preocupar-se com a inserção do cristianismo
na realidade social. Por sua mentalidade inovadora, teve problemas com as
autoridades eclesiásticas de então e teve que retratar-se de suas proposições.
Já seu colega, Joseph Tixeront
(1856-2925), foi um religioso sulpiciano, historiador e teólogo. Sua obra mais
conhecida é “História dos dogmas na antiguidade cristã”. Publicada em três
volumes, entre 1905 e 1912, a obra foi uma das primeiras tentativas, no mundo
católico, de estudar criticamente o desenvolvimento da doutrina da Igreja nos
primeiros séculos. Em 1913, sob acusação de modernismo, foi obrigado a
retratar-se, diante do bispo de Lyon, a respeito de algumas de suas proposições
teológicas. Segundo as autoridades eclesiásticas, sua afirmação de que os
dogmas mudam para dizer a mesma verdade de fé de modo diferente, colocava em
risco a verdade da fé cristã e a estabilidade da Igreja em sua luta contra a
modernidade. Em nome da imutabilidade das formulações dogmáticas, Elie Blanc e
Joseph Tixeront perderam suas cátedras na Universidade Católica de Lyon.
Anos
depois, já em tempos conciliares, a memória de Elie Blanc e Joseph Tixeront foi
resgatada, sua obra reabilitada e seus nomes passaram a adornar as salas de
aula da Faculdade de Teologia como a dizer que, aquelas condenações do início
do séc. XX, haviam sido um erro.
Um
dos discípulos dos eminentes mestres franceses, Frei Léandre de Bellevaux, foi
professor de Filosofia dos formandos capuchinhos em Flores da Cunha até o ano
de 1908 e, de 1908 a 1913, ensinou no Seminário de Porto Alegre. Assim como
seus mestres, Frei Léandre também teve problemas com os defensores da
imutabilidade do dogma. Em 1913, mesmo ano em que retornou à França, foi
formalmente denunciado ao Santo Ofício por questionar elaborações teológicas
oriundas do tomismo, então considerado teologia oficial da Igreja.
Em
1915, Frei Léandre estava prestando serviço militar numa unidade de produção
química em Lyon e ali morreu em consequência de ferimentos sofridos durante um
bombardeio alemão sobre a cidade. Lyon. Mesmo morto o frade, seu processo no
Santo Ofício continuou. Foi apenas em 1941, vinte e seis anos depois de sua
morte, que o processo contra ele foi arquivado. Afinal, assim como os dogmas
demoram a mudar, a mentalidade dos que defendem a letra sem se preocupar com a
verdade, também demora a mudar. Feliz ou infelizmente, há feridas que só o
tempo cura.
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