Platão não está entre minhas referências
filosóficas. Por motivos que vão deste a metafísica até o estilo de
argumentação. Na metafísica, minha discordância é quanto à irrealidade do mundo
material em que vivemos. Minha hérnia de disco e meu estômago desmentem Platão! Quanto
ao estilo da argumentação, os ditos diálogos platônicos não passam de monólogos
com a farsa do ventríloquo que sempre diz ou é levado a dizer o que o mestre quer. Em linguagem futebolística, o parceiro de diálogo de Platão sempre deixa
a bola picando para que o filósofo faça o gol. Assim não tem graça... É sempre
de goleada que Platão vence as contendas filosóficas em que ele joga dos dois
lados.
Mas não por isso menosprezo o pensamento
e a obra platônica. Quem sou eu para tal! Foi um grande intelectual que
conseguiu apresentar como pretensamente universalizável o modo de pensar da
elite dominante da Atenas clássica.
Em sua ampla labuta filosófica, o
objetivo era o de chegar à verdade mais estável possível, ao conceito puro que
revelasse a essência real deste mundo irreal que se mostra na multiplicidade
dos objetivos variáveis. Essa era, para Platão, a tarefa do filósofo.
Sem deixar de perseguir este objetivo, o
filósofo da amplitude, para ajudar seus discípulos no caminho das ideias puras,
fez uso do artifício das imagens e produziu algumas das alegorias mais famosas
da cultura Ocidental. Todos conhecemos, por exemplo, “a alegoria da caverna”
onde Platão tenta mostrar a diferença entre a verdade e a ilusão na qual a
maioria das pessoas vivem.
Mas há uma alegoria, não tão conhecida
como a primeira, através da qual, no Livro VI do A República, o filósofo
ateniense argumenta na defesa de que só aos filósofos deveria caber o governo
dos Estados. É a “alegoria do navio”. Assim diz Platão:
O
tratamento que os Estados dispensam aos homens mais sábios é tão duro que não
há ninguém no mundo que sofra outro semelhante e que, para criar uma imagem,
aquele que pretende defendê-los é obrigado a reunir os caracteres de múltiplos
objetos, à maneira dos pintores que representam animais metade bodes e metade
veados e outras misturas do mesmo tipo. Agora imagina que algo semelhante a
isto se passa a bordo de um ou de vários navios. O comandante, em compleição e
força física, sobrepuja toda a tripulação, mas é um pouco surdo, um pouco míope
e possui, em termos de navegação, conhecimentos tão curtos como a sua vista. Os
marinheiros disputam o leme entre si; cada um julga que tem direito a ele,
apesar de não conhecer a arte e nem poder dizer com que mestre nem quando a
aprendeu. Além disso, não a consideram uma arte passível de ser aprendida e, se
alguém ousa dizer o contrário, estão prontos a fazê-lo em pedaços. Atormentam o
comandante com os seus pedidos e se valem de todos os meios para que ele lhes
confie o leme; e se, porventura, não conseguem convencê-lo e outros o
conseguem, matam estes ou os lançam ao mar. Em seguida, apoderam-se do
comandante, quer adormecendo-o com mandrágora, quer embriagando-o, quer de qualquer
outra forma; senhores do navio, apropriam-se então de tudo a que nele existe e,
bebendo e festejando, navegam como podem navegar tais indivíduos; além disso,
louvam e chamam de bom marinheiro, de ótimo piloto, de mestre na arte náutica,
aquele que os ajuda a assumir o comando, usando de persuasão ou de violência em
relação ao comandante, e reputam inútil quem quer que não os ajude. Por outro
lado, no que concerne ao verdadeiro piloto, nem sequer suspeitam de que deve
estudar o tempo, as estações do ano, o céu, os astros, os ventos, se quiser de
fato tornar-se capaz de dirigir um navio. Quanto à maneira de comandar, com ou
sem a aquiescência desta ou daquela facção da tripulação, não pensam que seja
possível aprender isso, pelo estudo ou pela prática, e, ao mesmo tempo, a arte
da pilotagem. Não acreditas que nos navios onde acontecem semelhantes cenas o
verdadeiro piloto será tratado pelos marinheiros de indivíduo inútil,
interessado apenas em observar as estrelas?
Ao ler esta alegoria, retomo minha
afirmação inicial de, ao mesmo tempo que discordo, também devo concordar com
Platão. Discordo da afirmação do sábio ateniense de que só aos filósofos
deveria caber o governo das cidades. Ele mesmo, em suas várias tentativas de
influenciar o poder na Sicília, encontrou o fracasso. Afinal, diferentemente do
que pensava Platão, o mundo das ideias é o mundo irreal. Principalmente no
campo da política. Esta é a arte de governar o mutável das relações humanas. E
isso não é para filósofos. Ao menos para os filósofos tal qual os pensava
Platão.
Mas a alegoria que
ele constrói, por usar os elementos da fluidez do quotidiano, serve muito bem
para ilustrar o modo como o Estado, tanto no templo de Platão como hoje, é
dirigido. Se tomarmos a atual crise brasileira, parece que Platão tinha razão:
os que não conhecem a arte de navegar tomaram o timão e estão conduzindo a nau brasilis para o fundo do abismo. E o
pior, como assinala a alegoria, parece que eles não têm o menor interesse em
aprender a governar. Simplesmente locupletam-se na posse do timão sem importar-se
com o destino do navio, dos tripulantes, dos passageiros e deles próprios. Além
de expulsarem o antigo comandante, parece que beberam toda a mandrágora e todo
álcool que estava a bordo. Salve-nos Platão deste tipo de governantes!
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