Ninguém gosta da dor. Seja ela física ou espiritual.
Mas é muito difícil, para não dizer impossível, viver sem sofrer, seja no corpo
ou na alma. A dor é uma realidade que não podemos negar. Mais cedo ou mais
tarde, em algum momento da vida, todos passamos por experiências que ferem o
nosso ser. Por que somos obrigados a viver com essa realidade que parece
confrontar a nossa condição humana?
Muitas religiões e filosofias surgiram a partir da
tentativa – exitosa ou frustrada - para encontrar uma resposta que dê sentido à
dor. E a arte muitas vezes se torna a expressão pública e popular das respostas
à dolorosa questão. É o caso, por exemplo, de Renato Russo e sua Legião Urbana
na música “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. Quase no final, depois
de considerar várias realidades humanas, ele afirma: “Toda dor vem do desejo de
não sentir dor”. Popularizada pelo
cantar brasiliense, a afirmação faz parte de uma das “quatro nobres verdades”
de Buda.
Mas, como todas as verdades profundas expressas numa
determinada expressão religiosa, ela também é encontrável em outras religiões. No
cristianismo, o desejo de não sentir dor como fonte de toda dor e sofrimento, é
expressa no convite que Jesus faz aos discípulos: “Se alguém quiser vir após
mim, renuncie-se a si mesmo, some sobre si a sua cruz, e siga-me, porque aquele que quiser salvar a sua
vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á.” Ou
então, na afirmação de Paulo e Barnabé quando voltaram para as cidades de
Listra, Icônio e Antioquia e, para encorajar os discípulos, os exortavam a
permanecer firmes na fé dizendo-lhes: “É preciso que passemos por muitos
sofrimentos para entrar no Reino de Deus”
Mas como fazer para que esta dor não nos destrua,
mas sirva de ocasião para iniciar o caminho para chegar à plena realização
humana? Um caminho é o do desapego de tudo o que nos prende a esse mundo. Seja
das coisas materiais como de nossas vontades pessoais ou dos privilégios
sociais. Quando não mais estiver apegada ao nada, aí a pessoa encontrará o todo
de seu ser. Maomé dizia que a primeira Jihad é a luta que acontece no interior
do fiel para vencer-se a si mesmo em seus desejos egoístas. Só depois terá
condições para levar a mensagem de Alláh aos outros. E quem sabe o quanto é
difícil vencer-se a si mesmo, será capaz de respeitar os passos do outro no
caminho da vitória.
Para Jesus, o caminho para vencer a dor que nasce da
condição humana, pessoal ou social, é o amor enquanto capacidade de esquecer-se
de si mesmo e entregar-se totalmente ao outro como ele se entregou na cruz.
Para o nazareno, amar não é encontrar satisfação para as próprias dores no
cuidado que o outro possa proporcionar-me. Amar é voltar-se totalmente sobre as
dores dos outros e buscar saná-las dando-se a si mesmo. Mas há um detalhe que
precisa ser considerado a partir da única lei que Jesus deixou aos seus
discípulos: amai-vos uns aos outros!
Com efeito, o amor é sempre uma experiência recíproca.
É um caminho de via dupla. A entrega de um implica intrinsecamente a capacidade
de deixar-se amar pelo outro. É um vai e vem em que, ao mesmo tempo em que a
pessoa entrega, ela é capaz de acolher o outro que o busca. Amar é ter a
capacidade de deixar-se afetar pelo outro, de sofrer em si mesmo os sofrimentos
dos outros. E como as dores são mutuamente carregadas, todos, ao mesmo tempo em
que carregam os pesos dos outros, tem os seus pesos carregados pelos outros e
assim todos ficam aligeirados.
Não consigo imaginar a perfeição e plenitude dessa
relação como o paraíso de Alláh em que cada fiel é premiado com setenta e duas huris absolutamente submissas. Onde há
submissão, não há amor. Há dominação. Tampouco o posso identificar com o
Nirvana e sua imperturbável
serenidade da mente após o desejo, a aversão e o engano terem sido finalmente
extintos. Amar é deixar-se perturbar pela dor e sofrimento do outro e mover-se
para saná-los.
Sem desprezar as
compreensões citadas pois elas trazem, sim, uma verdade importante, prefiro a
imagem da Nova Jerusalém do Livro do Apocalipse de João. Não é uma cidade fora
do mundo, um “Nosso Lar” do imaginário espírita brasileiro. A Nova Jerusalém é
cada cidade onde habitamos transformada pelo amor de tal modo que o próprio
Deus pode morar nela, pois vive-se, nas relações entre as pessoas, a entrega
recíproca e a sanação que o amor produz em todos os que sofrem. Para localizar
a Nova Jerusalém, não é preciso perguntar onde ir para encontrar o amor de
Deus, mas perguntar se amamos de tal modo que Deus pode morar no meio de nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário