Todos os que jogamos futebol na
infância conhecemos o caricato personagem do gordinho, filhinho de papai, que
era dono da bola. Nas redondezas, era o único que sempre tinha uma bola nova
para jogar. Quem, como eu e meus irmãos e a maioria dos vizinhos, vivia catando
bolas de segunda mão, costurando um pedaço de uma com a outra, remendando,
fazendo de tudo para ter uma bola para brincar, vivíamos com inveja do
gordinho. Ele sempre tinha uma bola nova, reluzente, colorida, número cinco!
Era o sonho: uma bola nova número cinco... E se fosse da marca “Dal Ponte”,
costurada a mão... Quanta inveja!
E o pior era que o gordinho sabia
do poder de sua bola nova, colorida, número cinco, da marca “Dal Ponte”. Nós,
os “Sem Bola” ou com bolas precárias, remendadas e velhas, concordávamos
tacitamente com o poder que ele tinha, não por mérito seu, mas por ter um pai
que podia comprar-lhe uma bola nova a cada seis meses. Para nós, com pais
trabalhadores, vivendo no limite da necessidade e loucos por futebol, mais
valia fazer as vontades do gordinho e poder jogar com sua bola do que opor-se e
ter que correr atrás de uma bola velha, número três, remendada e descolorida.
Entre as vontades do gordinho
estava a de escalar os times. Ele ditava quem jogava no time dele e quem
jogaria no time adversário. A sorte era que o gordinho, apesar de ser o dono da
bola, não entendia muito de futebol. Ele escolhia os jogadores mais por amizade
do que pela qualidade futebolística de cada um. E como, normalmente, entre
aqueles que o gordinho considerava seus amigos havia alguns que jogavam bem e
outros que jogavam mal, as equipes quase sempre resultavam equilibradas.
O outro direito que o gordinho
fazia valer era o de nunca jogar de goleiro. Era a posição terrível e detestada
por todos. A solução era o revezamento. Cada um jogava um pouco de goleiro e,
depois de um tempo ou de tantos gols feitos, era substituído por um companheiro
do time. Mas o gordinho, usando o poder da bola nova, reluzente, número cinco,
da marca “Dal Ponte”, nunca ia para o gol. Queria sempre jogar de centroavante.
Sim, naqueles tempos havia uma posição na escalação que se chamava
“centroavante”. Era o cara que ficava na frente, fincado entre os dois
zagueiros e, pela força ou pela habilidade, era o encarregado de fazer gols. E
o gordinho não tinha nem uma e nem outra... e, por isso, nunca fazia gol. Todo
mundo queria que ele jogasse ou de lateral direito ou de ponteiro esquerdo. Não
vou explicar aqui para os mais novos o que era um lateral direito ou um
ponteiro esquerdo. Mas, não sei por que – e esse é um dos mistérios do futebol dos
tempos da minha infância que até hoje não foi desvendado – todo perna de pau
era escalado para jogar, ou de lateral direito ou de ponteiro esquerdo. E o
gordinho teimava em jogar de centroavante! E nós tínhamos que aceitar porque
senão, ele enfiava a bola embaixo do braço e ia embora.
A outra situação terrível em que
o gordinho enfiava a bola embaixo do braço e ameaçava ir embora era quando o
time dele começava a perder de goleada. Às vezes até evitávamos fazer muitos
gols no time do gordinho com medo de que a ameaça se concretizasse. Ele
começava a choramingar, a dizer que ia contar tudo para o pai, que nós não
valíamos nada, que ele sabia jogar muito mais que nós e que, desse jeito, ele
não brincava mais. E às vezes a ameaça se tornava realidade... O gordinho
pegava a bola, metia o objeto de desejo e admiração de todos nós entre o braço
e a lateral da barriga e, entre uma lágrima e um muxoxo, saia do campo, tomava
o caminho que levavas às casas bonitas da vila e desaparecia na esquina perto
da mansão onde morava com seu pai e sua mãe. Era o fim do sonho e só nos
sobravam duas alternativas. A primeira era a de também ir embora tomando o
caminho oposto ao tomado pelo gordinho e voltar a nossas casas que ficavam no
lado pobre da vila. Ou então, sair do sonho e voltar à realidade jogando com
uma de nossas bolas velhas, remendadas, descoloridas, número três, que até
aquele momento tinha ficado escondida de vergonha atrás de uma das goleiras.
Não sei porque as lembranças do gordinho dono da
bola me vieram à mente nesta semana quando, no noticiário político, apareceu
aquele apartamento cheio de malas recheadas de dinheiro. As digitais que a polícia
encontrou nas malas indicam que o Sr. Geddel Vieira Lima era responsável pela
presença daquelas malas com todo aquele dinheiro naquele apartamento na cidade
de Salvador. No total, 51 milhões de reais sob a cara gorda e sorridente do
nobre político baiano com trinta anos de carreira e serviços prestados a vários
governos. E aí veio a pergunta que não quer calar: quantas bolas novas,
coloridas, reluzentes, número cinco, da marca “Dal Ponte”, daria para comprar
com todo aquele dinheiro?
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