Quinta-feira, 28 de setembro de 2017. Um fim de tarde como tantos outros na Praça da Matriz. Temperatura amena, uma leve brisa soprando do Guaíba. Pela Duque de Caxias os carros aceleram em direção sul-norte buscando o caminho da Oswaldo Aranha e da Azenha. Faróis ligados para iluminar o fim da tarde que começa lançar suas sombras por entre os prédios. Sons irritantes das buzinas dos apressados e impacientes. Todos tem pressa de chegar em casa. Da Assembleia Legislativa saem inúmeros funcionários. Ninguém sabe exatamente quantos... São identificáveis pelos ternos e crachás esquecidos sobre o peito. O Palácio Piratini mantem-se impávido em meio ao tumulto. Parece não sentir, assim como soe fazer seu ocupante de plantão, o que se passa ao seu redor. Um fim de tarde como qualquer outro fim de tarde de uma quinta-feira de mais uma primavera porto-alegrense.
Algo estranho, no entanto, acontece no estacionamento público do entorno da Praça da Matriz. Os carros que partem levando seus fatigados ocupantes são imediatamente substituídos por outros carros que giram em busca de vaga. Os flanelinhas estranham. É anormal o movimento. Bom para eles que, alegres com a perspectiva de uma renda extra, em nada se importam com o atípico movimento. Os novos chegantes são, em sua grande maioria, altos, brancos, loiros. Típicos germânicos. Homens e mulheres. Em cada carro estão quatro e até cinco pessoas. As placas dos carros são da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Os chegantes dirigem-se rapidamente em direção à Catedral Nossa Senhora Mãe de Deus. Que irão fazer? A missa vespertina já terminou e a essa hora as pesadas portas já deveriam ter sido fechadas para evitar a entrada de mendigos e moradores de rua. Mas as portas estão abertas e nos degraus e no pórtico de acesso um aglomerado de bispos, padres e, para surpresa de alguns e alegria de muitos, um sem número de pastores luteranos e representantes de outras igrejas cristãs. É noite de festa. É noite de reencontro. É noite para passar do conflito à comunhão. É a celebração ecumênica dos 500 anos da Reforma. Dom Jaime Splenger, Arcebispo de Porto Alegre e anfitrião do encontro, preside ao lado do Pastor Presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), pastor Nestor Paulo Friedrich, da vice-presidente da IECLB, pastora Sílvia Beatrice Genz, e do presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-Religioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Leituras, cantos e exortações alternados entre católicos e luteranos.
Nos bancos ao meu redor, vários conhecidos e conhecidas, tanto católicos como luteranos. Padres e pastores de várias cidades do interior. Entre tantos encontros, a alegria de reencontrar e poder rezar junto com professores e colegas da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo. Catedral repleta. Vozes unidos em torno dAquele que constrói a unidade.
Discretamente me levanto e, girando pelos fundos da catedral, me dirijo à segunda coluna à direita. Nela estão sepultados os dois primeiros bispos de Porto Alegre, Dom Feliciano José Rodrigues de Araújo Prates e Dom Sebastião Dias Laranjeira. Este último, o grande reformador da Igreja Católica no Rio Grande do Sul. Com todo afinco buscou implementar as orientações da Encíclica “Quanta Cura” de Pio IX e o seu complemento, o “Syllabus Errorum...” Em sua participação no Concílio Vaticano I, destacou-se pelo apoio incondicional à tese da infalibilidade papal e o combate à modernidade e ao protestantismo. Na sua ação pastoral, fazia pressão junto ao poder público para que não fossem destinadas verbas para a construção de igrejas protestantes e não fossem reconhecidos pelo Estado os matrimônios luteranos.
Encosto na coluna junto à lápide e apuro o ouvido: silêncio! Bato com o nó dos dedos para ver se há alguma reação: nada! Fico tranquilo... Oxalá continue assim: tudo em paz no mundo dos mortos e tudo em festa no mundo dos vivos.
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