Para boa parcela dos gaúchos que
desfrutamos apenas de um breve e instável verão, ir à praia entre o Natal e o
Carnaval é praticamente um ritual. Para muitos, mais do que o mar, o sol e a
areia, os poucos dias ou semanas – para os mais agraciados, um mês! – tornam-se
uma espécie de parêntesis onde se pode viver a distopia do quotidiano
assoberbado por trabalho, compromissos, aparências e rotinas. Aproveita-se este
tempo, mesmo que breve, para não fazer nada ou para fazer aquilo que não se
pode fazer durante o ano. Para o bem ou para o mal...
Uma das coisas que muito me
impressiona no Litoral Norte gaúcho é a frequência das pessoas às igrejas.
Falo, concretamente, da Igreja Católica. Em cada pequena praia há uma capela.
Algumas em condições precárias que só funcionam durante o veraneio. Outras, com
sólidas estruturas e que funcionam o ano todo. Em umas e outras, é quase
corrente haver missa todos os dias. Padres que se deslocam do interior, da serra
ou da região metropolitana para descansar e, a convite da comunidade ou por
interesse próprio, celebram a missa nas capelas. Tanto nos fins de semana como
durante a semana.
Sábado de tarde. Tempo chuvoso e
nordestão batendo. Impossível ir à praia. A missa na capela próxima da casa é
às 20 horas. Chego quinze minutos antes. O espaço é grande. Cabem,
tranquilamente, umas quatrocentas pessoas. Lotada. Consigo um lugar para sentar
na fila de bancos do lado direito. Uma enorme variedade de idades, cores e
vestimentas. É o Rio Grande mesclado em oração!
Um rapaz com um violão e um
pequeno grupo de senhores e senhoras afina a voz para animar a missa. Um ruído
no fundo da capela e depois o silêncio. Um perfume de incenso se espalha no ar.
Olho para trás e aí está o padre para a procissão de entrada. Idade mediana,
entre os 40 e 50. Um pouco mais do que bem paramentado para meu gosto. À sua
frente um séquito de seis coroinhas e dois ministros. Os coroinhas marcham à
frente com velas e o incenso. Um dos ministros carrega a cruz. O outro a
Biblia. Em seguida o padre fechando a procissão e, a seu lado, um pinscher
marron-avermelhado. A procissão é acompanhada por um canto tipicamente
carismático.
Ao chegar ao altar, depois das
devidas genuflexões e inclinações, cada um toma seu lugar. O pinscher também
teu o seu. Quando o padre está sentado, descansa deitado entre seus pés. Quando
o padre se levanta, o pinscher vai para baixo do altar e permanece de pé,
olhando a assembleia. De vez em quando, sabe-se lá se motivado pelo irritante
som da microfonia, pelo canto desafinado ou por algum olhar ou gesto de alguém
da assembleia, o pequeno cão solta três ou quatro de seus agudos latidos que
são pacientemente suportados pelos frequentadores da missa. Afinal, o pinscher
é do padre. Os paroquianos o sabem e os visitantes desde o início da missa se
deram conta do fato.
O movimento dos coroinhas, dos
ministros e do comentarista não provoca qualquer reação do pequeno cão. Mas os
latidos se tornam mais agressivos quando as leitoras se aproximam para
proclamar os textos bíblicos que antecedem os evangelhos. Parece que ao pinscher
do padre não agradam as presenças femininas perto do altar.
Depois do Evangelho, o padre
inicia o seu sermão. O pinscher permanece sob o altar olhando a assembleia. A
fala se prolonga monotamente mais do que o tempo recomendado. Depois dos
primeiros minutos de atenção, os assistentes começam a torcer para que o tempo
passe rapidamente. Uns fecham os olhos, talvez lembrando as ondas do mar.
Outros ocupam o tempo vasculhando as visagens e vestimentas de seus vizinhos e
vizinhas. Nos fundos, não faltam aqueles que aproveitam para dar uma olhadinha
nas redes sociais. Na terceira fila do lado oposto de onde estou, uma senhora
de meia idade com seu filhinho no colo. Pela aparência, não é veranista. É
moradora do local. Talvez uma senhora que tenha trabalhado o dia todo e que, no
fim do sábado de labuta, tenha vindo à igreja para encontrar um momento de
consolo e esperança. No seu colo, a criança com o rosto tão cansado como o da
mãe. Talvez não cansada esta do trabalho, mas da solidão ou quem sabe da fome,
da multidão da igreja cheia, do calor que já começa a se tornar incômodo ou do
sermão que não termina mais. Previsivelmente, a criança começa a chorar. A mãe
tudo faz para acalmá-la. Por um momento, ela cessa seu lamento para em seguida
recomeçar. Os circundantes olham, uns com compreensão e comiseração e outros
com um certo incômodo. De sob o altar, a cada choro da criança, os agudos
latidos do pinscher... O padre, sem interromper a fala que repete as mesmas
frases pela enésima vez, olha para a criança, a mãe e o pinscher. Diante dos
olhos assustados da assembleia, desce do altar com o microfone e se dirige até
a terceira fila onde está a mãe e a ela se dirige falando ao microfone para que
toda a igreja ouça: -- A senhora, por favor, faz essa criança parar de chorar
ou se retira da igreja!
Todos os oitocentos olhos estão
cravados na criança e na mulher. Esta, com uma calma muito além do que se
poderia esperar da situação, responde tranquilamente: -- Quando o senhor fizer
o seu cachorro parar de latir, eu faço o meu guri parar de chorar. Mas sair da
igreja eu não saio...
O padre olha para a criança, para
a mulher, para o pinscher, para a assembleia. Todos os presentes estão com os
olhos cravados no padre. Uns olhares sérios, outros interrogativos, risonhos e
até desafiadores. Sem abaixar a cabeça nem dizer outra palavra, o padre dá meia
volta, retorna ao altar, levanta os braços e inicia a rezar o “Creio em Deus
Pai”. A assembleia se levanta. A mulher continua sentada com seu filho que já
não chora no colo. O pinscher está sob o altar, de pé, atento ao menor
movimento da assembleia. A missa segue...
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