O que seria do Cristianismo se a
liderança feminina de Maria Madalena não tivesse sido sufocada pela liderança
masculina de Pedro, Tiago e João e pela misoginia do tardio Apóstolo Paulo? O
que seria do Cristianismo se a tradição gnóstica, tão presente nos evangelhos
apócrifos redescobertos na segunda metade do século XX, tivesse sobrevivido à
ortodoxia imposta pela hierarquia eclesiástica do Norte da África, da Itália e
de Constantinopla que buscava acomodar as sempre revoltosas comunidades cristãs
à Pax Romana?
Difícil saber e arriscado afirmar
algo sobre tal possibilidade. Afinal, a história não trabalha com hipóteses.
Ela trabalha com fatos. E o fato é que Maria Madalena, mesmo sendo ela a
personagem mais citada pelos evangelhos canônicos nas cenas decisivas da vida
de Cristo – Morte e Ressurreição –, sua memória foi apagado dos outros textos
do Novo Testamento. Em nenhuma das cartas de Paulo, tanto as autênticas como as
deutero-paulinas, seu nome aparece. Tampouco nas cartas dos outros apóstolos.
Nem mesmo nas de João e em seu Apocalipse.
Não tardou para que um terceiro
passo fosse dado. Do protagonismo nos evangelhos sinóticos ao esquecimento nas
cartas apostólicos passou-se, na tradição patrística, à difamação da mulher que
mais aparece – até mesmo mais que a mãe de Jesus – nos evangelhos. Pouco a
pouco, na literatura patrística, Maria Madalena passou a ser associada à
pecadora que, no capítulo sete do Evangelho de Lucas, ungiu os pés de Jesus. E
sem que o Evangelho o diga, o Papa Gregório Magno, no ano de 591 d.C., numa
homilia proferida em Roma, afirmou que o pecado de Maria Madalena era a
prostituição. A autoridade de Gregório sobre a Igreja era tal que sua versão a
respeito de Maria Madalena espalhou-se rapidamente pelo Ocidente e passou a
fazer parte das verdades tradicionais da Igreja.
A arte comprou tal versão. Basta
fazer um passeio pela pintura renascentista e encontraremos dezenas de belas e
sedutoras Marias Madalenas aproximando-se de Cristo em busca de arrependimento.
Nikos Kazantzakis em “A última tentação de Cristo” trabalha maravilhosamente
bem uma possível relação amorosa entre Maria Madalena e Jesus. O mesmo
argumento é utilizado por Dan Brown em “O código Da Vinci”. Ambas as obras
foram vertidas para o cinema e, por razões distintas que não temos aqui o
espaço de discutir, atraíram milhões de pessoas e ajudaram a popularizar a
versão de uma relação amorosa entre o Nazarena e a Madalena.
O filme de Garth Davis atualmente em
cartaz nos cinemas não vai por esse caminho. Em nenhum momento há qualquer
insinuação de uma relação amorosa entre os dois. O único sentimento que entre
eles se estabelece é o de afeto fraterno na espera da chegada iminente do Reino
de Deus que trará a justiça para os fracos da terra. O peculiar de Maria é que
ela, diferentemente dos outros discípulos, entendeu a proposta de Jesus.
Enquanto os outros discípulos viviam na expectativa de que Jesus levantasse as
multidões contra o jugo do Império Romano, Maria compreendeu que as curas operadas
por Jesus e sua proximidade amorosa para com os sofredores já eram esse Reino
presente no mundo.
Se Maria tivesse sido substituída
nesse papel por qualquer um dos outros discípulos homens, a trama em nada
mudaria. Não há, propriamente falando, no filme, uma relação entre Jesus e
Maria Madalena. A relação se dá dos dois para com o Reino de Deus. E nessa
relação o filme parece se ater à tradicional divisão de trabalho por gênero:
Jesus evangeliza os homens e Maria evangeliza as mulheres e as crianças! E mais:
Maria é a única mulher entre os discípulos de Jesus. As outras mulheres
mencionadas pelos evangelhos, simplesmente estão ausentes da trama... Ponto a
menos para qualquer tentativa de reinterpretação feminista dos evangelhos.
Talvez a falta de uma trama mais
ardente entre os dois tenha feito com que Rooney Mara e Joaquim Phoenix que
interpretam Maria Madalena e Jesus, transmitam um certo ar de apatia, no
sentido etimológico do termo. Falta paixão na interpretação. Os dois parecem
deixar-se levar pela trama sem contribuir para que a história, em si já
conhecida de todos, ganhe em dramaticidade. Por falar em trama, faltou às
roteiristas Philippa Gosslett e Helen Edmundsen uma mais acurada pesquisa
histórica sobre a Palestina do tempo de Jesus. O modo como é crucificado Jesus,
por exemplo, nada tem a ver com o que nos revelaram as últimas pesquisas
arqueológicas.
O que tem de bom o filme, então? Um
olhar complacente que não considere a pesquisa histórica como acima
consideramos, pode alegrar-se com a inclusão de vários personagens negros na
história. Pedro, por exemplo, bem representado por Chiwetel Ejiofor, é um
deles. Mas podemos ver outros negros entre os discípulos de Jesus. E também
entre os soldados romanos.
O que salva o filme são as cenas iniciais e seu
relacionamento com os últimos segundos. Maria Madalena, de uma mulher oprimido
e controlada pelo pai e pelos irmãos nas cenas iniciais, depois do encontro com
o curador de Nazaré, toma as rédeas da vida em suas próprias mãos e, impulsionada
pelo encontro com o Ressuscitado, torna-se anunciadora da Boa Nova do Reino.
Isso é o essencial que salva o filme. Para tal, não era necessária uma produção
de 40 milhões de dólares e 119 minutos de duração. Com muitos menos dinheiro,
poder-se-ia ter produzido um curta metragem muito mais apaixonante e
contundente mostrando a importância feminina nos inícios do cristianismo e o
desafio de incluir as mulheres, hoje, nas estruturas eclesiásticas de poder.
Mas Maria Madalena é sempre um
argumento chamativo, ainda mais em tempo de Páscoa e com uma boa promoção no
preço da entrada. Aí vale a pena!
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