Todos os que tem uma mínima
familiaridade com a Bíblia cristã lembram com facilidade o episódio apresentado
pela liturgia no Quinto Domingo do Tempo da Quaresma. Trata-se da perícope de
abertura do capítulo 9 do Evangelho do João.
Numa mis-en-cène típica da tradição joanina, os fariseus e doutores da
Lei trazem até Jesus uma mulher flagrada em adultério. Diferentemente do que se
diz em muitos sermões, não se trata de uma prostituta, mas de uma mulher,
casada, que traiu seu marido com outro homem. O detalhe da acusação é que os
homens que trazem a mulher até Jesus viram, com os próprios olhos, a mulher
adulterando. Por consequência, viram também o homem com o qual a mulher estava
a adulterar. E, assim como prenderam a mulher e a levaram até Jesus, poderiam
também ter apreendido o adúltero e tê-lo trazido até Jesus para ser apedrejado.
Mas não! Eles trazem só a mulher... E a Lei de Moisés, no capítulo 20 do Livro
do Levítico, mandava que o homem fosse apedrejado junto com a mulher. Dentro da
mentalidade patriarcal e machista, era o homem o sujeito principal do adultério
e ele deveria ser apedrejado por primeiro. A mulher devia ser apedrejada junto
com ele. Mas por que apedrejar a mulher pelo simples fato de ter sido vítima do
adultério?
Essa interpretação é corroborada
pelas leis que se seguem e tratam da zoofilia. A Lei ordena que um homem que
tenha relações sexuais com um animal seja apedrejado. O mesmo para o caso de
uma mulher relacionar-se sexualmente com um animal. E a Lei, em ambos os casos,
manda que o animal também seja apedrejado. Pergunta-se: por que apedrejar o
animal? Não tendo consciência nem liberdade, o animal é, no caso da zoofilia,
vítima da perversão sexual do homem ou da mulher. Por que matá-lo, então?
A Lei não diz. Mas há uma
hipótese que considero plausível e se fundamenta no modo como Jesus responde à
questão a ele apresentada a respeito da mulher. A hipótese é a seguinte: as
vítimas devem ser eliminadas porque elas nos recordam dos nossos crimes. “Sem
corpo, não há crime”, dizia um velho princípio jurídico que vigorou por muitos
anos. Felizmente, a justiça, a duras penas, conseguiu superá-lo. Mas ele
continua vigente na mentalidade daqueles que procuram eliminar os corpos de
suas vítimas mortas ou, de forma mais comum do que pensamos, buscam eliminar as
próprias vítimas pelo ocultamento ou pela destruição física.
Jesus desmascara essa prática
quando, depois de rabiscar sobre a areia num suspense sem fim para a mulher e
para seus algozes, afirma calmamente: “quem não estiver em pecado, atire a
primeira pedra”. Certamente passou pela cabeça dos presentes os muitos
adultérios que cada um deles tinha praticado e que mereciam a morte antes mesmo
da lapidação daquela mulher jogada ao chão no meio do círculo de mãos
levantadas e armadas com 80 pedras. Ao assassinar aquela mulher – e Jesus com
sua fala calma lhes aponta isso – eles não queriam primeiramente fazer justiça
à mulher flagrada em adultério, mas apagar a memória viva de seus próprios
adultérios. A vítima é perigosa porque lembra ao assassino de seu crime. É
preciso eliminá-la porque sua presença fala por si mesma e é uma acusação
contra os crimes daqueles que se pretendem inocentes.
Pergunto-me nesta noite do Quinto
Domingo de Quaresma: qual a razão que levou a um grupo de militares a
assassinar, com 80 tiros, um pai de família que se dirigia, junto com sua
esposa, seu sogro e seu filho, para um chá de bebê na favela de Guadalupe. Foi
apenas um engano, como alegado imediatamente pelas autoridades? Um tiro por
engano, até poderia ser. Dois ou três, ainda vai... Mas 80 tiros por engano? E
ainda debochar da esposa que pede para que ajudem o marido que está a morrer? O
que fazia com que esse homem se tornasse um possível suspeito para a polícia?
Simples: ele era preto e estava num carro que não condizia com seu “lugar
social”.
No mesmo domingo, na mesma cidade
do Rio de Janeiro, um jovem de 17 anos foi morto, a tiros, pelas costas, por
policiais militares. E, se abrirmos os jornais e as páginas da internet,
veremos isso a cada dia. E veremos mais: comandantes das polícias, governadores
e até o Ministro da Justiça propondo a legalização e a despenalização dos
assassinatos cometidos por policiais, mesmo quando os mortos são inocentes e em
circunstâncias que não justificam tal violência. Tal “lei do abate” é
apresentada como uma forma de defender os policiais e suas vidas. Se tal
argumento tivesse base real, o Brasil não seria o país onde mais a polícia mata
e onde mais policiais são mortos em serviço. Se a polícia matar os supostos
bandidos fosse uma real solução, não haveria mais crimes no Brasil e nenhum
policial mais seria morto. Infelizmente, no entanto, a realidade nos mostra que
as coisas não são assim.
Fica então a pergunta: a quem
interessa tantas vítimas da violência, seja entre a população, seja entre os
policiais? Seguindo a lógica da fala de Jesus, surge poderosa a suspeita de que
a eliminação das vítimas – homens pretos das favelas e policiais na sua maioria
também pretos - interessa apenas aos que
produzem as vítimas: a pequena parcela da sociedade – os 5% que detém renda
equivalente à soma dos outros 95% - que, para manter seus privilégios e
requintes, precisa produzir milhões de empobrecidos e marginalizados e, para
defender-se deles, necessita a força das armas e da polícia.
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