Porto Alegre. Rua da Conceição, Centro. João acordou cedo. O
movimento já começara no entorno da Rodoviária. O velho viaduto range
sob o peso dos carros, ônibus e caminhões que levavam e traziam
mercadorias, pessoas, sonhos e esperanças no novo dia.
João olha para o lado. Aí está a caneca do café. No fundo do
recipiente de metal, ainda um pouco do líquido negro, frio, depois da
noite fria do início de maio. Ao lado, a garrafa de cachaça. Vazia. O
pouco que sobrara na noite anterior, seu vizinho de rua e de abrigo
havia sorvido para acalentar a noite. João estende a mão esquerda e,
mesmo sem olhar, localiza o corpo quente e enrolado de sua companheira
Kaká. Ela o acompanha há muito tempo. Encontrou-a solitária numa
pracinha pros lados da Redenção. Abandonada, na rua, sem dono. Foi
paixão à primeira vista. Desde aquele dia a cadelinha vira-lata segue
João no seu roteiro diário em busca do pão de cada dia. Pode ser pão de
ontem conseguido na porta da Padaria Soledade. Mas também serve uma
fruta meio estragada no latão em frente ao mercadinho Boa Esperança. Ou
um pedaço de xis abandonado por alguém num banco da Praça da Alfândega.
Quem tem fome não escolhe. Isso bem sabe João. E Kaká também aprendeu a
regra. Tanto que ela agora já come frutas e outros legumes. Afinal, como
a carne tá difícil até prá quem tem casa e trabalho, prá cachorro de
morador de rua, nem osso sobra.
Apoiando-se no braço direito e jogando o peso da cabeça para a
frente, João volta-se para o lado esquerdo onde está Kaká. Entre ela e
ele, o saco com aquilo que ele chama “minhas tralhas”. É pequeno, quase
vazio, mas guarda quase tudo que João tem hoje: um par de calças
conseguido ontem num Centro Espírito, duas camisas que ele encontrara
abandonadas em frente a uma casa no Bom Fim e um tênis dado por Clécio,
seu companheiro de abrigo noturno embaixo do elevado da Conceição. E,
como não podia deixar de ser, o bem mais precioso: uma afiada faca com
cabo de madeira para qualquer eventualidade. Afinal, a rua é cheia de
perigos e o melhor é estar aprevenido*.
Clécio e João tinham se tornado amigos depois que os dois fugiram
juntos da polícia que queria limpar a frente de um supermercado da
Cristóvão Colombo. Clécio tinha vindo de São Paulo. De carona em carona
chegara em Porto Alegre. A razão da fuga? “Em São Paulo a Guarda passa e
tira os cobertor e as tralhas de morador de rua.” João, ainda
sonolento, passa a mão na cabeça de Kaká que, reconhecendo a mão do
dono, apenas grunhe. Sorrindo, João lembra daquela correria pela
Cristóvão ao lado de Clécio. Cuspindo como se fosse na cara dos
policiais, solta um sonora palavra e uma gargalhada. Passa a mão por
sobre o corpo. Aí está seu cobertor que ele ganhou na Igreja São Carlos.
Aqui não tem perigo. Não tem guarda prá tirar os cobertores e as
tralhas dos moradores de rua.
Clécio, que acordara com o palavrão e a gargalhada de João, olha
assustado e, como que saindo de um pesadelo e adivinhando os pensamentos
de João, pergunta com voz pastosa: “João, quem é o prefeito de Porto
Alegre?” “Sei lá eu e nem me interessa...” Enquanto João solta mais um
sonoro palavrão, Clécio vira pro lado e murmura prá si mesmo um
reconfortante “Melhor assim!”
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