Do inferno não há volta. Sua
entrada não tem portão, nem cadeado, nem chave. Mas uma vez passado o limiar,
não há como retroceder. A frase no alto, adverte: “Deixai toda esperança, ó vós
que entrais!” É a entrada do inferno descrita por Dante Aleghieri em sua Divina
Comédia. O sentido da frase é claro: depois da morte, não há mais possibilidade
de mudança no nosso destino. Ou estaremos no céu, ou no inferno.
Menos óbvia era a frase colocada
no portal de entrada de vários campos de concentração na Europa do séc. XX: "Arbeit macht frei". O trabalho liberta. Ela podia soar como
uma advertência: quem foi trazido para cá é porque é vagabundo, não sabe se
organizar na vida, precisa ser forçado a aprender e, numa sociedade industrial,
o trabalho é a melhor forma de disciplinar os desviados e rebeldes da sociedade.
Parece que foi esse o sentido primeiro do uso da frase pelos nazistas. Judeus,
ciganos, homossexuais e comunistas eram pessoas vagabundas que precisavam ser
reeducadas e assim contribuir para a construção do Terceiro Reich. Frei Joseph-Marie,
com quem convivi durante dois anos em Lyon, foi prisioneiro durante três anos
em um desses campos. Para ele, a frase era uma sádica ironia. Em Dachau,
Auschwitz, Buchenwald e tantos outros, a única libertação que um prisioneiro
podia esperar, era a morte. Ela era a esperança de libertação daquele inferno
de trabalho, fome e vexações.
As duas frases me vieram à mente
na segunda-feira passada quando, ao chegar no Hospital Colônia Itapuã, me
deparei com o portal que separava a “área limpa” da “área suja” do leprosário.
Era um portal que, diferentemente do inferno de Dante, tinha portão, cadeado e,
ao seu lado, muros e arame farpado que impediam qualquer um dos internos de
sair. Mas assim como o portal do inferno de Dante, este também só tinha
entrada. Uma vez ultrapassado o limiar, não havia qualquer possibilidade de
saída. Nem depois da morte. Do lado de dentro estava o cemitério para onde eram
levados os ali falecidos. Até hoje seus restos lá estão. Nem um único sequer
foi reclamado pelos familiares.
No alto do portal do leprosário, uma
enigmática frase: “Nós não estamos sós”. Rita, a enfermeira que nos guiou pelas
histórias passadas e presentes do Leprosário de Itapuã onde os freis capuchinhos
trabalharam de 1940 até o início do presente século, nos contou que a frase foi
escolhida em um concurso entre os internos. Das muitas sugeridas, esta foi a
escolhida. Me pus a pensar: qual seu sentido? Qual a intenção do interno, que
sabia que nunca mais sairia de lá, ao pronunciar aquela frase? E qual a
intenção daqueles – o diretor do hospital, as irmãs da Penitência e Caridade
Cristã que ali trabalhavam, Frei Pacífico de Bellevaux, capelão do Hospital
Colônia Itapuã de 1940 a 1954 – ao escolher esta frase? Não sei. Não sabemos.
Não há, até agora, nenhum documento que o diga...
Rita, a gentil enfermeira de
tantas experiências com os remanescentes do leprosário e com os doentes mentais
que hoje ocupam o espaço, foi a que me deu a chave para o enigma da frase. Num
tempo em que não havia medicação para a hanseníase, eles foram retirados do
convívio social, sepultados ainda em vida, ocultados dos olhos de todos, para
que a sociedade não fosse contaminada pela lepra. Eles deram sua vida para que
o resto da sociedade não tivesse sua vida ameaçada. Segregados da sociedade,
trancafiados nos pavilhões Carville, seus filhos arrancados – literalmente - do
seio materno e enviados para o Abrigo Santa Cruz, eles e elas, não estavam sós
naquele vilarejo a 60 quilômetros de Porto Alegre. Toda a sociedade estava com
eles. Eles carregavam sobre si a doença da sociedade para que esta pudesse
estar sã. Verdadeiramente, eles não estavam sós! Nós estávamos com eles e,
isso, não pode ser esquecido.
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