A expressão foi cunhada
pelo grande Nelson Gonçalves. Originalmente referia-se à condição do povo
brasileiro depois da derrota para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950.
O gol de Gigghia que fez calar o Maracanã abarrotado selava o sentimento
presente na mente de muitos brasileiros de que o nosso destino seria o de ser
eternos tupiniquins e quenunca alcançaríamos a glória das grandes civilizações.
Nem mesmo no mundo desportivo.
A vitória por 5 X 2
contra a anfitriã Suécia no final da Copa de 1958 foi o começo da virada que se
consolidou em 1962 e chegou ao seu auge em 1970 com a seleção canarinho do “Brasil
ame-o ou deixe-o”. Os títulos que vieram depois – 1994 nos Estados Unidos e
1992 no Japão - foram apenas decorrência do “melhor futebol do mundo”. O sonho
durou até a Copa do Brasil de 2014 e o fatídico 7 X 1 contra a Alemanha. E aí
voltou o complexo de vira-lata até que a seleção prove ganhando outro mundial.
Quem sabe o da Rússia em 2018?
Mas aí eu coloco uma
pergunta: será que é mesmo real o complexo de vira-latas do povo brasileiro?
Quem sou eu para desmentir ou corrigir o Nelson Gonçalves... Mas, desde a minha
humildade, lanço a tese de que o tal complexo não atinge todos os brasileiros.
Ele é um complexo típico da classe média. E isso não é o resultado de nossa
composição étnica mestiça ou da fatalidade de sermos um país tropical, como
afirmaram vários “cientistas” brasileiros do séc. XX. O complexo de vira-lata é
uma opção da classe média. Tenho muitas razões para pensar assim. Elenco apenas
algumas. Sigam-me na lista se tiverem paciência.
A classe média
brasileira – a do sul, pelo menos – nunca esteve em Belém do Pará, nem em
Manaus, Fortaleza, João Pessoa ou Salvador. Mas a classe média faz questão de
ir a Nova Iorque, Paris, Londres e Roma. A classe média nunca comeu uma
feijoada, um vatapá, uma moqueca de peixe, um tutu mineiro, um autêntico
churrasco gaúcho. Mas a classe média faz questão de dizer que adora escargot,
come o insosso McDonalds e faz um esforço danado prá engolir sushis, sashimis e
tamakes. A classe média não vai ao cinema para ver filmes brasileiros. Ela
despreza os nossos atores e atrizes e afirma que nossos filmes não tem
qualidade técnica. Mas a classe média lota os cinemas com as produções
hollywoodianas de quinta categoria. A classe média não houve rock brasileiro,
tem horror de música sertaneja e passa longe do samba, do pagode e do funk. Mas
a classe média lota os estádios nos shows de ridículas bandas americanas que não
tem o menor pudor com o uso do playback. A classe média não compra roupa nos
shoppings brasileiros. Ela vai fazer suas compras em Miami onde paga o dobro
pelos mesmos produtos chineses, bengalis e tailandeses vendidos em Ciudaddel
Este. Mas a classe média tem orgulho de dizer que fez suas compras em Miami. A
classe média jamais participa das festas juninas, do Círio de Nazaré ou do
carnaval de rua. A classe média comemora o Halloween, o Thanksgiving Day e o
Saint Patrick’s Day.
O fato é que a classe
média não gosta do Brasil. Ela não quer que o Brasil saia de sua situação de
Terceiro Mundo. A classe média quer que o Brasil continue sendo um país marcado
pela pobreza. Imagina se o Brasil dá certo e essa multidão de pretos e pobres
começa a tomar o lugar que historicamente foi da classe média branca e bem
nascida? Seria o fim da própria classe média... Melhor que o Brasil perca de
novo para a Alemanha de 7 X 1! E que a Petrobrás seja vendida. Afinal, prá que
ter a maior e melhor petroleira do mundo? O Brasil não merece, pensa a classe
média. E as reservas do pré-sal? O Brasil não sabe o que fazer com elas. Melhor
entregá-la para os europeus e norte-americanos que sabem o que fazer com o
petróleo. As reservas naturais de fero, manganês, bauxita, níquel, cádmio,
titânio? Entreguemos para os chineses, pensa a classe média. Chinês transforma
tudo em manufaturado e depois nós compramos! A biodiversidade da Amazônia? Os
cientistas brasileiros não são capazes de aproveitá-la... Aliás, prá que
incentivar o desenvolvimento científico e tecnológico se podemos comprar tudo
já pronto nos shoppings de Miami, Cingapura, Doha, Hong Kong ou Taiwan? A
caatinga e o cerrado? São só árvores tortas e espinhentas. Belas de verdade,
para a classe média, são as florestas de coníferas do norte da Europa e do
Canadá. O pampa? Um imenso deserto verde. Vamos enchê-lo de eucaliptos
australianos! São lindos os eucaliptos australianos... Bom mesmo seria importar
cangurus prá substituírem os pangarés e as ovelhas. Prá que sermos a sexta
economia do mundo se podemos ser a primeira colônia americana?
E o pior é que a classe
média, mesmo dizendo-se admiradora dos Estados Unidos e defensora das
liberdades individuais, ela tem pavor de democracia. Democracia só existe nos
Estados Unidos e Europa. Aqui, o bom mesmo é uma boa ditadura. Daquelas bem
sanguinárias, com tanques e tropas nas ruas. Porque “bandido bom é bandido
morto” e as “pessoas de bem” tem direito a se armar para se defender. Políticas
públicas, só para os ricos, tipo bolsa-empresário e auxílio moradia para
juízes, ministros, deputados e senadores. Pobre tem que aprender a pescar. Nada
de acostumá-los com as benesses do Estado. Vicia, torna preguiçoso. Ajuda do
Estado apenas para o andar de cima no qual a classe média acha que habita. Se o
filho de trabalhador não pode pagar pela universidade, que não estude. O Brasil
precisa de mão de obra barata para rebaixar o “custo Brasil”. Políticos
decentes? Melhor impedir que se candidatem. Se forem eleitos, podem dar mau
exemplo e o populacho pode querer fazer política.E, caso algum consiga
candidatar-se e ser eleito, faz-se um impeachment sem qualquer base legal. Com
a Câmara, com o Senado, com o Supremo e com tudo, como bem lembrou o Romero
Jucá. E se o impeachment for muito trabalhoso, tem sempre um miliciano disposto
a ganhar uns trocados para fazer o serviço sujo numa noite escura de uma rua do
centro do Rio de Janeiro. Foi feito com Mariella Franco. Pode ser feito com
outros.
Como disse a filósofa
Marilena Chauí, “a classe média é
uma abominação política, porque é fascista, é uma abominação ética porque é
violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante. Fim".
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