O mês de março em Porto Alegre é
quente. Muito quente. E esta semana foi particularmente quente. Demais... como
muitas coisas são demais em Porto Alegre. Para quebrar a rotina depois de uma
semana de intenso trabalho, penso em ir ao cinema. Consulto a programação
cultural da cidade e, em meio aos premiados e insosos filmes de Hollywood, um
estranho título de um documentário brasileiro: “Prá Ficar na História”. A
sinopse me surpreende mais que o título: trata-se de uma produção de um diretor
gaúcho – Boca Migotto – sobre o empenho de um veterinário garibaldense – Luiz
Henrique Fitarelli - em resgatar,
restaurar e guardar objetos relacionados à imigração italiana. Leio alguns comentários
sobre o filme disponíveis na internet e me decido: vou ver!
Como a linha de ônibus 255 Caldre
Fião desaparece nos finais de semana, desço a pé até a Bento Gonçalves e espero
pacientemente por um ônibus que vá até o Centro. O São José me deixa na Rua
Uruguai. Subo até a Rua da Praia que no sábado de tarde está transformada em um
verdadeiro shopping popular a céu aberto. A sombra dos edifícios e a brisa que
sopra do Gasômetro formam um microclima agradável em meio ao torpor das três da
tarde. No meio da rua, todo tipo de pessoas vendendo todo tipo de coisas. A
maioria são brasileiros que, com o “crescimento negativo” da economia,
encontraram no comércio informal uma forma de suavizar a precarização da vida.
Chama a atenção também o número significativo de estrangeiros vendendo suas
mercadorias nas improvisadas lojas sobre caixas e panos. A maioria são
senegaleses. E aí estão os haitianos. Pela convivência com senegaleses na
França e com haitianos aqui no Brasil, consigo distinguir, pelo tipo físico e pela
fala, quem é de uma nacionalidade e quem é de outra. E há também os
equatorianos e peruanos com suas flautas e CDs de música andina. Mais para
diante, um casal com duas crianças. Falam espanhol com um sotaque que não
conheço. Pode ser que sejam venezuelanos.
Sigo sem pressa pela Rua da Praia.
Entro numa farmácia para comprar meus remédios para hipertensão. Coisa de 20
anos de professor! Mais adiante passo pelo restaurante da Tauane. Assim como o
diretor do filme que vou assistir, ela também é de Carlos Barbosa. Há 22 anos a
família Pedruzzi mantém o restaurante Tauta na Rua da Praia, um pouquinho antes
da Casa de Cultura Mário Quintana. Com a dedicação típica dos descendentes de
imigrantes, fizeram do restaurante o ganha pão – e algo mais! – para toda a família.
Com o Cartão Banrisul tenho
direito à meia-entrada. Uma regalia que é mantida em meio a tantos cortes nos
gastos públicos. Umas 20 pessoas de meia idade pra cima na plateia. Pelo tipo
físico, tenho certeza de todos são descentes de imigrantes italianos. O
documentário tem um pouco o estilo do objeto documentado: uma montanha de belas
imagens e entrecortadas falas em português, vêneto e italiano sobre um amontoado de objetos que Luiz
Henrique Fitarelli foi colecionando aleatoriamente durante 40 anos. Não há
preocupação em construir uma narrativa orgânica do trabalho de Fitarelli nem um
discurso interpretativo da imigração italiana. Nem mesmo as sequências filmadas
na Itália tentam estabelecer uma relação entre a situação da Itália no final do
séc. XIX e a imigração para o Brasil. Não afirmo isso como um defeito do filme.
Pelo contrário, é uma virtude, pois a produção tenta manter-se fiel à proposta
do objeto que tenta transmitir. E essa é a virtude maior de um bom
documentário. Se Fitarelli não tem sequer um catálogo dos milhares e milhares
de objetos que mantém depositados nas várias construções da Villa Fitarelli,
que direito teria Migotto de tentar catalogar o trabalho de Fitarelli?
A fala que destoa do conjunto é a
da professora Loraine Slomp
Giron, uma das maiores estudiosas da imigração italiana no Rio Grande do Sul.
Ciceroneada pelo próprio Fitarelli, ela percorre os depósitos e não esconde o
seu desdém pelo trabalho do veterinário que se transformou em antiquário. Para
ela, os objetos aí guardados, assim como todos os que estão em todos os museus,
são objetos mortos que lembram pessoas mortas que lhe trazem “energias
negativas”.
Mas uma fala da doutora me chama sobremaneira atenção.
Ela lembra que os descendentes dos imigrantes italianos só começaram a ter
orgulho e a se interessar pela história da imigração quando esta começou a ser
interessante para a indústria do turismo. E que enquanto os descendentes dos
imigrantes italianos eram pobres, suas histórias não interessavam a ninguém. E
quando estas histórias vinham à tona, eram escondidas ou reprimidas. E arremata
provocativamente ela: quem se interessa pela história dos senegalês e haitianos
que hoje estão chegando ao Brasil?
Enquanto o documentário prossegue, minha mente sai da
Sala Eduardo Hirtz da Casa de Cultura Mário Quintana e sobrevoa os vendedores
ambulantes da Rua da Praia que falam sotaques dos diversos cantos do mundo. Cada
um e cada uma tem suas histórias de vida que nem sempre são contadas e muitas
vezes são ocultadas sobre o genérico nome de “estrangeiros”. Qual o nome do
vendedor dos Nikes falsificados? De onde veio a senhora que vende leques
chineses? Quantos filhos tem o casal de peruanos que tenta vender seus CDs de
música andina? Quem é o pai do adolescente haitiano que vende “pau de selfie” e
capas para celular? Quem se interessa por suas histórias?
Talvez daqui a 30, 50
ou 100 anos, seus netos e bisnetos, já estabelecidos no Brasil e com
estabilidade econômica, comecem a buscar suas origens, resgatar objetos e
contar histórias sobre a chegada de seus antepassados ao Brasil. E quem sabe,
um documentário Prá Ficar na História.
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