Para os que se aventuram pelos
campos da Filosofia, da Literatura ou do Cinema, certamente não lhes soa
estranho o título deste despretensioso texto. Como já intuíram, inspiro-me
abertamente na obra da filósofa Hannah Arendt. Entre suas obras, a mais conhecida
é, sem dúvida, “A banalidade do mal”. Publicada como livro em 1963, ela reúne a
série de reportagens por ela produzidas para o “The New Yorker” por ocasião do
julgamento do oficial do exército alemão Adolf Eichmann. A obra ganhou como
título “Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal”. Tal foi o
impacto da obra que foi versada em filme pelo menos dez vezes. A última e mais
contundente – pelo menos do meu ponto de vista – foi a lançada em 2012 por
Margarethe von Trotta.
O impactante da obra é que,
Hannah, ao relatar o julgamento de Eichmann, apresenta-o de uma forma diferente
do esperado pelos leitores do “The New Yorquer” e, de modo especial, pela
comunidade judaica. Todos esperavam uma descrição de um oficial alemão
irascível, violento, sanguinário e monstruoso assim como monstruosa tinha sido
a Segunda Guerra Mundial e, nela, o extermínio de judeus, comunistas, ciganos,
homossexuais e deficientes físicos e mentais protagonizado pelo regime nazista
e seus aliados. O Eichmann descrito – e tão bem representado no filme de
Margarethe von Trotta – é uma pessoa normal, calma, tranquila e que responde
com toda serenidade às perguntas que lhe são feitas e se sente inocente de
todas as atrocidades cometidas. Na sua consciência, ele apenas obedecera ordens
recebidas de seus superiores hierarquicamente estabelecidos na esperança de ser
recompensado e assim poder galgar os degraus da burocracia e garantir os
recursos econômicos que permitissem à sua família viver uma vida de segurança e
tranquilidade.
Diante do fato, a filósofa se
pergunta: como é possível tal consciência diante da brutalidade dos crimes
cometidos? Fugindo da resposta fácil que responsabiliza um indivíduo em
particular pelos males da humanidade, ela compreende o mal não como uma entidade
metafísica em si mesma ou um dado natural inerente à condição humana e muito
menos como uma perversão individual da condição humana de per si boa. Para Hannah Arendt, o mal tem uma natureza política
e histórica. Ele é produzido pelos seres humanos e encontra guarida e se
expande a partir de opções coletivas conscientes e deliberadas. Assim, o
nazismo, por exemplo, não é fruto da mente perversa de Adolf Hitler ou de seus
sequazes mais próximos, mas é resultado das condições históricas vividas na
Alemanha no pós-guerra e da opção política da maioria dos alemães que a ele
aderiram.
Tal análise que foge da obviedade
de culpar um indivíduo pelo mal existente chocou a comunidade judaica
norte-americana e a filósofa amargou o ostracismo que lhe foi imposto. E isso
não foi sem razão. De fato, o argumento por ela desenvolvido deixava um sério
questionamento no ar: não podemos nós, que ontem fomos vítimas, nos tornarmos
amanhã vitimários e produzir atrocidades que se comparem às que hoje
denunciamos? A história da relação entre o Estado de Israel e os
árabes-palestinos mostra que há razões de sobra para se pensar nisso...
Mas meu objetivo era outro ao
iniciar esta crônica. Como veem, meu propósito não era falar da banalidade do
mal, mas da banalidade da violência. Afinal, o Brasil é um dos países mais
violentos do mundo. Sem que aqui haja guerra alguma, somos o 10º país com o
maior número de mortes por armas de fogo. Dentre as 50 cidades mais violentas
do mundo, 17 estão no Brasil. E a violência é seletiva. O maior índice de
mortes acontece entre jovens, jovens negros, jovens negros com baixa
escolaridade, mulheres, pessoas LGBT e indígenas.
É aqui que entra Hannah Arendt.
Se seguimos sua argumentação, estas mortes não são casuais. Elas têm uma
natureza política e histórica. O assassinato da vereadora Marielle Franco –
ainda não elucidado, diga-se de passagem – mostrou isso de forma gritante. Por
que ela? Mulher, pobre, negra, favelada, lésbica, defensora dos direitos
humanos... Havia alvo melhor que ela para demonstrar a opção política e
histórica da violência?
Meu temor é que, como sociedade,
tornemos a violência banal e persigamos apenas atingir o índice de violência
tolerável segundo os indicadores da Organização Mundial da Saúde: 10 mortos a
cada 100 mil pessoas! E a partir deste índice básico passemos a tolerar outras
formas de violência socialmente produzidas, seja por grupos sociais marginais,
seja pelo Estado enquanto representante dos grupos sociais dominantes. E há
indícios preocupantes! Pelo lado dos marginais, temos os verdadeiros “estados
paralelos” criados pelas associações de traficantes nos presídios e nas
periferias das grandes cidades. Com eles competem as milícias formadas por
policiais na ativa ou já afastados das corporações militares. E não é só no Rio
de Janeiro. Em todas as capitais e nas cidades médias do interior isto é
notório.
Mas temos também os insistentes
pedidos de intervenção militar nas manifestações políticas que iniciaram em
2013 e se prolongam até hoje. Depois ressurgiram os militares pronunciando-se
publicamente sobre questões políticas sem que as autoridades desautorizassem
tais pronunciamentos. E a escalada da normalização da violência galgou degraus
com a intervenção militar no Rio de Janeiro que, ao invés de diminuir, aumento
a violência nos bairros pobres e favelas. E hoje, enquanto escrevo estas
linhas, o Presidente em exercício enviando os militares para reprimir a
manifestação. Será que não nos estamos acostumando muito facilmente com a
banalização da violência e já não somos capazes de reagir à sua normalização
como forma de regular a convivência social?
Os monstros não caem do céus nem surgem do nada.
Como nos ensinou Hannah Arendt, os monstros são frutos de construção histórica
e política. E a política, a arte de conviver com o diferente, é a única forma
de combatê-los.
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