quarta-feira, 23 de maio de 2018

Um Deus metamórfico


Acabamos de celebrar a Festa de Pentecostes. Nela proclamamos a divindade do Espírito Santo que com o Pai e o Filho merece a mesma honra e louvação. É o cerne da fé cristã. A afirmação de que Deus é Pai, Deus é Filho e Deus é Espírito Santo. É a Santíssima Trindade. Algo tão óbvio que os cristãos muitas vezes nos dispensamos de nela pensar. E, no entanto, é uma afirmação ousada a de dizer que há três realidades divinas que são, ao mesmo tempo, um só e mesmo Deus. Afinal, como um mesmo Deus pode ser três realidades distintas ou, visto desde outro ângulo, três realidades distintas – Pai, Filho e Espírito Santo – serem um só e mesmo Deus?
Dentro da lógica que rege o nosso pensamento ocidental, ou se é uma coisa ou se é outra e duas coisas não podem ser a mesma ao mesmo tempo. Com Parmênides de Eleia aprendemos que “o ser é e o não ser não é” e Aristóteles no capítulo VI de sua Metafísica nos ensinou que a proximidade ou distância do “ser” cria hierarquias. Quanto mais próximo do “ser” mais real, nobre e verdadeiro e quanto mais longe do “ser” mais aparente, vil e falso.
Dentro dessa lógica, se o Pai é Deus, o Filho não pode ser Deus e muito menos o Espírito Santo. Lógico. Ou Deus é uma coisa ou é outra. Dentro desta lógica, o máximo que o Filho e o Espírito Santo poderiam ser é “deuses” inferiores e submissos ao Pai. Esse modo de pensar fez surgir, nos inícios da Igreja, uma série de heresias conhecidas como subordinacionistas. Como o nome o diz, o Filho e o Espírito não seriam Deus igual ao Pai, mas seus subordinados. A mais famosa destas heresias foi o arianismo que, no final do século IV e início do século V, praticamente ganhou a unanimidade entre os doutros da Igreja no Ocidente. Mas não foi aceito pela fé popular e, com o tempo, rejeitado como herético.
Quem conseguiu fugir do aparentemente insuperável princípio da não contradição parmenídico e aristotélico foram os padres capadócios: São Basílio, São Gregório de Nissa e São Gregório de Nazianzo. Nascidos na atual Turquia, eles buscaram guardar o princípio original da experiência cristã e, nela, a afirmação da Trindade. Segundo o pensador francês Jean-Yves Leloup, eles são os “verdadeiros filósofos”, um “continente esquecido no pensamento ocidental”. E isso por duas razões. Primeira, porque pagaram com a vida o seu arraigo à experiência originante da fé cristã: a de que Jesus é Deus com o Pai e o Espírito. Segundo, porque colocaram os fundamentos de um nova forma de pensar não mais baseada na lógica parmenídico-aristotélica, mas no princípio da relacionalidade.
Segundo os padres capadócios, o que faz o “ser” das diversas realidades, não é a sua identidade e a contradição que ela possa estabelecer com as outras identidades. O que faz algo ser o que é, segundo os capadócios, é a sua relação com os outros seres. Assim, na Trindade, o que faz o Pai ser Pai é sua relação com o Filho e o Espírito Santo. E o que faz o Filho ser Filho é a sua relação como Pai e o Espírito e o que faz o Espírito ser Espírito é sua relação com o Pai e o Filho. É o princípio da relacionalidade que os capadócios chamaram, usando a língua grega na qual pensavam, de “pericoresis”. Em outras palavras, para que uma pessoa da Trindade seja o que Ela é, é necessário a sua relação com as outras. E essa relação, nos ensinam os padres do Oriente, é sempre dupla: ao mesmo tempo em que na relação cada um dos membros da Trindade é constituído em sua identidade, Ele também constrói a identidade do outro num jogo dinâmico de Amor entre os três.
E, como em Deus não há mentira, mas Ele age conforme é, Deus, em sua trinitariedade relacional, não poderia ficar sozinho. Para continuar expandindo sua relação de Amor, ele criou o mundo e a humanidade e nelas deixou a marca do seu ser, o princípio da relacionalidade. O mundo e, nele os humanos, somos feitos à imagem e semelhança de Deus-Trindade. Somos seres de relações. Ninguém “é” sozinho e nem encontra sua identidade na contradição com o outro. Nós somos o que somos na medida de nossas relações. O ser sozinho, a autonomia, a competição, a meritocracia... e outras tantas formas de isolacionismo e hierarquização social são o princípio da morte, do não-ser, do nada, tanto de si mesmo como do outro.
A ecologia integral tão bem apresentada pelo Papa Francisco na Laudato Sì já incorporou este conceito ao tratar dos seres da criação, entre eles o ser humano, que só existirá enquanto existirem os outros seres que tanto teimamos em destruir. A sabedoria popular também há muito tempo já acolheu esta realidade através do ditado “dize-me com quem andas e eu direi quem tu és”. Nós somos as nossas relações! Para o bem ou para o mal. E mudamos o nosso ser não apenas a partir de decisões interiores, mas no concreto da mudança das pessoas com quem convivemos, deixando que elas nos mudem e atuando para mudá-las.
Na linguagem parmenídico-aristotélica, nós não somos nem formados e nem amorfos. Somos seres capazes de transformação, ou seja, de ir além da forma que recebemos e caminharmos sempre em novas e inovadoras formas de ser. Assim como o Deus-Trindade o é: um Deus para além de todas as formas. Um Deus de relações. Um Deus meta-mórfico que nos faz sempre e cada vez novos em nosso ser.

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