Seis horas da manhã. A brisa
suave que vem do mar quase já não tem mais o cheiro ácido da varrèche. A claridade começa a se
espalhar por sobre as águas calmas em frente ao vilarejo de Abacou. Vozes de
homens, mulheres e crianças avisam que o dia já começou.
Um bom banho prá tirar o calor da
noite do corpo e um café prá acordar de vez marcam o início do dia. Com Frei
Ademar e Frei Sérgio tomamos o mate na varanda e as conversas se alongam até
oito horas. Frei Sérgio está aqui em Abacou há quase oito anos. Além do cuidado
na construção da casa dos frades, do Dispensário e da Igreja Paroquial, sua
dedicação principal foi com a educação. Além do colégio que atende atualmente
400 crianças, a escola de informática Frère Soleil é a grande inovação para as
crianças e jovens que terão que enfrentar o mundo digital. E manter uma escola
de informática em lugar tão isolado não é desafio pequeno. Para a energia, os
painéis solares foram a solução. Os computadores foram doados por várias
instituições internacionais. Quanto ao sinal de internet, esse não foi o
problema. A telefonia digital é uma das poucas coisas que funcionam no país. O
desafio maior foi superar a pedagogia da palmatória ainda vigente na cultura
local. Hoje, tanto a escola de informática como o colégio são dirigidos por um
frade haitiano, frei Abel. As palmatórias, por um tempo aposentadas, voltaram a
funcionar...
Depois do café, uma visita à
comunidade das Irmãs de Santa Catarina, há uns cinquenta metros da casa dos
freis. Irmã Rute e Irmã Nazaré nos acolhem com alegria e carinho. Irmã Liane
que aqui também vive, está no Brasil cuidando da saúde. A atividade principal
das irmãs aqui é o Dispensário. Trata-se, na prática, de algo similar a uma
unidade de saúde que faz a atenção básica. Irmã Rute é enfermeira e faz tudo o
que em outros lugares muitos médicos não sabem ou não querem fazer. Desde o
atendimento de partos inacabados até suturas de ferimentos de machado ou facão,
dois acidentes de trabalho muito frequentes. Solène, a enfermeira francesa,
ajuda na parte da farmácia. As condições são precárias, mas a ajuda dada à
população é impar.
Às dez horas, com o calor já
batendo nos quarenta graus, partimos para Belab. Aí está a construção da casa
que servirá para a formação dos novos frades haitianos. Frei Ademar aqui é o
“boss”. Ele supervisiona o trabalho das diferentes equipes que já colocaram os
fundamentos e as vigas e se preparam agora para começar a fazer a construção
sair do chão. Além de supervisionar este trabalho, Frei Ademar também cuida da
construção da futura casa das Irmãs de Santa Catarina aqui em Belab. Por
enquanto, numa casa alugada, estão irmã Claudete e duas postulantes haitianas.
Depois do almoço partimos para o
lado norte da península. Vamos a Corail. Irmã Claudete vai conosco. Lá vivem as
irmãs Sueli e Deusa, duas Irmãs de Santa Catarina. Lá também vive um capuchinho
francês, frei Jean Pierre. Ele trabalhou toda sua vida de frade na República
Centro Africana. Ao voltar à França, não pôde se adaptar ao estilo de vida
europeu e optou por integrar-se à missão no Haiti. Irmão leigo, ele é um
faz-tudo, desde a mecânica de motores até o telhado da casa. Desde que um
furacão, há dois anos, destruiu esta região do país, ele, com toda calma e
tenacidade, entre um cigarro e outro, ocupa seu tempo a reconstruir a infraestrutura
da missão.
As irmãs, Sueli e Deusa, mantém
um Dispensário no centro da cidade. Com esta atividade, elas complementam o
trabalho que os médicos cubanos fazem no hospital público. Irmã Deusa tem
formação em Enfermagem. Irmã Sueli foi minha aluna de Teologia e aprendeu na
prática como cuidar da saúde das pessoas que chegam ao dispensário precisando
de remédios e, sobretudo, de compreensão e carinho.
A viagem de Les Cayes a Corail
nos poupou o trabalho de assistir a derrota da Seleção Verde-amarela para a
seleção da Bélgica. Enquanto Neymar caía e levantava no terreno russo, nós
subíamos e descíamos as montanhas pedregosas que deram a este país o nome de
Haiti. Na língua dos povos nativos que aqui habitavam e foram exterminados
pelos espanhóis e franceses, “Haiti” quer dizer “país das altas montanhas”. A estrada
é a única a fazer a ligação entre o leste e o oeste do país, da capital Porto
Príncipe a Jéremie, a segunda cidade do país. Sua reconstrução foi iniciada por
uma empreiteira brasileira logo após o terremoto de 2010. Com a destruição das
empreiteiras brasileiras pela Lava Jata, os trabalhos foram assumidos por uma
empresa dominicana. A falta de recursos e as dificuldades da geografia fazem
com que o avanço seja muito lento.
Os últimos dezesseis quilômetros,
depois do entroncamento que dá a Jéremie ou a Corail, estão ainda em estado
muito precário. Mas já estiveram bem piores, nota irmã Claudete que aqui viveu
seus dois primeiros anos no país. Para percorrê-los, foi necessário quase uma
hora. Em fim, ao chegar, depois de um total de quatro horas de caminho,
deparamos com as coloridas águas do Caribe e o salpicado de pequenas ilhas que
pontilham a pequena baía em que está localizada a cidade. Corail remonta à
primeira ocupação francesa da região. A paróquia local tem mais de duzentos
anos. Espremida entre a borda do mar e a íngreme montanha, a população vive
amontoada nas poucas quadras que se formam entre as duas ruas que se alongam no
sentido leste-oeste. A densidade populacional em tão pequeno espaço, a ausência
de saneamento e a escassez de água doce faz com que as doenças ligadas às
difíceis condições de higiene sejam uma constante no local. Muito trabalho para
as irmãs e para os médicos cubanos.
O fim de tarde e a noite foram de
muita conversa franco-brasileira. Depois de uma boa noite de sono, levantei às
quatro e meia da manhã para do alto, onde está localizada a casa das irmãs e do
frei, contemplar o avanço da luz e das cores sobre a cidade, as águas e a ilhas.
Uma verdadeira ode ao Criador de todas as coisas.
Depois do café e de outra sessão
de conversa acompanhada de um bom chimarrão, hora de fazer o caminho de volta,
subir a íngreme encosta, passar por entre as montanhas e descer do outro lado.
Quando nos aproximamos de Camp-Perrin, já quase na planície, a notícia: a
estrada a Les Cayes está trancada! O governo, sob pressão do Fundo Monetário
Internacional, deixou de subsidiar o preço dos combustíveis. O tarifaço
resultante levou ao bloqueio de todas as rodovias do país e ao caos na capital.
Depois de quatro horas de espera e mais duas tensas horas por estradas vicinais
em condições peníveis, o valoroso Toyota com tração nas quatro rodas e o
fluente créole de Frei Sérgio lograram
conduzir-nos até Béraud onde deixamos irmã Claudete e retornamos a Abacou. As
peripécias do dia impediram que pudéssemos visitar comunidade das Irmãs do Imaculado Coração de
Jesus em Béraud. Fica para a próxima... Às dez e meia da noite, depois de um
breve lanche, um banho e a cama para descansar da longa jornada.
Enquanto o sono avançava sobre os membros
aturdidos do corpo, o cérebro buscava processar as muitas imagens e as muitas
conversas destes dois dias de convivência com religiosos e religiosas
brasileiras que, nas difíceis condições da realidade haitiana, tentam ser um
sinal de fé e esperança. São pequenos sinais, mas são pétalas de solidariedade
que colorem e perfumam a esperança de uma vida melhor para o povo haitiano e
esperança de que o Reino de Deus que tanto esperamos se torne realidade viva e
palpável no meio de nós.
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