Na medida em que os anos que
contamos em cada aniversário vão aumentando em número, a vida vai nos cumulando
com lastros de memórias que são despertadas por fatos do presente e nos
provocam a pensar em nossos futuros. Nos últimos três meses, são os eventos na
Nicarágua que vieram provocar alvoroços nos meus recuerdos dos anos 1990 quando
tive a graça de viver naquele então e atualmente convulsionado e belo país.
Em março de 1991, em um seco
verão com calor de quarenta graus, juntamente com o já falecido Frei Vitor
Poloni, chegava eu na cidade de El Rama, no Caribe Nicaraguense, para ajudar os
frades norte-americanos e nicaraguenses no cuidado pastoral do então Vicariato
Apostólico de Bluefields. Eram tempos pós-revolucionários. Em 1990, a Frente
Sandinista de Libertação Nacional que governava o país desde a revolução de
1979, foi derrotada nas eleições presidenciais e, num gesto democrático,
abandonou o poder e passou para a oposição.
No segundo semestre de 1991, o
FSLN realizou seu primeiro congresso nacional. Cada região elegeu seus
delegados. Tratava-se de reorganizar o partido na oposição e preparar-se para
os embates não mais com as armas, como no tempo do combate à ditadura de Somoza
ou da resistência à agressão imperialista norte-americana, mas no campo da
disputa política e eleitoral. Boa parte dos sandinistas desejava a renovação do
partido e a eleição de uma nova direção nacional. Outros, aglutinados ao redor
de Daniel Ortega e seu irmão Humberto, comandante do Exército, desejavam a
manutenção da antiga direção sob o comando de Daniel. Os delegados ao congresso
da Quinta Região onde se situava a cidade de Rama eram em sua grande maioria
pela renovação. No dia em que se deslocavam para Manágua, homens armados, a
mando de Daniel e Humberto, impediram que chegassem à capital e participassem
do Congresso.
Em outras regiões aconteceu o
mesmo com outros delegados que também desejavam a renovação do FSLN. Resultado:
Daniel continuou no comando e os que com ele tinham a coragem de dissentir
publicamente foram pouco a pouco sendo excluídos dos espaços de decisão do
partido e, finalmente, em 1995, fundaram o Movimento de Renovação Sandinista.
Entre eles estavam comandantes históricos como Dora Maria Tellez, Monica
Baltodono, Henry Ruiz, Hugo Torres, Victor Hugo Tinoco, Herty Lewites, o
popular cantautor Carlos Mejia Godoy e o ex-presidente Sergio Ramirez. Mais
tarde a eles se juntaram, entre tantos outros, figuras como o monge e poeta
Ernesto Cardenal, o jesuíta Fernando Cardenal que coordenara a épica Cruzada de
Alfabetização e a escritora Gioconda Belli. Quando Ernesto Cardenal oficializou
seu desligamento do FSLN, Daniel apenas afirmou: “Ninguém pediu para ele
entrar, ninguém vai pedir para ele ficar. Se quiser sair, que saia.”
Para mim, estrangeiro que sempre
simpatizara com a Revolução Popular Sandinista, estava naquela frase selada a
morte do antigo caráter revolucionário do FSLN. Daniel Ortega deixava de ser um
líder revolucionário popular e se tornava incurável de uma das mais nefastas
tradições da esquerda latino-americana: o autoritarismo.
Nas eleições de 2006, Herty
Lewites, que administrara com lisura e efetividade a cidade de Manágua,
candidatou-se a presidente pelo MRS. Misteriosamente, às vésperas da eleição,
quando era franco favorito para vencer, enfermou-se e faleceu. No vácuo deixado
pela morte de Lewites, Daniel, utilizando o capital simbólico da bandeira
rojinegra, elegeu-se presidente do país. Para manter-se no poder, tomou duas
medidas: colocou um parente informal do Cardenal Obando y Bravo, seu
conterrâneo e antigo opositor, na presidência do Conselho Superior Eleitoral e
este, em troca, colocou na clandestinidade o Movimento de Renovação Sandinista.
Neste segundo período do poder a
estrela do novo governo do FSLN passou a ser Rosário Murillo, esposa de Daniel
Ortega. Ela tornou-se a figura central da simbólica sandinista e a grande
articuladora política. Abandonando as tradicionais demandas revolucionários por
democracia, o novo governo de Daniel aproximou-se cada vez mais das figuras da
direita nicaraguense e dos fundamentalistas católicos representados por Obando
y Bravo. Para agradá-los, derrogou todos os avanços no campo da educação e da
saúde.
Em compensação, Daniel
impulsionou programas de assistência social que tiraram da miséria parte
significativa da sociedade nicaraguense, principalmente no campo. Para
financiar tais projetos, contou com generosa ajuda da Venezuela e da China que
projetava construir no país um novo canal interoceânico. Em 2016, Daniel reelegeu-se
Presidente com 70% dos votos válidos. A oposição, incapaz de articular-se
politicamente e apresentar um projeto democraticamente viável, passou, com o
nada secreto apoio da embaixada dos Estados Unidos, a buscar outros meios para
tirar Daniel do poder. A ocasião surgiu há três meses quando o governo
nicaraguense, sob orientação do Fundo Monetário Internacional, anunciou o aumento
das alíquotas patronais e dos trabalhadores para a Previdência Social e uma
simultânea diminuição do valor das aposentadorias. A ocasião estava formada
para que toda forma de insatisfação contra Daniel explodisse nas ruas e
chegasse aos mais de 300 mortos que até hoje tivemos.
Alguns bispos da Igreja Católica
que tradicionalmente se opunham a qualquer coisa que levasse o nome de
sandinista, agora livres do lastro do Cardeal Obando y Bravo que faleceu em 3
de junho e teve seus funerais ignorados até por seus colegas, passaram da
função de mediadores para a de parte no conflito exigindo a renúncia de Daniel
e a convocação de novas eleições. Mas Daniel tem a seu lado a sutil
estrategista Rosário Murillo – que de louca, como dizem alguns, não tem nada –
e tem a força do Exército e da Polícia. E, diga-se de passagem, tem a seu favor
o apoio da maioria pobre da população que, nos 13 últimas anos de seu governo,
viu as condições de vida melhorar significativamente.
O xadrez é complicado. A dinâmica
política da Nicarágua não é para principiantes e para comentaristas da Band
News que afirmam que Daniel está dando um “golpe de esquerda”. Não há saída
fácil e talvez ainda muito sangue seja derramado porque a maioria das partes,
desde Daniel até seus opositores eclesiásticos, não trabalham com a
possibilidade de uma transição democrática. O objetivo de cada parte é destruir
– política, simbólica e até mesmo fisicamente – a outra parte. Para Daniel e o
grupo político e econômico que gira a seu redor, o risco é de perder o poder e
parar na cadeia, coisa que não lhe aconteceu nem no tempo de guerrilheiro. Para
a Igreja Católica, o dano já provocado é de ser utilizada para um interesse
político contrário à vontade da maioria dos pobres do país. Quando a crise
passar, será uma Igreja ainda mais enfraquecida numérica e moralmente.
Qual o futuro de Nicarágua? Difícil de
imaginar... Desde a distância no tempo e no espaço que Nicarágua significou na
minha vida, só posso desejar que o realismo fantástico de Gioconda Belli no
provocador “Waslala” não se torne uma profecia realizada: Nicarágua não pode
voltar a ser o depósito de lixo do Império Americano. Que Dirianguén e Sandino,
desde as montanhas do norte, intercedam pelo país de lagos e vulcões e seu povo
valente e sempre disposto a lutar por liberdade!
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