O domingo amanheceu tenso em
Abacou. A falta de notícias fiáveis sobre o que estava acontecendo no país
fazia com que os boatos corressem soltos e construíssem uma realidade ao gosto
das afinidades políticas de cada grupo. A incipiente democracia, a tradição
autoritária e as fake news
potencializadas pela omnipresença da telefonia digital, fazia com que as mais
absurdas e contraditórias informações fossem tomadas como verdade factual.
Havia os que diziam que tudo estava normal e os que afirmavam que o Presidente
já havia encaminhado sua renúncia. As barricadas nas estradas, os pneus
queimados, as pedras nas mãos, os olhares tensos e as conversas acirradas do
dia e da noite anterior me faziam crer que todas as informações poderiam ser
simultaneamente verossímeis.
Para mim, havia uma situação
pessoal: como voltar a Porto Príncipe e tentar, terça-feira, partir para o
Brasil? Problema minúsculo diante da caótica situação do país. Mas problema
real a ser resolvido. Primeira alternativa: ir a Les Cayes ver se os ônibus
estavam funcionando. Fomos. Negativo. Nenhum transporte público. Segunda
alternativa: ir até a cidade de Aquin onde moram Inês e Eugênia, brasileiras,
Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora. Frei Sérgio falara com elas. Aí estava
hospedado Pe. Rogério, jesuíta brasileiro, com seus cinco noviços. Partimos.
Entre pedras na estrada e pneus ainda queimando chegamos a Aquin. Nenhum
manifestação na rua. Até aqui tudo tranquilo. As irmãs Franciscanas de Nossa
Senhora mantém na cidadezinha encravada na encosta de uma montanha um serviço
básico de saúde para a população. Com as duas brasileiras, está uma irmã
malgaxe. É a solidariedade sul-sul.
Depois do almoço e das
informações que continuam desencontradas, a decisão é ir adiante até onde for
possível. Se não der para avançar muito, voltamos. Se for possível ir um pouco
mais, mas não se puder entrar em Porto Príncipe, em Léogane há hospedagem com
as Irmãs de Cristo Rei. Foi o que aconteceu. Na medida em que nos aproximávamos
de Porto Príncipe as manifestações aumentavam e em Léogane foi impossível
avançar. As irmãs nos acolheram e aí passamos a noite esperando o que
aconteceria no dia seguinte.
Perto do meio dia os jovens
noviços jesuítas, em contato com seus amigos de Porto Príncipe, afirmam que é
possível chegar à cidade. Almoçamos e partimos com a possibilidade de ter que
voltar... À medida que avançávamos em direção à capital, os sinais das
manifestações dos dias anteriores se faziam mais fortes. Galhos, troncos,
pedras, lixo, pneus queimados, carros velhos... tudo tinha sido usado par
obstruir os caminhos. Em Porto Príncipe ainda havia grupos nos entroncamentos e
esquinas sinalizando que nem tudo estava terminado no protesto. Do habitual
trânsito caótico, nada. Poucas pessoas nas ruas. Muito medo no ar. A qualquer
momento paus e pedras poderiam surgir no caminho. Polícia? Formalmente existe,
mas está há dois anos sem receber salários... O que se poderia esperar dela? Nenhum
sinal de sua presença nas ruas. Seguimos espreitando em cada esquina e, depois
de contornar várias ruas obstruídas, finalmente Pe. Rogério e seus noviços me
deixaram em casa.
Resultado final das
manifestações? Alguns mortos – não se sabe exatamente quantos -, feridos,
saques em lojas, bancos, nas companhias telefônicas e de internet, o país
inteiro dois dias parado e muito trabalho para desobstruir ruas e estradas. Mas
quem vai fazê-lo, já que não há funcionalismo público? Os que acreditam no
“estado mínimo” tem que reconhecer que este também tem seus problemas... De
prático, o resultado mesmo foi que o governo voltou atrás e revogou o aumento
dos combustíveis. Mas os postos estão todos fechados e a oposição pede a
renúncia do Presidente. Este oferece a cabeça do Primeiro Ministro. O jogo
político continua!
Depois de um banho, duas mangas e
vários copos de água, parto com frei Aldir para ver o local onde será instalada
a futura fábrica de reciclagem de plásticos. É um projeto espetacular sob todos
os pontos de vista. Matéria prima há em abundância em Porto Príncipe. Montanhas
e rios de plástico por todos os lados. Sim, rios... As valas por onde correm as
águas na temporada de chuva, quando estão secas, são preenchidas com
quantidades enormes de plástico que, com o correr das primeiras chuvas, formam
rios em direção ao mar. Às vezes ocorre de algum desavisado tocar fogo nesta
corrente de plástico e temos um rio de fogo! São os restos do capitalismo
predatório que se manifestam na ponta mais frágil do sistema.
Além de recolher o plástico e
evitar que chegue ao mar, o projeto tem ainda a vantagem de gerar uma fonte de
renda para a população mais pobre que recolherá a matéria prima e a venderá
para a fábrica onde haverá um grupo de trabalhadores assalariados. Tudo será
pago com a venda das telhas e blocos de plástico usados na construção de casas.
Além de ecológico e barato, o material tem uma durabilidade superior ao zinco e
aos blocos de cimento hoje usados e também é menos danoso em caso de terremoto
ou furacão, duas coisas frequentes por aqui.
O sonho é grande. Financiamento,
felizmente, há. Um jovem frade haitiano foi ao Brasil para fazer um estágio na
empresa onde o maquinário é fabricado. Outros dois frades haitianos estão se
preparando para administrar o projeto. Só falta a esperada assinatura do
Presidente e do Tesoureiro da Conferência Episcopal Haitiana para o contrato de
aluguel do terreno. Há quase um ano frei Aldir vem tentando conseguir esta
assinatura e nada... Mas ele tem paciência e perseverança. Se todas as peças se
encaixarem, em pouco tempo mais um sinal de vida e esperança será posto pelos
missionários brasileiros no Haiti. Do que hoje é tratado lixo, poderá surgir
muita vida nova. Há esperança!
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