São duas da tarde. Um
calor tremendo. Quase quarenta graus. Ar seco e um vento quente que faz
balançar os galhos das árvores ao redor da casa. Depois de cinco dias de retiro
com os freis capuchinhos da Delegação do Haiti, nos preparamos para descer o
morro e tomar o caminho do Sul em direção a Les Cayes e de lá a Abacou onde
residem Frei Sérgio e Frei Ademar. Digo “descer” porque a Casa de Retiros das
Irmãs da Caridade de São Luiz onde estivemos nesses dias está na parte alta da
cidade de Porto Príncipe.
Como todas as cidades,
a capital do Haiti também tem suas particularidades geográficas. Uma das que
mais chamam a atenção é a sua organização, digamos, vertical. A Pérola do
Caribe, como foi e ainda é chamada, está situada na Golfo de Gonâves, no Caribe
Ocidental. A parte rente ao mar é plana e, por isso, conhecida como “La
Plaine”. É uma área residencial, a maior da capital talvez, que se prolonga ao
longo da costa até as primeiras elevações. Além do porto e dos mercados ao seu
redor, há bairros que vão desde a miserável Cité Soleil até áreas de classe
média baixa com seus pequenos comércios, escolas, igrejas e produção artesanal
em torno à construção civil: blocos de cimento, esquadrias, portas, janelas,
portões... Quase tudo é feito à beira das ruas, sob toldos abertos cobertos de
zinco.
Depois da “La Plaine”,
nas primeiras elevações do terreno, está o Centro Histórico da Capital com as
principais edificações públicas e a sede de bancos, empresas internacionais e
lojas de marcas tradicionais que podem ser encontradas em qualquer grande
cidade do mundo. Chama a atenção a iluminação pública que tem sua energia
gerada por um sistema fotovoltaico. Não se passa despercebido também pela
antiga sede do governo haitiano imitando o Capitólio de Washington. O terremoto
de 2010 deixou-a em ruínas e até hoje, por decisão governamental, nada foi
feito para reconstruí-la. Há outras urgências a sanar. Do mesmo modo a antiga
catedral em estilo barroco. Aí está ostentando suas ruínas a espera de tempos
melhores para ser reerguida. Sábia decisão, por alguns criticada, mas
firmemente mantida, não se sabe se por falta de dinheiro ou por opção pastoral,
pelo novo Arcebispo de Porto Príncipe.
Passando o “Centre Ville”
sobe-se por estreitas avenidas buscando os pequenos platôs na encosta da
montanha que do alto guarda, qual fortaleza, a Pérola do Caribe. Depois de 20
ou 30 minutos de íngreme subida chega-se a Pétionville. Essa região da capital
é constituída por uma série de pequenos espaços planos separados uns dos outros
por ravinas que o tempo, as chuvas e os terremotos foram rasgando e que, de
tempos em tempos, se ampliam e fecham ao sabor dos aleatórios fenômenos cósmicos
e telúricos e da pressão demográfica sobre a já superpovoada encosta da
montanha. Estes pequenos platôs da cidade são ocupados pela população mais rica
da cidade. Aí estão os colégios particulares, restaurantes, shoppings, clubes,
hotéis... tudo o que essa pequena parcela da população pode pagar. Entre um
platô e outro, tanto acima como abaixo, milhares e milhares de casas que se
mantem suspensas sobre os abismos por forças que talvez nem a física possa
explicar.
Desde a Casa de Retiros
onde nos encontramos pode-se avistar, durante o dia, todas estas diferentes camadas
verticais da cidade. De noite, apenas avistam-se algumas luzes dos platôs de
Pétionville. As ravinas e encostas com suas milhares de casas feitas com blocos
de cimento, ficam quase que completamente às escuras. Nessa região da cidade,
não há luz nem água. A partir do entardecer, aqui e ali, algumas fogueiras
mancham de vermelho a escuridão que cai lentamente sobre a capital. Pouco a
pouco elas se se apagam e o breu toma conta de toda a encosta da montanha,
salvo o seu alto. Lá em cima, acima de tudo, no alto da montanha, as luzes das
mansões dos mais ricos entre os ricos parecem assinalar que, acima da cidade de
Porto Príncipe, há o céu dos príncipes que, de vez em quando, para se livrar do
caos do trânsito provocado pela falta de energia que torna inúteis as
sinaleiras colocadas em cada entroncamento, dão-se ao luxo de subir até suas
mansões em helicópteros alugados por empresas estrangeiras. São as várias
camadas da cidade, qual torta recheada, a demonstrar, quase que
geograficamente, a estrutura dessa sociedade que leva à exacerbação a
iniquidade tão característica das sociedades latino-americanas.
Como dizia no início, é
hora de partir. Frei Sérgio vai ao volante da camionete. Frei Ademar e Frei Fanfan,
um jovem frade haitiano recém-regressado do Brasil, seguem atrás. As tortuosas
ruas vão deixando para trás Pétionville, seus platôs, suas ravinas e suas casas
penduradas sobre o abismo. Depois de alguns engarrafamentos típicos da falta de
regras no trânsito, nos dirigimos em direção à saída sul da cidade. Depois do
Cafù a cidade começa a ralear. O ritmo do avanço da camionete é ditado pelas
paradas das Tap-Tap, dos caminhões de carvão e dos pedestres que cruzam as
ruas. Pouco a pouco o cinzento da cidade vai sendo substituído pelo verde das
árvores sob as quais estão construídas as pequenas casas agora umas mais
espaçadas das outras. À direita o Golfo de Gonâves. À esquerda as elevações da
península sul que se estende até Géremie e de lá aponta para Jamaica e Cuba. Na
planície à direita que se amplia à medida que avançamos, plantações de cana de
açúcar. Fecho os olhos e retrocedo 400 anos no tempo e imagino os invasores
franceses estabelecendo suas plantações de cana e seus engenhos para abastecer
a Europa com o “ouro branco”.
Aqui no Haiti, em Guadalupe e Martinica foram os franceses. Logo ali adiante, na Jamaica, na Guiana, Belize e Nicarágua os ingleses. Em Arruba, Curaçao e Suriname, os holandeses. Todos eles buscando romper o monopólio da Espanha para a qual só restou Cuba e Puerto Rico. O Mar Caribe que luz azul à minha direita e suas férteis e quentes terras pelas quais andamos, durante três séculos, foi duramente disputado pelas emergentes potências europeias que alimentavam de doces as mesas da decadente nobreza e enchiam os cobres de ouro da emergente burguesia que com a força do trabalho dos milhões de homens e mulheres escravizados trazidos da África acumulava capital para a Revolução Comercial que depois se tornaria Industrial com o famoso triângulo Europa-África-América da primeira globalização capitalista. Em cada rosto de cada homem e de cada mulher que caminham ao longo da estrada que leva de Porto Príncipe a Les Cayes está impressa de forma indelével a história das “veias abertas da América Latina e Caribe” magistralmente descritas pelo inolvidável Galeano.
Aqui no Haiti, em Guadalupe e Martinica foram os franceses. Logo ali adiante, na Jamaica, na Guiana, Belize e Nicarágua os ingleses. Em Arruba, Curaçao e Suriname, os holandeses. Todos eles buscando romper o monopólio da Espanha para a qual só restou Cuba e Puerto Rico. O Mar Caribe que luz azul à minha direita e suas férteis e quentes terras pelas quais andamos, durante três séculos, foi duramente disputado pelas emergentes potências europeias que alimentavam de doces as mesas da decadente nobreza e enchiam os cobres de ouro da emergente burguesia que com a força do trabalho dos milhões de homens e mulheres escravizados trazidos da África acumulava capital para a Revolução Comercial que depois se tornaria Industrial com o famoso triângulo Europa-África-América da primeira globalização capitalista. Em cada rosto de cada homem e de cada mulher que caminham ao longo da estrada que leva de Porto Príncipe a Les Cayes está impressa de forma indelével a história das “veias abertas da América Latina e Caribe” magistralmente descritas pelo inolvidável Galeano.
Depois de três horas de
caminho a estrada volteia para a esquerda, cruza as colinas da península sul e
se joga sobre a beira do Caribe. O azul das águas típico da região, em alguns
pontos, está nesta estação do ano manchado de verde. São algas que, nos últimos
anos, proliferam com abundância superior à tradicional. Talvez seja a poluição
que altera a composição da água ou o aquecimento das águas do Caribe. Os cientistas
e políticos só vão se preocupar com isso quando elas chegarem aos resorts e
praias frequentadas pelos norteamericanos e europeus. Aqui as algas se acumulam
na praia e apodrecem gerando um cheiro de vinagre e jogando sobre as casas um
ar ácido que tudo corrói. É a varrèche
que atormenta os habitantes das águas e das terras das ilhas do Caribe.
Mais uns quilômetros e
estamos em Les Cayes, a cidade mais importante da região. Deixamos o asfalto e
por um caminho de chão seguimos costeando o mar em direção a Saint Jean
d’Abacou. Faltando pouco para as nove da noite chegamos na casa onde Solène nos
espera com uma gostosa sopa. Solène é uma jovem enfermeira francesa. Ela deixou
Paris para, junto com as Irmãs de Santa Catarina que aqui residem, cuidar da
saúde dos moradores deste pequeno canto do mundo. Afinal, a solidariedade não
tem ponte de partida e nem ponto de chegada. Ela é o carinho dos povos capaz de
apagar um pouco da dor provocada por quinhentos anos de colonialismo e mostrar
a verdadeira doçura presente em todo o coração humano.
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