A Modernidade nasceu sob o signo da
utopia. A Europa, que durante quase setecentos anos vivera enclausurada, vence
o cerco árabe e, singrando Atlântico, Índico e Pacífico, encontra o Novo Mundo
que excede a tudo aquilo até então visto. Um mundo exótico que assusta e
encanta. Um mundo cheio de riquezas. Especiarias nas Índias Orientais, escravos
da África negra, o ouro e prata das Índias Ocidentais.
Com a força de cães, cavalos e
canhões, o El Dorado das terras “descobertas” foi transferido para a Europa
onde financiou o Renascimento cultural, a Revolução comercial e industrial e os
nascentes Estados nacionais. Para os europeus, tudo parecia possível. Thomas
Morus, em sua “Utopia”, faz uma crítica da moderna sociedade inglesa e afirma
que tudo poderia ser ainda melhor. Igual Tomás de Campanella na “Cidade do Sol”
onde as contradições da modernidade são superadas e chega-se à cidade ideal.
Não durou muito e, aquilo que parecia
utópico, se mostrou distópico. Primeiro, nos continentes periféricos onde
milhões de pessoas foram sacrificadas na produção e transferir das riquezas
para o Velho Continente. Depois, na própria Europa onde a máquina de produzir
riqueza para poucos não se importou com a cor da pele das pessoas e os camponeses
e operários brancos foram transformados em matéria prima do capitalismo.
Jonathan Swift, em suas “Viagens de Gulliver”, descreve as cidades absurdas da
modernidade. John Stuart Mill cria a palavra para nomear esta realidade:
distopia. Karl Marx, em “O Capital”, destapa as entranhas deste sistema que
produz absurdos e chega à exasperação na Primeira e Segunda Guerra Mundial.
Absurdo que tem sua versão coletivista nos “gulags” soviéticos, nos campos de
reeducação maoísta, nas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki e se atualiza nas
guerras da Afeganistão, Iraque, Congo, Iêmen, Síria e nos setenta milhões de
homens e mulheres que peregrinam em busca de um lugar para morar e, muitos
deles, acabam afogados no Mediterrâneo ou no Rio Grande que, no dizer do Papa
Francisco, se transformaram em grandes cemitérios de corpos e esperanças.
Os clássicos “A Máquina do Tempo” de
H.G. Wells, “Admirável
Mundo Novo” de Aldous Huxley e no mais conhecido “1984” de George Orwell e seu famoso “Grande Irmão”
refletem, em forma de arte, o mundo distópico que nos ameaça com seu sonho
pavorosamente real.
Hoje constatamos que as utopias fracassaram e as distopias nos aterrorizam
cada vez mais. Há para elas um alternativa possível? Michel Foucault, já na
perspectiva de uma pós-modernidade, criou o termo heterotopia. Com este
neologismo ele quer significar aqueles espaços marginais dentro da sociedade
onde se pode viver não apenas o contrário da sociedade presente, mas uma
antecipação do ideal que sonhamos para cada pessoa e para toda a humanidade. O
heterotópico sempre é minoritário e, às vezes, fugaz. Mas indica que um outro
mundo é possível e que a humanidade não está condenada à prisão do presente ou
ao devaneio de um futuro incerto. É possível viver no presente o futuro.
A esta experiência de heterotopia os cristão chamam de Ressurreição.
Ressuscitar não é nascer para outra vida. Ressuscitar é ter esta vida radicalmente
transformada pela graça de Deus. Simbolizamos esta vida nova no renascer
batismal. E esperamos que ela se complete na morte quando nos encontraremos face
a face com Deus na Nova Jerusalém. Entre o batismo e o sábado de Deus, cabe-nos
viver no presente como se já estivéssemos no futuro.
Tarefa difícil, pois o mundo nos seduz com sua lógica que parece
insuperável. Mas difícil também pela tentação de evadir-nos deste mundo. Alguns
conseguem viver esta dupla tensão de forma limitada. Outros conseguem ir mais
além. A estes nós os chamamos de “santos” e “santas”. Entre estas últimas,
Maria, a Mãe de Jesus. Em toda sua vida, desde a experiência de Deus em Nazaré
até o Pentecostes, ela viveu no quotidiano o futuro de Deus. Em seu cântico
diante do Anjo, ela lembra a fidelidade de Deus para com seu povo e sua decisão
de colocar-se inteiramente a serviço de Seu projeto. Sua fidelidade leva-a ao
pé da cruz e à missão guiada pelo Espírito. Viveu tão perfeitamente o futuro de
Deus em seu presente, que a Igreja proclamou que ela já vive na plenamente na
realidade divina. Não só seu espírito, mas também seu corpo. É a Assunção de
Maria.
Na sua pessoalidade, Maria vive a heterotopia do Reino. Ela vive o novo
em meio ao velho. E ela não vai sozinha. Junto com Maria de Nazaré vão tantas
outras Marias da Graça, Marias de Lourdes, Marias das Dores, Marias das Neves,
as Isabeis, Roses, Marieles, Dorothys, Matildes, Martas, Márcias, Joanas, Anas, Terezinhas, Tânias,
Anastácias, Nargis... Mulheres testemunhando que não basta a utopia e que não
se há de temer as distopias. Elas são a prova de que é possível viver a vida
nova aqui e agora. Em amostra antecipada, sim,
mas já ressurreição.
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