Qual a relação entre a cifra de cem
mil mortos pela COVID19, o assassinato por sufocamento de um homem negro nas
mãos de policiais brancos em Minneapolis e o envio ao espaço pela SpaceX de um
foguete tripulado?
Os três fatos aconteceram nos Estados
Unidos. Todos os três, no curto intervalo de uma semana. Todos ocuparam espaço considerável
na mídia internacional. E, como não poderia deixar de ser, no noticiário brasileiro.
Um comentarista televisivo ressaltou a importância do lançamento do Dragon
Crew: possibilitar que, em um futuro muito próximo, qualquer pessoa possa
viajar para o espaço. E concluiu sorridente: “Reserve já o seu bilhete!”
Fiquei pensando cá comigo: Será que
George Floyd, o homem negro que foi sufocado pelos policiais brancos, já teria
ele reservado seu bilhete para um passeio espacial a bordo da cápsula do Elon
Musk?
Será que os cem mil cidadãos norte-americanos que morreram de COVID19 também já
haviam comprado seu bilhete para a viagem orbital?
Na certeza de uma resposta negativa
me pergunto: que país é esse que se permite o luxo de programas de turismo
espacial privado financiado com dinheiro público, enquanto cem mil cidadãos
morrem por uma “gripezinha” e a lei e a ordem treinam policiais brancos para
assassinar homens pretos que se sublevam contra mais um dos tantos atos de
racismo institucionalizado?
Esse país é o líder da civilização
ocidental. Líder econômico, político, cultural e moral. Se assim é a liderança,
o que não seria dos que por eles se deixam liderar? O neo-racismo brasileiro
está passando da versão “democracia racial” para a simbólica supremacista da Ku
Klux Klan com suas túnicas brancas em marchas noturnas à luz de tochas. E não é
numa cidadezinha do Alabama. É em frente ao Supremo Tribunal Federal. E nada
acontece... Assim como nada acontece com aqueles que, no mesmo colonialismo
racista, vêm a público brindar com copos de leite....branco! Já as forças da
lei e da ordem executam o lado prático: de cada cem pessoas assassinadas pela
polícia, oitenta são negros. Proporcionalmente, superamos os Estados Unidos.
Assim como, em breve, sempre proporcionalmente, também superaremos os Estados Unidos
no número de mortos pela COVID19. E, coisa que nos Estados Unidos nunca
aconteceu: temos, no Brasil, um astronauta como Ministro da Ciência e
Tecnologia. Sua maior habilidade: vender travesseiros de uma marca fake que
imita o nome da Agência Espacial Norte-americana.
O Ocidente está doente. O Brasil
está febril. E não é apenas a COVID19 que nos enfraquece. É a nossa civilização
que perece. Foi pro espaço. Foi pro
brejo. Precisamos urgente de uma vacina contra o coronavírus. E de anticorpos
de sensibilidade, empatia e solidariedade para enfrentar a doença do racismo,
do egoísmo e da desumanidade.
Que a Festa da Santíssima Trindade, o Deus-Amor que é
comunidade, nos inspire e fortaleça na conversão da cultura e da sociedade.
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Guimarães
Rosa, em seu clássico “Grande Sertão Veredas”, colocou na voz de Riobaldo uma
frase que lembra o trágico da vida. Diz o cangaceiro: “Viver é muito perigoso:
sempre acaba em morte”. Parece óbvio. Mas o óbvio, quando pensado, choca. Todos
os que estamos vivos, um dia morreremos. Como? Não sabemos. Quando? Também não.
Cada ano, cada mês, cada dia, cada hora, cada minuto, cada segundo, pode ser o
instante de nossa morte. Por isso, segundo ele, a vida é uma “travessia perigosa,
mas é a vida”.
Mas
há algo mais que o simplesmente viver. Segundo o filósofo da caatinga, “o mais
difícil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber
definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”. Se bem entendi
a frase, o desafio é estabelecer a relação entre o que somos, o que queremos
ser e o sentido que damos àquilo que vivemos. O que estabelece a coerência
entre os três elementos – ser, querer ser e dar sentido ao viver – é a palavra.
Por isso, se “viver é muito perigoso”, falar também é algo que precisa ser
feito com muito cuidado, pois também pode ser muito perigoso.
Martin
Heidegger, com toda a seriedade da filosofia alemã, dizia o mesmo que Riobaldo:
“A linguagem é a morada do ser”. É ela que nos permite sair da inércia das
coisas e passar a sermos no mundo junto com os outros compreendendo o sentido
da própria existência e da vida dos que conosco caminham perigosamente entre a
vida e a morte.
Fernando
Pessoa afirma que a nossa verdadeira pátria não é um território ou um Estado.
Nossa Pátria é a Língua que falamos. Dizia ele não chorar por nada que a vida
trouxesse ou levasse. Mas odiava a escrita mal feita, errada, criminosa, que
deturpa “a palavra que também é gente”.
Atrevo-me
a acrescentar à frase do poeta luso um artigo definido feminino singular: “a
palavra que também é a gente”. Faço
isso pensando numa altercação de Jesus com os fariseus onde ele, tomado de
raiva, os desafia: “Raça de
víboras, como podem vocês, que são maus, dizer coisas boas? Pois a boca fala do
que está cheio o coração. Mas eu lhes digo que, no dia do juízo, os homens
haverão de dar conta de toda palavra inútil que tiverem falado. Pois por suas
palavras você será absolvido, e por suas palavras será condenado”.
Para Jesus, são as palavras que
pronunciamos as que revelam o espírito que habita em nosso interior. Se é o
Espírito de Deus ou o espírito do diabo. Para saber quem é uma pessoa, basta
estar atento às palavras que saem de sua boca e, como dizia Riobaldo, ir “até o
rabo da palavra” para descobrir a casa e a pátria em que essa pessoa mora.
De fato, falar, assim como viver, é muito comprometedor.
É uma travessia perigosa. Mas essa é a vida!
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Há
muitas formas de sair de cena. Há aquela bem educada em que se pede licença,
despede dos presentes e toma o rumo da porta abanando para os que ficam.
Há
a saída à francesa: de fininho, sem
que os presentes se deem conta. Pode ser falta de respeito. Ou pode significar
discrição, desejo de não atrapalhar a alegria e a festa que segue.
Há
a saída estrepitosa daquele que sai causando.
É o correlato do chegar chegando,
fazendo barulho, chamando atenção para ser notado e se impor aos demais.
Também
há a saída forçada, não desejada, resistida, daquele que quer ficar, mas é
expulso, jogado para fora, de forma violenta ou com subterfúgio. E há a saída
disputada em que alguns querem que a pessoa permaneça e outros querem excluí-la.
E
há a saída não realizada, a saída incompleta, não acabada, inconclusa, não
finalizada em que a pessoa que sai, mesmo que não mais esteja, continua
presente. E, se procuramos por ela, mesmo que não a vejamos, sabemos que aí
está. Esta é a saída mais dolorosa. É a que mais dói porque nunca termina. É
uma saída no particípio presente. Essa forma verbal que na língua portuguesa
deixou de ser ação e passou a ser qualidade da qual ninguém pode desimpregnar a
quem foi com ela marcado.
É
a saída dos mortos que nunca morrem. Seja porque não pudemos deles nos despedir
de forma digna e respeitosa, como acontece hoje com os mortos por Covid19,
subtraídos ao carinho e pranto dos familiares e amigos antes mesmo do último
suspiro e enterrados às pressas em uma vala anônima. São os povos indígenas
que, desde a chegada dos europeus até hoje, continuam sendo desaparecidos
contra a sua vontade e, para não deixar em paz a consciência dos que os matam,
continuam teimosamente a resistir com sua incômoda presença. Ou os presos,
torturados e mortos pelas ditaduras e que tiveram seus corpos desaparecidos,
mas sua memória está viva naqueles e naquelas que seguem seu sonho de uma
sociedade justa, fraterna e feliz.
E
há os mortos que nunca morrem porque sua existência foi de tal modo intensa que
já não cabia somente neles. E a vida que eles carregavam e repartiam se
expandiu e tomou conta de todos aqueles e aquelas que com eles tiveram a graça
de conviver.
É
dessas vidas que dizia Dom Oscar Romero: “Se me matam, ressuscitarei na vida do
povo”. Não era uma frase vã ou pretensiosa. Pelo contrário: era o humilde
reconhecimento de que, aquele que foi morto, ressuscitou e já não está presente
como antes, continua vivo no meio de nós. Ele subiu aos céus, mas sua presença
esperançadora é maior e mais forte que todas as ausências. E Sua vida, que vive
em nós, nos impulsa a seguir fazendo o que Ele fez.
Conta
a lenda que o Oráculo de Delfos, consultado sobre quem seria o homem mais sábio
de Atenas, anunciou que este atributo correspondia ao filósofo Sócrates. Este,
ao ser informado do vaticínio divino, serena e calmamente respondeu: “Só sei
que nada sei!” Todos ao redor ficaram abismados. Estaria Sócrates desprezando a
voz dos deuses? Calmamente ele explicou a seus ouvintes que, a consciência da
própria ignorância, é o primeiro passo para a busca do verdadeiro conhecimento.
Segundo ele, aquele que está convencido de que já conhece tudo, não vê motivo
para inquietar-se em buscar a verdade e afunda-se em sua orgulhosa escuridão.
Naquela
mesma época, na Palestina, um grupo de homens recolheu e colocou por escrito a
sabedoria popular do povo judeu. Nasceu assim o livro dos Provérbios que está
na Bíblia. Nele, encontramos frases fantásticas sobre a sabedoria e a
ignorância. Uma delas é quase igual à de Sócrates: “Quem é sábio procura aprender,
mas os tolos estão satisfeitos com a sua própria ignorância”. Outra diz: “O
tolo pensa que sempre está certo, mas os sábios aceitam conselhos”. E ainda
outra: “Aquele que quer aprender gosta que lhe digam quando está errado; só o
tolo não gosta de ser corrigido”.
Nestes
tempos em que assistimos a verdadeiros shows de tolos nas portas dos palácios,
nas praças, nos púlpitos das igrejas, nos microfones e câmeras de rádio e
televisão e nas inúmeras telas das múltiplas redes sociais que tomam conta de
nosso cotidiano, estas frases convidam a pensar sobre o valor do silêncio que
busca a verdade.
Sobre
os gritões de verdades que não existem e que insistem em mentir para si mesmos
e para os outros, bem lembra o mesmo Livro dos Provérbios: “A pessoa prudente
esconde a sua sabedoria, mas os tolos anunciam a sua própria ignorância”.
O
dramático é que, o amor pela mentira, como lembrava recentemente o Governador
do Rio Grande do Sul, vem sempre acompanhado pelo desprezo à vida. Já o Livro
dos Provérbios afirmava: “Quem procura ter sabedoria, ama a sua vida”. E,
acrescentamos nós: o ignorante se apega à mentira, e com isso, acaba com a
própria vida e destrói a vida dos outros. Por ação ou por omissão, a mentira
como opção, é sempre culpável.
Para
resistir à opção ignorância é preciso contar com o Espírito da Verdade que
habita em cada um de nós e nos faz defensores da vida. E, por Sua força, ter a
ciência primeira de nossa própria ignorância e de nossa finitude que nos fazem
rezar com o Salmo 90: “Faze que saibamos como são poucos os dias da nossa vida
para que tenhamos um coração sábio”.
Que
Deus nos dê sabedoria para defender a vida dos outros e assim prolongar
eternamente a nossa própria existência.
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ACESSE AQUI o áudio desta reflexão que pode ser livremente utilizado.
Falar de Deus é algo temerário. Por
mais que nos esforcemos para escolher as palavras, sempre podemos dizer algo
inadequado a seu respeito. Nunca temos a palavra exata e completa para dizer
quem Ele é.
O melhor caminho para não calar – já
que quem experimenta Deus quer sempre comunicá-lo aos outros – é o uso de
metáforas. Através de algo que nos é familiar, tentamos dizer a realidade
divina que transcende à capacidade de nossas palavras.
Na tradição judaico-cristã, uma das
metáforas para dizer quem é Deus, é a da figura do Pai. Dizemos que Deus é Pai.
Mas não é pai no sentido da paternidade humana. Mas, a partir da paternidade
que todos, como pais e/ou como filhos, experienciamos, podemos dizer algo a
respeito de Deus.
Mas a metáfora do Pai não é a única
possível. Há muitas outras. Entre elas, está a metáfora da mãe. Na Bíblia,
várias vezes, Deus é designado com figuras femininas. O próprio Jesus as
utilizou. Ele comparou Deus e seu reino com a mulher que faz pão. Comparou
também com a mulher que varre a casa para achar a moeda perdida e, quando a
acha, faz festa com as amigas e vizinhas. E se comparou a si mesmo com uma galinha
que, para proteger seus pintinhos, os quer esconder sob suas asas.
Existe outra passagem em que Jesus
revela o rosto materno de Deus. Na chegada a Jerusalém, num momento de muita
tensão entre os discípulos e do conflito de Jesus com as autoridades judaicas,
ele diz aos que o seguem: “Na casa de meu pai há muitas moradas; se não fosse
assim, eu vo-lo teria dito. Vou preparar-vos um lugar.”
Leiamos esta frase a partir da
experiência de filhos. Nos momentos de dor, sofrimento, tensão, desesperança...
para onde corremos a fim de encontrar abrigo e proteção? A grande maioria, senão todos,
busca a casa da mãe. É lá que se encontra a proteção e o conforto para sanar as
feridas e recomeçar.
E mesmo quando a briga é entre
irmãos, todos, um de cada vez, vão correndo para a casa da mãe apresentar sua
queixa contra os outros. E a mãe acolhe, escuta e acomoda cada um de modo que
todos possam voltar a conviver nas muitas moradas existentes no seu coração.
Uma metáfora bonita em que Jesus,
mesmo chamando Deus de Pai, apresenta-o com o rosto e o coração de mãe. Uma
linda comparação que nos desafia a pensar e dizer Deus não apenas com nomes e símbolos
do masculino. Mas a incluir o feminino na nomenclatura e caracterização divina.
E, na prática do dia a dia, num
mundo dividido por todo tipo de tensões e desigualdade, nos impulsa a superar
as diferenças e divergências para que todos e todas possamos ter uma morada
pacífica na casa comum de Deus-Mãe, seja ela a nossa família, a Igreja, a
sociedade ou a criação.
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Aconteceu
comigo há alguns meses. Voltava de uma atividade no interior. Parei na tenda em
que sabia que havia um bom queijo. Havia uns quatro ou cinco carros
estacionados. Desci, entrei na tenda e, para minha surpresa, não havia nenhum cliente.
Saudei o rapaz que aí estava e, como era meu conhecido de longa data,
perguntei: “Cadê todo o pessoal desses carros aí na frente?”
Do
fundo da tenda saiu o pai, me saudou e disse com toda calma: “Os carros são
nossos. A gente traz aí de manhã e deixa estacionado. Se não tem nenhum carro na
frente, ninguém para. Se tem muito carro, todo mundo para!” Imagino que aquele
senhor de quase sessenta anos, nascido na Região das Missões e com seu negócio
instalado há dez anos no Vale do Caí, não tenha conhecimentos de sociologia e
psicologia social. Mas ele, com seu saber prático, descreveu um dos fenômenos
mais típicos de nossa época: o comportamento de manada.
A
sociologia descreve o fenômeno como a atitude de indivíduos em grupo que, em
uma situação de dúvida ou tensão, reagem todos da mesma forma, mesmo sem saber
para onde suas ações conduzem. É o clássico “João vai com os outros”. Só que
não é um só João. São muitos Joões e todos vão para o mesmo lado sem saber o
que os encontrará pela frente!
Duas
são as bases para este comportamento. A insegurança e a ignorância. Quanto mais
fragilizado e menos informado um grupo, mais fácil de ser conduzido. E com isto
já aponto para o outro lado da questão. Hoje, o comportamento de manada, é
conhecido, estudado e aplicado de forma científica em muitos setores da
sociedade.
Não
é só o seu Helmuth que deixa os carros na frente da tenda para que todos vejam
que a loja é bem frequentada. Nas propagandas, os supermercados estão cheios de
gente feliz. Duplas sertanejas inflam seus shows para dizer que são mais
populares. Pastores e padres reúnem multidões para mostrar que são eficientes
intermediadores da graça de Deus. Políticos pagam robôs para multiplicar
“likes”, comentários e compartilhamentos em redes sociais. E todos somos
convidados a ser rebanho que caminha alegremente em direção ao matadouro.
Se
queremos mudar o país e o mundo, precisamos deixar o comportamento de rebanho e
voltar a ser ovelhas. A diferença é simples. Jesus já a assinalou. A ovelha
conhece o pastor pela voz. E ele conhece cada ovelha e a chama pelo nome. O
ladrão, esse foge de toda conversa e desvia o olhar das ovelhas, porque sua
intenção não é cuidar, mas matar e roubar.
Ah!
Seu Helmuth, da tenda de produtos coloniais do Vale do Caí, quando chego, sempre
me chama pelo nome. É um bom pastor de compradores de queijo colonial. Abraços,
seu Helmuth! _____________________ Baixe aqui o ÁUDIO desta reflexão.
O escritor colombiano, Prêmio Nobel de Literatura, Gabriel Garcia
Márquez, abre o primeiro capítulo do primeiro volume – são três
– de seu livro de memórias com uma frase que, por si só, já vale
toda a leitura: “a
vida não é o que se viveu, mas o que se recorda e como se recorda
para contá-la”.
De
fato, muitas coisas acontecem em nossas vidas. Algumas, logo as
esquecemos. Outras, ficam gravadas em nossas memórias. Umas poucas,
estamos sempre a contá-las e recontá-las para nós mesmos e para os
outros. E, cada vez que as contamos as vamos contando
de um modo diferente. Não
porque o passado tenha mudado. Mas porque
o contar e o recontar estas histórias muda
as nossas vidas na
medida em que as contamos de um jeito diferente de acordo à
necessidade do presente.
Com
efeito, o sentido de recordar e contar o que se viveu, não é apenas
o de lembrar os
tempos pretéritos.
O principal efeito de contar a própria história, é dar sentido ao
momento presente e assim abrir o caminho para o futuro que sonhamos.
Contar o passado é dar sentido ao passado. É
o primeiro passo. Mas
é, ao mesmo tempo, compreender o presente e assegurar o futuro.
A
passagem do Evangelho em que Jesus se encontra com os dois discípulos
de Emaús mostra o quanto a intuição literariamente expressa de
Gabriel Garcia Márquez dialoga com a experiência cristã. Estavam
os dois discípulos fugindo de Jerusalém diante do horroroso
espetáculo aí acontecido na Festa da Páscoa. Os romanos, a pedido
dos chefes de Israel, haviam crucificado a várias pessoas. Entre
elas, o mestre deles, Jesus. Eles
estavam perdidos. Apesar de terem assistido a tudo, estavam sem nada
compreender. Jesus se aproxima e convida-os a lembrar e contar o que
havia acontecido. E, a partir dos eventos recentes, faz com eles uma
longa viagem pela história do Povo de Israel, desde os mais
longínquos até
o presente.
E, ao chegar em casa, depois de haver partido o pão como o povo o
fizera ao sair do Egito, no deserto, ao chegar na Terra Prometida, no
exílio na Babilônia, e como Jesus o partilhara
tantas vezes com eles, encontraram o sentido de tudo o que acontecera
e estava acontecendo: Deus não havia abandonado o seu povo. Pelo
contrário. Aquilo que parecia uma desgraça, havia sido, na verdade,
a graça de Deus.
Penso
nisso ao imaginar como, daqui a dez, vinte, trinta, cinquenta anos,
contaremos aos nossos filhos, netos e bisnetos, aquilo que estamos
vivendo hoje. E, mais de o
que
contaremos, como
o contaremos. Afinal, como bem remarca o escritor colombiano, o mais
importante não é o que a gente vive. O que importa, de fato, é o
que lembraremos
e como o lembraremos
para contá-lo aos que vierem depois de nós. E
nisso, a intuição de Gabriel Garcia Márquez pode ser pensada
também de um outro ângulo, ainda mais instigador. O do futuro que
interroga o presente: teremos orgulho do que fazemos hoje ou vamos
fazer tudo o que for possível para ocultá-lo a nossos filhos e
netos? __________________
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A Páscoa é uma história com personagens fortes. O principal, como não poderia deixar de ser, é Jesus. Primeiro, crucificado. Depois, ressuscitado. A seu lado, os coadjuvantes: Judas, o traidor; Pilatos, o covarde; Herodes, o cínico; Caifás, o mau; Pedro, o medroso; Verônica, a consoladora; Maria Madalena, a corajosa. E há os figurantes: os discípulos fujões, os soldados sádicos, a multidão volúvel, os dois crucificados ao lado de Jesus, a mulher que dedura Pedro, as Marias que de longe assistem tudo...
Há um personagem que, de figurante na cena da Paixão, se torna o “coadjuvante principal” numa das cenas da Ressurreição. Tomé, o gêmeo. Aquele que só acreditou depois de ver as mãos e tocar o lado do Ressuscitado. Tal atitude lhe valeu a fama de alguém que não tem fé. Ou que só acredita depois de ter as prova. Aquele que só acredita depois de ver. Uma má fama. Fama que precisa ser reabilitada. Mais: precisa ser promovida. Ele, de certo modo, antecipou-se no tempo. Da fama daquele que não tem fé, Tomé merece ser promovido a patrono da fé moderna. Ele não se contenta em que lhe digam. Ele quer experimentar por si mesmo. Quer ver. Quer comprovar. Essa é a lógica do adulto no mundo moderno.
Ter fé – hoje e em todos os tempos – não significa acreditar naquilo que as leis da natureza não conseguem explicar. Fé, no verdadeiro sentido da palavra, é encontrar o sentido último de todas as coisas, inclusive daquilo que a razão explica. A fé não se opõe à razão. Pelo contrário. A fé exige a razão. Ela pressupõe a ciência e tira dela o proveito na medida em que lhe dá subsídios para melhor compreender o que está acontecendo e indagar-se sobre o que isso significa para o ser humano e o mundo.
O oposto da fé é a falta de sentido e não a falta de explicação. A razão explica. A fé compreende. Em outras palavras, a ciência procura explicar o “como” as coisas acontecem. A fé se interessa e tenta explicar o “porque” tais coisas acontecem.
A ciência sem a fé pode tornar-se perigosa. Arrisca enveredar-se por uma busca vaidosa do conhecimento pelo conhecimento e se esquece das consequências que isso tem para o ser humano e para o mundo. É o cientificismo desvairado que pode nos levar ao apocalipse ecológico.
A fé sem ciência transforma-se em curandeirismo necrófilo, em obscurantismo patógeno que descamba no fanatismo totalitário que constrói e alimenta mitos que falsificam a realidade e impedem o encontro com a verdade
Muitas vezes, tanto na pesquisa científica quanto no caminho da fé, o “porque” explicativo se transforma em “por quê” interrogativo. Ao lado da busca, muitas vezes inglória das ciências, há, não raras vezes, a “noite escura da fé”.
Nestes tempos difíceis que nos cabe viver, no trôpego caminho da incerteza que aguilhoa o espírito humano, fé e ciência, vividas na humildade da busca titubeante, precisam dar-se as mãos para alcançar a verdade. E assim, como Tomé, ao ver as mãos de Jesus e tocar seu lado, teve fé e acreditou, também possamos entender racionalmente o que está acontecendo e colocarmo-nos nas mãos de Deus.
Baixe aqui o AUDIO desta reflexão. Caso você o difunda em sua rádio, por favor, comunique-nos pelo email zugno1965@hotmail.com
O
cristianismo é a religião da memória. No
sentido cristão, fazer memória não é apenas lembrar os fatos do passado. É lembrá-los, sim,
mas na medida em que eles continuam atuando em nosso presente e nos conduzindo
para o futuro.
O
cristianismo não inventou isso. É uma herança das raízes judaicas. Na Páscoa
judaica, o pai, ao redor da mesa com a família, lembrava aos filhos a
trajetória do povo, desde os tempos de peregrinação no deserto, a descida para
o Egito, a escravidão que sofreram durante quatro séculos e, finalmente, a
libertação que Deus lhes havia proporcionado. Recordar o passado de escravidão
e a libertação operada por Deus era a forma de vacinar o povo contra a sedução
das novas escravidões.
Na
última Páscoa que passou com seus discípulos, Jesus celebrou com eles a memória
da libertação. Como mandava a tradição repartiu o pão e o vinho. O pão lembrava
a comida para o povo faminto e o vinho a alegria pra os que viviam a dor e o
sofrimento. Era o compromisso de continuar fiel a Deus e fiel ao povo.
Jesus
pagou caro por sua fidelidade ao projeto de Deus de dar pão aos famintos e
alegria aos entristecidos. Foi crucificado e morto na cruz. Mas Deus o
ressuscitou e os discípulos reconheceram que Ele estava presente e atuante na
pessoa de Jesus. E que, para ser fiel a Deus, era preciso fazer a memória de
Jesus e de tudo o que Ele tinha feito.
Na
Vigília Pascal, renovamos nosso compromisso com Cristo. Fazemos a Grande
Memória da libertação do povo de Israel e da entrega de Jesus Cristo para a
nossa salvação. Na memória desse passado, afirmarmos nosso compromisso de viver
no presente aquilo que Jesus viveu afim de que o futuro seja de vida nova para
todos.
Este
ano, a Páscoa terá um sabor especial. As circunstâncias forçam-nos a vivê-la de
um modo diferente. Não haverá viagens. Não haverá festas. Nem celebrações
litúrgicas públicas. O isolamento social imposto pela Covid19 nos obriga a
passar a Páscoa em casa, com nossas famílias. Muitos a passarão sozinhos.
Outros em hospitais. E também haverá aqueles que a passarão chorando seus
mortos. Os “coelhinhos da Páscoa” desapareceram. Assim como raros serão os
chocolates. A mesa não será tão farta como costuma ser nas festas pascais.
Será
uma Páscoa diferente, de silêncio e de reflexão. Talvez a oportunidade para, em
meio à apreensão, à dor e ao sofrimento, retomarmos o costume de fazer a Memória
Pascal. Lembrar a ação libertadora de Deus e renovar o compromisso de, com
Jesus, colocar a nossa vida a serviço dos que tem a sua vida ameaçada pelo
coronavírus e pelos discursos de morte que ameaçam a sobrevivência dos débeis e
dos pobres.
Afinal,
como lembra Pedro em seu discurso na casa de Cornélio, “vocês sabem o que
aconteceu...”
Uma
boa Páscoa de Ressurreição a todos e a todas.
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Tenho medo, sim! E não
tenho medo de dizer que tenho medo... Dizê-lo com todas as palavras, é uma
forma de afastá-lo e poder viver com os medos que me atormentam no dia a dia.
São muitos medos: de morrer antes do tempo, medo de nunca mais ver a pessoa
amiga que não vejo há tanto tempo, medo de sair de noite, de ser assaltado,
medo de aranhas, de subir num lugar alto... Medos medíocres e grandes medos!
Ter medo é natural no
ser humano. Faz parte da dinâmica de preservação. É uma proteção que nos impede
de ir em direção ao perigo. O sujeito mais perigoso é o que não tem medo. Ele é
capaz de arriscar a própria vida por qualquer coisa. Traficantes e milicianos
utilizam jovens e crianças em suas ações assassinas. Elas não têm medo de
morrer, pois ainda não sabem o valor da vida.
O medo coletivo pode
ser utilizado como estratégia de controle social. Jean Delumeau mostra isso no
livro clássico “A História do Medo no Ocidente”. Tanto as religiões como o
poder político utilizaram o medo para controlar fieis e súditos. Medo do
inferno e medo da cadeia. A política do terror é corrente no Ocidente. Do
terror da Revolução Francesa ao terrorismo islâmico. Michel Foucault, por sua
vez, nos mostrou que a manipulação do medo, nas sociedades modernas, foi
integrada nos dispositivos da biopolítica. Impor o medo sobre a população é uma
forma de fazer política. E isso conhecemos muito bem no Brasil atual.
Nesse momento, tenho
medo do coronavírus. Ele é invisível. Circula por todos os lugares de forma
ágil e sorrateira e, quando se instala nos pulmões de uma pessoa, é o terror!
Mata por sufocamento. Tenho medo da Covid19. Muito medo!
Mas
tenho mais medo daqueles que não têm medo da Covid19. Ou que aparentam não ter
medo. Sua falta de medo é um perigo para a sociedade tão grande ou maior que a
própria pandemia. Porque, quem não tem medo, além de expor-se à própria morte,
é capaz de provocar a morte dos outros.
Diante de um perigo, precisamos nos
proteger. Não com armas e muito menos com mentiras! É preciso encarar o perigo
com tranquilidade e, no caso da Covid19, com os recursos da ciência.
Neste Domingo de Ramos, lembramos a
entrada de Jesus em Jerusalém. Ele entrou na cidade com medo. Sabia que nela
estavam os chefes do povo judeu que tanto o odiavam. E aí estavam também os
soldados romanos prontos para controlar, pelo medo, a população judaica.
Jesus não se armou. Ele
dispensou cavalos e soldados. Entrou montado num jumento. Um animal pacífico
que não servia para a guerra. Entrou acompanhado por mulheres e crianças que o aclamavam
com ramos de paz. Diante do medo dos discípulos que mandavam as pessoas
calarem, Jesus seguiu seu caminho proclamando a verdade.
É
tempo de pensarmos em nossos medos. E na forma como os enfrentamos. Fingindo
que não temos medo e caminhando para a morte ou assumindo nossos medos e
afrontando-os com a coragem da verdade.
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A atual pandemia do covid19 é um
momento de dor e sofrimento para toda a humanidade. Principalmente para os
países, cidades, comunidades, famílias e pessoas atingidas. Para os que morrem
e para os que ficam chorando seus mortos.
É ocasião para a solidariedade e
compaixão que, devido às características de transmissão do coronavírus, tem sua
melhor expressão no isolamento social. Quanto menos contato físico com as
pessoas, mais as estamos ajudando!
É uma pandemia que nos obriga à
solidão, ao silêncio e à reflexão. Hábitos esquecidos e até desprezados na
sociedade da hiperconexão e da interação. Da dificuldade de introspecção de uma
cultura voltada para a autoimagem projetada, nascem dois sentimentos
aparentemente opostos: a agressão e a depressão.
Nas redes sociais vemos amigos e
amigas virtuais expressar a incapacidade de estar consigo mesmos através da
agressão a toda e qualquer pessoa que sente, pensa e comunica diferente do que
eles gostariam. É a tentação da alma vazia, do espírito incapaz de encontrar-se
consigo mesmo, do medo de se olhar no espelho interior e se deparar com o horror vacui da própria existência. Vazio
que se projeta agressivamente sobre os outros tentando destruir neles o que não
quer apagar de si mesmo.
Por outro lado está a tentação de
preencher o vazio de sentido da existência através do consumo de coisas
desnecessárias. Horas e horas de shopping, de cinema, de teatro, de
restaurantes, de séries televisivas, novelas, viagens e tantas outras coisas
mais, com a única finalidade de empanturrar o interior de bens. É o acumulador
típico do mercado capitalista. Ele morre sufocado pelos objetos dos quais não
necessita. Agora que a pandemia do covid19 o impede de consumir, padece o delirium tremens do consumismo e corre o
risco da implosão depressiva.
A covid19 é uma doença física
grave. Não é uma gripezinha qualquer. Ela mata. Mais de 15 mil pessoas já
perderam a vida. Infelizmente, muitas outras a perderão. A humanidade demorará
anos, talvez décadas, para refazer-se.
Mas a covi19 também revela uma
doença da alma. De uma humanidade que coloca a economia acima da vida das
pessoas e da vida dos outros seres que habitam o mesmo sistema Terra.
É importante que se faça tudo o
que é possível para impedir o avanço da pandemia. É importante que se descubra
logo um tratamento para os já infectados. Todos os esforços devem ser envidados
nesta direção e sem tergiversação e atitudes diversionistas, seja por parte dos
cidadãos como dos governantes.
Mas é importante que saiamos
desta pandemia com uma alma nova, com a capacidade de olhar para dentro de nós
mesmos e percebermos que não podemos transformar nossas vidas, a vida da
humanidade e do Planeta Terra em uma sepultura onde jazem os restos das pessoas
que amamos.
Para os que creem na Ressurreição,
não há quarto dia. Lázaro está vivo e pode, sim, sair do túmulo e iniciar uma
vida nova. __________________________________________________ Siga-nos em nosso canal no YouTube
A maioria de nós
tivemos um dia a ocasião de ler a carta escrita, em 1854, pelo Cacique Seattle
ao Presidente dos Estados Unidos, quando este lhe propôs a compra de suas
terras. Naquela carta, que é um poema de amor à criação, entre outras
afirmações, dizia Seattle: “Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o
homem pertence a terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas, como o
sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo”.
A consciência de que
os humanos pertencemos ao conjunto da criação e de que tudo está interligado
são eixos estruturadores da Carta Encíclica Laudato
Sì do Papa Francisco.
Com pontos de partida
diferentes – a cultura milenar dos povos originários deste continente e a
cultura judaico-cristã – o Cacique Seattle e o Papa Francisco chegam à mesma
conclusão. Por que, então, temos tanta dificuldade em organizar nossas vidas a
partir destes princípios básicos que garantiriam a sobrevivência da espécie
humana e de todas as outras formas de vida vegetal e animal?
A nosso modo de ver,
por duas razões. A primeira, pela dificuldade em aceitarmos nossa fragilidade
humana. Somos seres mortais, tão mortais quanto os outros animais e nossa vida
neste mundo é fugaz e poucos ou ninguém lembrará de nós depois da nossa morte.
A outra razão, conexa com a primeira, é a tentação de nos pensarmos como
senhores da criação, com direito a tudo dominar e a tudo explorar. Tanto os
seres humanos como as outras criaturas. Temos dificuldade em aceitar que não
somos senhores, mas cuidadores da criação.
A atual pandemia
provocada pelo coronavírus é ocasião para lembrarmos e pensarmos nisso. Com
todo o avanço científico e tecnológico, estamos ameaçados por um simples vírus.
Ou não seria exatamente por causa de uma ciência incapazes de perceber o ser
humano em sua relação com a criação as causas desta pandemia que tanto assusta?
Precisamos rever a
forma como os humanos nos situamos no mundo. E o tempo quaresmal é adequado
para isso. Iniciamos este tempo litúrgico lembrando que somos pó e que ao pó
voltaremos. É um chamado à humildade, à simplicidade, à humanidade nas suas
formas básicas e fundamentais.
A Palavra de Deus
lembra que, num mundo tomado pela doença e agressão, deste mesmo pó da terra,
quando conformado pelo sopro e pela saliva divina, pode nascer a esperança da
cura e da vida nova. Do pó da terra fomos criados pelo sopro divino. E Jesus,
diante do cego que tem sua vida ameaçada pela insensibilidade e prepotência dos
fariseus, junta sua saliva ao pós da terra e devolve a luz e a capacidade de
sobreviver.
Deixar que a
fragilidade humana seja conformada pelo sopro divino que compartilhamos com
todas as outras criaturas é um caminho para construir um mundo mais convivial
onde todos, humanos e não humanos, podemos conviver em harmonia.
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Não vou falar aqui das fake news que
invadem as redes sociais e da infodemia
que se gerou em torno ao coronavírus. Simplesmente lamento que, em pleno século
XXI, quando os cientistas conseguem desvendar, em 24 horas, o genoma de um
vírus e, outros cientistas, em longos anos de pesquisa, ajudam-nos a compreender
os mistérios do universo, ainda somos obrigados a ouvir pessoas afirmando que
uma doença é castigo de Deus ou que a Terra é plana e que os astronautas nunca
pisaram na Lua. Não é fácil... Mas, no fundo, este é um problema derivado.
De
fato e o que realmente deve nos preocupar, é a raiz desta insanidade que hoje
parece tomar conta de nossa sociedade e leva a atitudes de intolerância,
violência e desejo de extermínio do outro. A raiz de tudo isso, é a dificuldade
de encarar a verdade sobre nós mesmos.
A
aceleração do tempo gerada pelas condições extremas de trabalho – penso num
motorista de aplicativo que tem que trabalhar 12 ou 16 horas por dia – e o
impacto alucinante das mídias sociais sobre o nosso cérebro, faz com que
estejamos sempre voltados para fora e incapazes de olhar para o interior de nós
mesmos e fazermos aquelas perguntas básicas que estão na origem de toda
filosofia e de toda religião: quem sou, de onde vim e para onde vou? Em outras
palavras: qual o sentido da minha vida? Como estou vivendo o tempo que me cabe habitar
neste mundo?
Quando
não paramos para pensar no fundamental, é fácil ser tentado a colocar nos
outros a culpa por tudo aquilo que de mal acontece. Se não sei porque estou a
viver, a solução fácil que desobriga a pensar, é culpar o irmão, o pai, a mãe,
o filho, o vizinho, o colega de trabalho ou de faculdade, o professor, o
patrão, a empregada, o estrangeiro, os chineses, o prefeito, o presidente, a
oposição. E, da culpabilização à agressão e extermínio, é só um passo, fácil de
ser franqueado, quando se tem as armas do poder.
O
diálogo de Jesus com a samaritana junto ao Poço de Jacó é uma amostra de como é
difícil, mas necessário, olhar para dentro de nós mesmos, para o fundo do poço
da nossa existência, para reconhecermos quem somos, quem são os outros e quem é
Deus.
No
diálogo, Jesus não ensina nenhuma novidade à mulher. Apenas a ajuda a perceber
quem ela é em seu presente e em seu passado. E não só a história pessoal, mas a
história de seu povo – os samaritanos – e do povo de Israel a quem havia sido
ensinada a odiar.
A
verdade estava ali, na sua frente, no fundo do poço cavado pelo patriarca Jacó.
Estava dentro dela mesma e na sua vida sofrida que a obrigara a ter cinco
maridos. Estava na cidade que a segregava e não lhe permitia ir junto com as
outras mulheres buscar água no poço. Estava em Jesus que com ela dialogava,
despido de todo e qualquer preconceito.
No
momento em que pôde olhar para a verdade e compreendê-la, a mulher deixou de
odiar-se a si mesma, deixou de odiar a cidade que a discriminava e violentava,
deixou de odiar a Jesus, o judeu que estava à sua frente. E passou a anunciar a
verdade que encontrara no fundo do poço de si mesma e de seu povo.
Que
o caminho da Quaresma, com seu jejum e sua penitência, nos impeça de jogar a
verdade no fundo do poço do ensimesmamento e nos dê forças para descobri-la e
proclamá-la a todos e todas.
Dois lados nada brilhantes da sociedade brasileira a
serem considerados neste Dia Internacional da Mulher. De um lado, a realidade
laboral. Em todas as empresas, em todas as funções, desde as básicas até as
gerenciais, as mulheres, exercendo as mesmas funções que os homens, ganham, em
média, 30% a menos que os homens.
Nas profissões que exigem menos qualificação, a
diferença é menor. Nas profissões ditas “de ponta”, a diferença pode ultrapassar
os 100%. Ou seja, os homens ganham o dobro das mulheres, pelo simples fato de
serem homens... Segundo dados do IBGE, em 2019, a renda média dos homens
brasileiros foi de R$2.043,00. A renda média das mulheres, por sua vez, foi de
R$ 1.762,00. Uma diferença de R$ 489,00.
O que explica isso? Apenas uma razão: o machismo que
impregna a sociedade brasileira como um todo e se expressa no mundo do trabalho
onde uma mulher, mesmo tendo a mesma formação e desempenhando a mesma função,
recebe uma remuneração inferior à de um homem nas mesmas condições.
O outro dado, ainda mais estarrecedor do que o
primeiro, é o da violência contra a mulher. No Brasil, a cada quatro minutos,
uma mulher é vítima de violência física, sexual ou psicológica. Número que
inclui apenas os casos notificados em que as vítimas sobreviveram. E todos
sabemos que os casos não notificados são muito mais numerosos que os que chegam
aos registros policiais ou médicos. A cada duas horas, uma mulher é estuprada. No ano de 2017, no Brasil, 4.396 mulheres
foram assassinadas pelo simples fato de serem mulheres, ou seja, casos
tipificados como feminicídios.
As maiores vítimas de violência sexual são mulheres
com até 19 anos, ou seja, crianças e adolescentes. A violência física é
cometida principalmente contra mulheres entre 20 e 39 anos.
O mais aterrador destes dados – já de por si
assustadores – é que 70% dos atos violentos contra as mulheres acontecem dentro
do próprio ambiente familiar. Os principais abusadores de crianças e
adolescentes são os pais, avôs, tios, irmãos, primos... 36% das agressões
físicas contra as mulheres adultas são cometidos pelo cônjuge e 14% por ex-maridos
ou ex-companheiros. Apenas 9% das agressões contra as mulheres são cometidas
por desconhecidos.
Que dizer de tudo isso e de outros dados que
poderiam ser acrescentados? Primeiro, que é necessário, assim como foi naquele
março de 1911, quando 125 mulheres e 21 homens
em greve foram queimados dentro de uma fábrica nos Estados Unidos, continuar
lutando pela igualdade de gênero. Sonhamos com uma sociedade em que ninguém
seja julgado melhor ou pior pelo fato de ser homem ou ser mulher.
É o primeiro passo que, para ser
pleno, necessita de um segundo: o da transparência nas relações entre homens e
mulheres. Na nossa sociedade, as mulheres sofrem, em todos os âmbitos das relações,
a violência do machismo. Isso não pode ser negado, ocultado, disfarçado. Precisa
ser dito e superado. Mas para isso é preciso superar as masculinidades tóxicas
que fazem sofrer as mulheres e também fazem sofrer os homens. Como dizia Paulo
Freire, o opressor, ao mesmo tempo em que desumaniza o oprimido, se desumaniza
a si mesmo.
A igualdade de gênero buscada pelas
mulheres não é um perigo para os homens. Pelo contrário... É a ocasião para os
homens libertarmo-nos da condição de opressores que – consciente ou inconscientemente
– carregamos dentro de nós e possamos realizar a transfiguração do nosso ser
masculino para que, homens e mulheres, possamos conviver em harmoniosa
diferença e pluralidade. ________________________ Siga-nos em nosso canal no YouTube
Carnaval é festa. É transgressão. É subversão da ordem. É tempo
de alegria e de ilusão. É ser por alguns dias aquilo que não se é
e, nessa doce sensação, extravasar os desejos reprimidos pelas
convenções e normas sociais.
Por isso, o símbolo maior do carnaval é a fantasia. Ela mostra a
cara daquilo que não somos mas gostaríamos de ser. As fantasias,
por mais exóticas que pareçam, revelam as mazelas e os desejos
populares. Como filosofava Joãozinho Trinta, numa sociedade de
pobres, a fantasia mais desejada é a que ostenta riqueza. Na mesma
direção, podemos dizer que, numa sociedade de corpos reprimidos, a
nudez dissimulada é a vitória, mesmo que momentânea, da
autenticidade de ser homem e mulher em todas as formas e gêneros.
Numa sociedade de repressão, o palavrão, a bebedeira, a
transgressão, permitem viver a liberdade negada no dia a dia.
Quando o carnaval, livre das amarras do poder, traduz com músicas,
danças, cores e amores os anseios populares, ele deixa de ser
fantasia e se transforma em utopia. Que o diga o samba enredo da
Estação Primeira da Mangueira: “Favela, pega a visão, não tem
futuro sem partilha, nem messias de arma na mão. Favela, pega a
visão, eu faço fé na minha gente que é semente do seu chão”.
Mas o carnaval passou. É hora de voltar ao normal. Hora de voltar ao
real. Volta que não implica no esquecimento das fantasias que
impulsionaram o sonho. Pelo contrário, elas permanecem como critério
para as duras escolhas do dia a dia. Afinal, para a fantasia se
tornar realidade, é preciso escolher entre o sonho que alimenta a
esperança e o fascínio do passado e do presente que nos dão
segurança.
Para iniciar a longa marcha da transformação em direção à
utopia, é preciso iniciar com uma opção: a quem vamos servir?
Àqueles que sufocam nossos sonhos com o discurso do conformismo ou
àquele que nos provoca à aventura dos caminhos nunca dantes
percorridos?
É o momento da prova, o momento da tentação. Ele sempre marca o
início de um novo projeto. Adão e Eva, no paraíso, foram colocados
diante de uma escolha. Eles optaram pela satisfação imediata de um
desejo que era real. Mas a satisfação no imediato ocultou o sonho
do futuro. A fantasia do paraíso aqui e agora tornou-se sofrimento,
dor e peso. Querer o céu na terra, aqui e agora, pode tornar-se o
pior dos infernos.
Jesus, no início de sua missão, também passou pela tentação de
abandonar o sonho do Reino em troca da acomodação aos poderes que
tudo lhe ofereciam. Ele não sucumbiu. Preferiu sonhar com a fantasia
divina onde a festa é para todos e não apenas para alguns. Na festa
de Jesus, entram, cantam e dançam toda classe de pessoas. Pecadores,
prostitutas, estrangeiros, judeus descumpridores da lei, doentes,
mulheres, velhos, crianças... E aqueles e aquelas que, por medo ou
pudor, não querem com eles e elas se misturar, ficarão fora da
festa.
Jesus pagou caro por esse seu sonho. A quaresma termina com a cruz e
a paixão. Mas ele não deixou de sonhar. Não esqueceu da alegria do
encontro com Deus, sem leis e sem repressão. Por isso, o caminho da
Quaresma, que segue ao Carnaval, não é apenas tempo de penitência. É tempo de continuar sonhando na ilusão de que a festa da inclusão
seja plenificada pela festa da Ressurreição.