quarta-feira, 13 de dezembro de 2017
sexta-feira, 1 de dezembro de 2017
Entre tinieblas
O filme é antigo. Em português ganhou o título de “Maus hábitos”. Foi o primeiro rodado por Pedro Almodóvar em um estúdio e com uma equipe profissional. Era o ano de 1983. A Espanha ainda vivia a transição do franquismo para o regime democrático. A liberdade de expressão era uma novidade e o genial cineasta surge em meio à movida madrileña atacando um dos pilares da ditadura que governara o país ibérico desde a década de 1930 através do terror e da formação das consciências dentro de uma rígida moral católica tradicionalista.
O argumento do filme, no original intitulado “Entre tinieblas”, é simples: uma cantora de cabaré, Yolanda Bel, leva uma vida desregrada, regada a drogas e sexo, até o dia em que presencia a morte de seu namorado por overdose. Para fugir da polícia que a busca por tráfico, Yolanda se refugia num mosteiro de religiosas. Para estranheza da fugitiva, todas as irmãs do convento haviam sido prostitutas, cafetinas, viciadas, criminosas ou duas ou mais destas coisas ao mesmo tempo...
A Congregação da qual o convento faz parte é a das “Redentoras Humilhadas”. Para indicar a missão, todas elas abandonam seus antigos nomes e adotam nomes que indicam sua condição pecadora. Seu objetivo é resgatar jovens mulheres que vivem no pecado. Aos poucos, e para surpresa sua, Yolanda descobre que as irmãs, no afã de extirpar os vícios das jovens mulheres da sociedade madrilena, elas mesmas continuavam vítimas dos vícios que condenavam nas outras. A tensão gerada pelo afã da dura missão fazia com que, cada uma delas encontrasse nos vícios que pretendia combater uma válvula de escape para tornar a vida na clausura mais suportável.
Assim, a Madre Superiora, que se dedica a acolher as jovens que, como Yolanda, eram presas pela prostituição, ela mesma acabava criando jogos de sedução e prazer sexual com as novatas que chegam ao convento. Irmã Perdida, por sua vez, que tem como preocupação acolher as dependentes de drogas, faz do consumo do LSD um caminho para supostas para experiências espirituais que, na verdade, são experiências químicas. Irmã Ratazana de Esgoto e Irmã Víbora, recuperadoras de mulheres que vivem a frívola vida da ascendente burguesia espanhola impulsionada pela retomada econômica da Europa, têm como passatempo, a primeira, escrever, sob pseudônimo, livros sensacionalistas e, a segunda, criar roupas vanguardistas para os santos da capela do convento.
O roteiro do filme avança com a complexidade das tramas típicas de Pedro Almodóvar que levariam a clássicos como “Carne Trêmula” (1997), “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), “Fale com Ela” (2002), “Má Educação” (2004) e o insuperável “Volver” (2006). Ah! E não podia de deixar de mencionar “A Pele que Habito” (2011).
Mas voltemos a “Entre Tinieblas/Maus Hábitos”. Lembrei deste filme ontem, quando vi, estupefato, na televisão, a imagem das três equipes da Força Tarefa da Lava Jato reunidas no Rio de Janeiro para preparar o Combate Final (sic!) contra a corrupção no Brasil. Combate que, segundo o porta voz das equipes, o impagável Profeta-do-Apocalipse-do-Power-Point-das-Bolinhas-Azuis, terá que ser assestado antes das eleições de 2018. A televisão, numa mise em scène típica de um filme de segunda categoria, ia focando um a um os personagens da insólita reunião. A medida que os rostos iam aparecendo em close up, não tive como não lembrar da Madre Superiora, da Irmã Perdida, da Irmã Ratazana de Esgoto e da Irmã Víbora e sua tentativa de livrar o mundo dos vícios.
E, como a fugitiva Yolanda, me perguntei: será que, para acabar com a corrupção, teremos que nos tornar tão corruptos quanto aqueles que queremos combater? Só a genialidade de uma trama de Almodóvar para nos conduzir na busca de uma saída para o labirinto de trevas em que nossos maus hábitos nos colocaram.
terça-feira, 7 de novembro de 2017
Francisco, Lutero e Francisco
Neste dia 31 de outubro, data em que se comemoram as muitas reformas religiosas do séc. XVI, me encontro a imaginar uma conversa entre Francisco de Assis e Lutero...
- Bom te ver, aqui, Frei Francisco, o grande fundador da Ordem dos Frades Menores.
- Bom te ver também, Frei Martinho, o grande fundador da Igreja Luterana!
- Pois é, Frei Francisco... Mas a verdade é que eu nunca quis fundar uma igreja. Meu único desejo era ver a única Igreja de Cristo toda ela reformada.
- Coincidência, Frei Martinho! Eu também nunca quis fundar uma Ordem Religiosa. Eu só queria que todos os cristãos, desde os mais simples até o Papa, apenas vivessem o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, pobre, humilde e obediente. Até hoje não me conformo que os frades tenham aceito uma regra, conventos, títulos... Tem até frade que é bispo, cardeal! Acho que falhei em alguma coisa.
- Eu também acho que falhei. Eu só queria que a Igreja voltasse a viver o Evangelho de Jesus Cristo e deixasse de se preocupar com riqueza e poder.
- Pois era isso exatamente o que eu queria: uma Igreja pobre e que estivesse junto dos pobres.
- Meu problema acho que foram os príncipes alemães que se aproveitaram da insatisfação religiosa e a direcionaram para seus interesses políticos. E eu, ingenuamente, crendo que eles tivessem boa vontade, me deixei levar por sua proteção e seus benesses. Erro meu!
- Eu resisti até o fim. Renunciei à liderança da fraternidade fugi para as montanhas, fiz jejum, muita oração, meu corpo ficou todo dilacerado, escrevi para os frades um Testamento dizendo quais eram meus desejos e intenções... mas não adiantou! O canto de sereia das benesses eclesiásticas foi mais forte e o movimento foi domesticado. Por sorte teve Clara de Assis, minha companheira desde a juventude, que se manteve até o fim, até fazendo greve de fome. E depois vieram os frades que se chamavam de espirituais, pois diziam que o único superior da Ordem é o Espírito Santo e que os frades não podem ter nenhuma propriedade. Mas foram expulsos da Igreja como hereges...
- Pois, ouviste, Frei Francisco, falar desse Papa que aí está, que aliás, leva o teu nome, o Papa Francisco?
- Sim, e parece que ele também está tendo problemas com a Igreja..
- Mas ele não é o Papa?
-É, sim. Só que é um Papa meio estranho. Ele quer uma Igreja pobre e com os pobres. E muita gente na Igreja, principalmente alguns cardeais, bispos, padres, não estão a fim de deixar seu poder e sua riqueza para servir aos mais fracos e humildes...
- Bah! Se o Papa do meu tempo fosse assim, eu não teria pregado as 95 teses na Igreja de Wittenburg. Teria feito uma aliança com ele e teríamos mudado a Igreja.
- Será que ele vai conseguir mudar a Igreja?
- Eu só espero que os seus seguidores não sejam obrigados a fundar outra Igreja. Já chega de divisões na Igreja de Cristo.
- E eu espero que ele não seja obrigado a fundar mais uma Ordem Religiosa. Já tem demais...
- Prazer te ver, Frei Francisco.
- Prazer foi meu, Frei Martinho. Quer vir jantar lá em casa?
- Com certeza. Mas antes da janta, vais ter que me deixar fazer um sermão sobre a Carta aos Romanos.
- Sem problema! Desde que tu me deixes eu te lavar os pés antes da leitura.
- De acordo. Até logo...
- Bom te ver, aqui, Frei Francisco, o grande fundador da Ordem dos Frades Menores.
- Bom te ver também, Frei Martinho, o grande fundador da Igreja Luterana!
- Pois é, Frei Francisco... Mas a verdade é que eu nunca quis fundar uma igreja. Meu único desejo era ver a única Igreja de Cristo toda ela reformada.
- Coincidência, Frei Martinho! Eu também nunca quis fundar uma Ordem Religiosa. Eu só queria que todos os cristãos, desde os mais simples até o Papa, apenas vivessem o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, pobre, humilde e obediente. Até hoje não me conformo que os frades tenham aceito uma regra, conventos, títulos... Tem até frade que é bispo, cardeal! Acho que falhei em alguma coisa.
- Eu também acho que falhei. Eu só queria que a Igreja voltasse a viver o Evangelho de Jesus Cristo e deixasse de se preocupar com riqueza e poder.
- Pois era isso exatamente o que eu queria: uma Igreja pobre e que estivesse junto dos pobres.
- Meu problema acho que foram os príncipes alemães que se aproveitaram da insatisfação religiosa e a direcionaram para seus interesses políticos. E eu, ingenuamente, crendo que eles tivessem boa vontade, me deixei levar por sua proteção e seus benesses. Erro meu!
- Eu resisti até o fim. Renunciei à liderança da fraternidade fugi para as montanhas, fiz jejum, muita oração, meu corpo ficou todo dilacerado, escrevi para os frades um Testamento dizendo quais eram meus desejos e intenções... mas não adiantou! O canto de sereia das benesses eclesiásticas foi mais forte e o movimento foi domesticado. Por sorte teve Clara de Assis, minha companheira desde a juventude, que se manteve até o fim, até fazendo greve de fome. E depois vieram os frades que se chamavam de espirituais, pois diziam que o único superior da Ordem é o Espírito Santo e que os frades não podem ter nenhuma propriedade. Mas foram expulsos da Igreja como hereges...
- Pois, ouviste, Frei Francisco, falar desse Papa que aí está, que aliás, leva o teu nome, o Papa Francisco?
- Sim, e parece que ele também está tendo problemas com a Igreja..
- Mas ele não é o Papa?
-É, sim. Só que é um Papa meio estranho. Ele quer uma Igreja pobre e com os pobres. E muita gente na Igreja, principalmente alguns cardeais, bispos, padres, não estão a fim de deixar seu poder e sua riqueza para servir aos mais fracos e humildes...
- Bah! Se o Papa do meu tempo fosse assim, eu não teria pregado as 95 teses na Igreja de Wittenburg. Teria feito uma aliança com ele e teríamos mudado a Igreja.
- Será que ele vai conseguir mudar a Igreja?
- Eu só espero que os seus seguidores não sejam obrigados a fundar outra Igreja. Já chega de divisões na Igreja de Cristo.
- E eu espero que ele não seja obrigado a fundar mais uma Ordem Religiosa. Já tem demais...
- Prazer te ver, Frei Francisco.
- Prazer foi meu, Frei Martinho. Quer vir jantar lá em casa?
- Com certeza. Mas antes da janta, vais ter que me deixar fazer um sermão sobre a Carta aos Romanos.
- Sem problema! Desde que tu me deixes eu te lavar os pés antes da leitura.
- De acordo. Até logo...
terça-feira, 31 de outubro de 2017
Quem escala o juiz?
É muito difícil ganhar uma partida de futebol quando o juiz
joga com o time adversário. Todos sabem disso. Tanto na várzea como no futebol
profissional. Nos meus velhos tempos de atleta varzeano, o grande dilema,
quando acertávamos um jogo com algum time de uma comunidade da vizinhança, era
saber se o juiz ia ser “nosso” ou “deles”. Como os acertos normalmente eram de
dois jogos, um em cada localidade, a praxe era que o time visitante indicasse o
juiz. Assim se buscava um equilíbrio entre o fator local e o fator juiz. E isso
era ainda mais grave porque, no futebol varzeano, não havia bandeirinhas. Todas
as decisões eram tomadas monocraticamente pelo todo poderoso árbitro.
Dispensável é dizer que, assim como os jogadores, o árbitro
também era amador. Apitava a partir da experiência e do que ouvia no rádio e
via na televisão que, naquele tempo, começava a aparecer no interior. Os erros
eram muitos. Todos sabiam disso, mas como gostavam de futebol e, sem juiz, não
havia jogo, todos toleravam condescendentemente os erros que, involuntariamente
o árbitro cometia.
A coisa só enfeiava quando o encarregado do apito começava a
tomar decisões com o claro intuito de favorecer o time de sua localidade. Aí havia
três opções. A primeira, substituir o juiz. A segunda, mais radical, era a do
time que se sentia prejudicado retirar-se do campo e, assim, encerrar o jogo. A
terceira, rara, mas possível, era a de partir para a violência física que podia
voltar-se contra o juiz ou contra o time adversário quando esse dava cobertura
aos erros do juiz.
Lembro disso neste momento conturbado do país em que os
juízes encarregados de arbitrar os diferendos sociais jogam sistematicamente a
favor de um dos lados do conflito social. Enquanto absolvem sistematicamente
todas as faltas cometidas pelos principais jogadores de um time, classificam
como faltosas qualquer atitude dos representantes do outro time, mesmo aquelas
que nunca foram cometidas.
Como no futebol de várzea em que nos divertíamos nos
domingos à tarde, para que a paz volte e o “jogo Brasil” possa continuar, o
ideal seria substituir os juízes partidários. Mas como o time por eles
favorecido dificilmente acatará essa possibilidade, restam as outras duas. A
segunda, de o time que se sente prejudicado deixar o Brasil, me parece inviável.
Como e para onde iriam os 97% de brasileiros e brasileiras prejudicadas pela
parcialidade arbitral? Nem duas Argentinas seriam suficientes para acolher a
todos! E lá, pelo que se sabe, as coisas não são muito diferentes. Do outro
lado do Rio da Prata, a parcialidade dos juízes parece ser ainda maior que a do
Brasil.
Meu temor, então, é que só reste a terceira alternativa: que
os que se sentem prejudicados se voltem contra os juízes iníquos e contra
aqueles que sustentam suas decisões que desequilibra o jogo. Com isso, existe a
possibilidade de que o jogo acabe para todos, e da forma mais lamentável
possível. É o que temo neste momento.
sexta-feira, 6 de outubro de 2017
500 anos depois...
Quinta-feira, 28 de setembro de 2017. Um fim de tarde como tantos outros na Praça da Matriz. Temperatura amena, uma leve brisa soprando do Guaíba. Pela Duque de Caxias os carros aceleram em direção sul-norte buscando o caminho da Oswaldo Aranha e da Azenha. Faróis ligados para iluminar o fim da tarde que começa lançar suas sombras por entre os prédios. Sons irritantes das buzinas dos apressados e impacientes. Todos tem pressa de chegar em casa. Da Assembleia Legislativa saem inúmeros funcionários. Ninguém sabe exatamente quantos... São identificáveis pelos ternos e crachás esquecidos sobre o peito. O Palácio Piratini mantem-se impávido em meio ao tumulto. Parece não sentir, assim como soe fazer seu ocupante de plantão, o que se passa ao seu redor. Um fim de tarde como qualquer outro fim de tarde de uma quinta-feira de mais uma primavera porto-alegrense.
Algo estranho, no entanto, acontece no estacionamento público do entorno da Praça da Matriz. Os carros que partem levando seus fatigados ocupantes são imediatamente substituídos por outros carros que giram em busca de vaga. Os flanelinhas estranham. É anormal o movimento. Bom para eles que, alegres com a perspectiva de uma renda extra, em nada se importam com o atípico movimento. Os novos chegantes são, em sua grande maioria, altos, brancos, loiros. Típicos germânicos. Homens e mulheres. Em cada carro estão quatro e até cinco pessoas. As placas dos carros são da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Os chegantes dirigem-se rapidamente em direção à Catedral Nossa Senhora Mãe de Deus. Que irão fazer? A missa vespertina já terminou e a essa hora as pesadas portas já deveriam ter sido fechadas para evitar a entrada de mendigos e moradores de rua. Mas as portas estão abertas e nos degraus e no pórtico de acesso um aglomerado de bispos, padres e, para surpresa de alguns e alegria de muitos, um sem número de pastores luteranos e representantes de outras igrejas cristãs. É noite de festa. É noite de reencontro. É noite para passar do conflito à comunhão. É a celebração ecumênica dos 500 anos da Reforma. Dom Jaime Splenger, Arcebispo de Porto Alegre e anfitrião do encontro, preside ao lado do Pastor Presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), pastor Nestor Paulo Friedrich, da vice-presidente da IECLB, pastora Sílvia Beatrice Genz, e do presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-Religioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Leituras, cantos e exortações alternados entre católicos e luteranos.
Nos bancos ao meu redor, vários conhecidos e conhecidas, tanto católicos como luteranos. Padres e pastores de várias cidades do interior. Entre tantos encontros, a alegria de reencontrar e poder rezar junto com professores e colegas da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo. Catedral repleta. Vozes unidos em torno dAquele que constrói a unidade.
Discretamente me levanto e, girando pelos fundos da catedral, me dirijo à segunda coluna à direita. Nela estão sepultados os dois primeiros bispos de Porto Alegre, Dom Feliciano José Rodrigues de Araújo Prates e Dom Sebastião Dias Laranjeira. Este último, o grande reformador da Igreja Católica no Rio Grande do Sul. Com todo afinco buscou implementar as orientações da Encíclica “Quanta Cura” de Pio IX e o seu complemento, o “Syllabus Errorum...” Em sua participação no Concílio Vaticano I, destacou-se pelo apoio incondicional à tese da infalibilidade papal e o combate à modernidade e ao protestantismo. Na sua ação pastoral, fazia pressão junto ao poder público para que não fossem destinadas verbas para a construção de igrejas protestantes e não fossem reconhecidos pelo Estado os matrimônios luteranos.
Encosto na coluna junto à lápide e apuro o ouvido: silêncio! Bato com o nó dos dedos para ver se há alguma reação: nada! Fico tranquilo... Oxalá continue assim: tudo em paz no mundo dos mortos e tudo em festa no mundo dos vivos.
sexta-feira, 22 de setembro de 2017
Os terraplanistas estão chegando!
O nome é bonito: terraplanista!
Uma espécie para mim nova. Tomei conhecimento dela lendo uma reportagem no site
da BBC. Curioso, comecei a fazer buscas na internet e me dei conta que há
vários grupos deles que se multiplicam pela internet. Alguns ultrapassam o
número dos 70 mil seguidores. Entre eles, pessoas com boa formação acadêmica: técnicos,
engenheiros, profissionais de várias áreas. Também há muitos estudantes
universitários e até alguns professores. Para minha surpresa, um dos grupos
mais ativos tem como administrador um morador da capital dos pampas.
A afirmação dos terraplanistas é
simples: a Terra é plana e seus confins são delimitados por uma cúpula na qual
circulam o sol, a lua e as estrelas que seriam muito menores que a Terra. O
objetivo dos terraplanistas é combater os “globalistas”, ou seja, aqueles que
acreditam que o planeta Terra é redondo.
Por consequência, os
terraplanistas também se opõem aos heliocentristas. O terraplanista é geocentrista. Copérnico, para eles, foi um
mentiroso. Galileu Galilei, idem. A Igreja fez bem em condená-los. Como
argumento para a sua teoria, citam as muitas tradições religiosas que afirmam
que a Terra é o centro do universo. Entre elas, a Bíblia. Para um terraplanista,
a teoria de que a Terra é redonda nada mais é do que uma conspiração de pessoas
antirreligiosas e da Agência Espacial Norte Americana (a NASA) que com isso
pretende ganhar dinheiro e manter a humanidade sob sua dominação. As fotos de
satélite mostrando a Terra redonda seriam uma montagem para enganar os
incautos. Mais: a própria existência de satélites girando ao redor da Terra
seria pura mentira, como mentiroso foi o desembarque do ser humano na Lua.
Ao seguir um grupo de
terraplanistas, me dei conta que muitos deles são também criacionistas. Eles
acreditam que o ser humano, assim como todos os animais e as plantas, foram
criados por Deus assim como são na atualidade. E que a criação deu-se tal qual
está descrito no Livro do Gênesis da Bíblia cristã. No primeiro dia Deus
separou a luz da trevas; no segundo as águas as águas superiores das águas
inferiores; no terceiro separou as águas inferiores da terra e nesta criou as
ervas; no terceiro o sol, a lua e as estrelas; no quinto, foi a vez dos animais
aquáticos, das aves e dos répteis; no sexto Deus criou os animais terrestres e,
entre eles, os humanos sobre os quais soprou seu alento divino. A Teoria da
Evolução das Espécies, para os criacionistas, nada mais é do que uma das tantas
invencionices da modernidade e suas ciências na tentativa de semear a descrença
e o ateísmo. Os fósseis, tanto animais como humanos, encontrados em diversos
lugares do mundo, são apenas grosseiras invencionices para ludibriar bobos.
Outro elo entre terraplanistas e
criacionistas, é o chamado negacionismo. Muitos deles negam veementemente que
seis milhões de judeus tenham sido mortos pelas forças armadas, pela polícia e
pelos diversos grupos paramilitares nazistas alemães no período que antecedeu e
durante a II Guerra Mundial. E, assim como não houve o holocausto dos judeus,
também não houve perseguição e morte de comunistas, ciganos e homossexuais. Os
campos de concentração e extermínio seriam invenção dos próprios judeus,
comunistas, ciganos e homossexuais para se passarem por vítimas e assim
conquistar indenizações e humilhar o povo alemão. Hitler, para os revisionistas
– muitos deles criacionistas e terraplanistas – foi um grande governante que
reergueu a nação alemã que vivia humilhada pelas forças do imperialismo
capitalista e comunista. A prova é que os dois imperialismos se uniram para
derrotar a nação alemã. Mas o IV Reich um dia se reerguerá para restabelecer a
supremacia da raça ariana sobre toda a humanidade.
Entre os terraplanistas,
criacionistas e revisionistas, especialmente os do sul do Brasil, há muitos que
afirmam que as obras de arte devem ser censuradas. Quando eclodiu o episódio da
exposição “Queermuseum” do Santander, vários se pronunciaram afirmando que
aquilo não era obra de arte. Para eles, o próprio conceito de “queer” é algo
que vai contra a natureza já que, pela criação de Deus, ou se é macho ou se é
fêmea. E que as pessoas que se afirmam gays, lésbicas, bissexuais, transexuais,
transgêneres..., nada mais são do que aberrações fruto da ideologia de gênero
semeada pelas forças internacionais imperialistas que pretendem dominar a
humanidade.
De surpresa em surpresa, me dei
conta que muitos censuradores, revisionistas, criacionistas e terraplanistas,
também são a favor da intervenção militar para repor o Brasil nos eixos. Para
eles, o Golpe Militar de 1964 salvou o Brasil do comunismo internacional,
instaurou a moral e os bons costumes e colocou cada um no seu lugar: os
militares para prender e matar; os capitalistas para acumular riquezas; os
trabalhadores para trabalhar; e os vagabundos prá correr. O único erro do
regime militar foi ter deixado figuras como Luiz Carlos Prestes, Miguel Arraes
e Leonel Brizola voltar ao Brasil. Ah! E outro erro dos militares foi deixar-se
influenciar pelo Golbery do Couto e Silva que achava que não havia nenhum
problema com um metalúrgico barbudo de São Bernardo que liderava as greves no
ABC. Deviam ter acabado com ele desde o início... Como não acabaram com o
metalúrgico barbudo na década de 1980 e, por intervenção do imperialismo comunista
internacional, ele chegou ao poder pelo voto do povo ignorante, foi preciso
restabelecer a ordem democrática depondo sua sucessora pelo voto democrático de
parlamentares impolutos. As malas de dinheiro na casa do Geddel e aquelas que o
Rocha Loures levou para Belo Horizonte para entregar ao Aécio, assim como os 23
milhões de dólares que o Serra tem na Suíça, isso é tudo invencionice da
imprensa esquerdista liderada pela Globo que apoiou o golpe. Só não vê quem não
quer!
Nesta Semana Farroupilha, alguns
golpistas, censuradores, revisionistas, criacionistas e terraplanistas estão
com orgulho levantando a bandeira gaúcha para afirmar que a Revolução
Farroupilha foi feita em defesa da liberdade. E que o Massacre de Porongos é
invencionice do movimento negro para denegrir a heroica imagem de Bento
Gonçalves e demais heróis farroupilhas. E que o objetivo deste movimento
revisionista é transformar os CTGs em terreiros. Neles, não mais seria feito
churrasco com carne uruguaia, mas seriam assadas as galinhas e cabritos
oferecidos aos orixás. E que os patrões e prendas seriam substituídos por pais
e mães de santos. E, no lugar da história farroupilha, as professoras dos
colégios ensinariam a história da África e da escravidão que no Rio Grande do
Sul nunca existiu porque o povo gaúcho é amante da liberdade e as charqueadas
de Pelotas são apenas um cenário cinematográfico.
Ah! Alguns gauchistas, golpistas,
censuradores, revisionistas, criacionistas e terraplanistas também acreditam
em ETs, Papai Noel, Coelhinho da Páscoa,
Bicho Papão e Cegonha. Mas isso já são outras histórias...
segunda-feira, 18 de setembro de 2017
O gordinho dono da bola
Todos os que jogamos futebol na
infância conhecemos o caricato personagem do gordinho, filhinho de papai, que
era dono da bola. Nas redondezas, era o único que sempre tinha uma bola nova
para jogar. Quem, como eu e meus irmãos e a maioria dos vizinhos, vivia catando
bolas de segunda mão, costurando um pedaço de uma com a outra, remendando,
fazendo de tudo para ter uma bola para brincar, vivíamos com inveja do
gordinho. Ele sempre tinha uma bola nova, reluzente, colorida, número cinco!
Era o sonho: uma bola nova número cinco... E se fosse da marca “Dal Ponte”,
costurada a mão... Quanta inveja!
E o pior era que o gordinho sabia
do poder de sua bola nova, colorida, número cinco, da marca “Dal Ponte”. Nós,
os “Sem Bola” ou com bolas precárias, remendadas e velhas, concordávamos
tacitamente com o poder que ele tinha, não por mérito seu, mas por ter um pai
que podia comprar-lhe uma bola nova a cada seis meses. Para nós, com pais
trabalhadores, vivendo no limite da necessidade e loucos por futebol, mais
valia fazer as vontades do gordinho e poder jogar com sua bola do que opor-se e
ter que correr atrás de uma bola velha, número três, remendada e descolorida.
Entre as vontades do gordinho
estava a de escalar os times. Ele ditava quem jogava no time dele e quem
jogaria no time adversário. A sorte era que o gordinho, apesar de ser o dono da
bola, não entendia muito de futebol. Ele escolhia os jogadores mais por amizade
do que pela qualidade futebolística de cada um. E como, normalmente, entre
aqueles que o gordinho considerava seus amigos havia alguns que jogavam bem e
outros que jogavam mal, as equipes quase sempre resultavam equilibradas.
O outro direito que o gordinho
fazia valer era o de nunca jogar de goleiro. Era a posição terrível e detestada
por todos. A solução era o revezamento. Cada um jogava um pouco de goleiro e,
depois de um tempo ou de tantos gols feitos, era substituído por um companheiro
do time. Mas o gordinho, usando o poder da bola nova, reluzente, número cinco,
da marca “Dal Ponte”, nunca ia para o gol. Queria sempre jogar de centroavante.
Sim, naqueles tempos havia uma posição na escalação que se chamava
“centroavante”. Era o cara que ficava na frente, fincado entre os dois
zagueiros e, pela força ou pela habilidade, era o encarregado de fazer gols. E
o gordinho não tinha nem uma e nem outra... e, por isso, nunca fazia gol. Todo
mundo queria que ele jogasse ou de lateral direito ou de ponteiro esquerdo. Não
vou explicar aqui para os mais novos o que era um lateral direito ou um
ponteiro esquerdo. Mas, não sei por que – e esse é um dos mistérios do futebol dos
tempos da minha infância que até hoje não foi desvendado – todo perna de pau
era escalado para jogar, ou de lateral direito ou de ponteiro esquerdo. E o
gordinho teimava em jogar de centroavante! E nós tínhamos que aceitar porque
senão, ele enfiava a bola embaixo do braço e ia embora.
A outra situação terrível em que
o gordinho enfiava a bola embaixo do braço e ameaçava ir embora era quando o
time dele começava a perder de goleada. Às vezes até evitávamos fazer muitos
gols no time do gordinho com medo de que a ameaça se concretizasse. Ele
começava a choramingar, a dizer que ia contar tudo para o pai, que nós não
valíamos nada, que ele sabia jogar muito mais que nós e que, desse jeito, ele
não brincava mais. E às vezes a ameaça se tornava realidade... O gordinho
pegava a bola, metia o objeto de desejo e admiração de todos nós entre o braço
e a lateral da barriga e, entre uma lágrima e um muxoxo, saia do campo, tomava
o caminho que levavas às casas bonitas da vila e desaparecia na esquina perto
da mansão onde morava com seu pai e sua mãe. Era o fim do sonho e só nos
sobravam duas alternativas. A primeira era a de também ir embora tomando o
caminho oposto ao tomado pelo gordinho e voltar a nossas casas que ficavam no
lado pobre da vila. Ou então, sair do sonho e voltar à realidade jogando com
uma de nossas bolas velhas, remendadas, descoloridas, número três, que até
aquele momento tinha ficado escondida de vergonha atrás de uma das goleiras.
Não sei porque as lembranças do gordinho dono da
bola me vieram à mente nesta semana quando, no noticiário político, apareceu
aquele apartamento cheio de malas recheadas de dinheiro. As digitais que a polícia
encontrou nas malas indicam que o Sr. Geddel Vieira Lima era responsável pela
presença daquelas malas com todo aquele dinheiro naquele apartamento na cidade
de Salvador. No total, 51 milhões de reais sob a cara gorda e sorridente do
nobre político baiano com trinta anos de carreira e serviços prestados a vários
governos. E aí veio a pergunta que não quer calar: quantas bolas novas,
coloridas, reluzentes, número cinco, da marca “Dal Ponte”, daria para comprar
com todo aquele dinheiro?
sábado, 9 de setembro de 2017
Os odores da vida
Depois do tato, o olfato talvez seja o segundo mais primitivo e fundamental sentido humano. Aproximadamente aos sete dias de vida extra uterina, a criança é capaz de reconhecer os cheiros. E o primeiro cheiro que o bebê reconhece, é o da própria mãe. E, reciprocamente, a mãe é capaz de reconhecer o cheiro típico de seu bebê. E daí, nascem todos os cheiros...
Quem de nós não guarda na memória o cheiro da casa onde nasceu? Ou o cheiro da grama, das flores, das plantas que rodeavam a casa onde fomos criados? Quem de nós já não foi surpreendido por um odor que lhe é familiar e, buscando nos socavões da memória mais primeva, lembrou de um acontecimento, de um lugar, de uma pessoa, de um objeto da primeira infância?
O cheiro da comida da mãe... Inconfundível. E mais: irresistível. O cheiro de pão assando no forno de barro. O aroma dos temperos tão familiares, tão distantes, tão presentes. Tanto quanto pelo sabor, somos atraídos pelo odor da comida. E o cheiro da pessoa amada. Aquele lenço, aquela toalha, a peça de roupa que o enamorado guarda da pessoa que não está presente agora ou se foi para sempre.
Não só as pessoas têm cheiros característicos e inconfundíveis. Os cheiros também são coletivos. Quem já viveu em cidades multiculturais, aprende a identificar claramente os cheiros de cada povo, de cada cultura. Cheiro de indiano, cheiro de africano, de coreano, de chinês, de francês, de alemão... Muitas vezes este cheiro é qualificado como desagradável porque estranho. O cheiro do outro, do diferente, é identificado pelo nosso inconsciente como “cheiro inimigo”. Assim como os animais demarcam seus territórios com o cheiro de glândulas e de urina, nós, animais humanos, também demarcamos nossos territórios culturais através da identificação dos cheiros. É o velho e profundo sentido do olfato ajudando-nos a nos situarmos no mundo e em nossas relações.
E a capacidade do olfato é muito maior do que imaginamos. O cérebro humano tem a capacidade de reconhecer em torno de dez mil diferentes odores e atribuir a cada um deles, conforme a história pessoal e cultural, uma apreciação valorativa: agradável, desagradável, perigoso, atraente, gostoso... O mundo se desenha no olfato.
Nossa sociedade moderna tem medo dos cheiros. Fazemos tudo para que nossos narizes não sejam atingidos por cheiros dos quais não gostamos. Quanto mais inodoro um ambiente, melhor é considerado. Desodorizantes e perfumes ambientais tentam disfarçar ou anular os cheiros dos ambientes por onde circulamos. Até dos odores de nossos corpos temos medo. O mercado dos desodorantes é um dos que se mantém aquecidos mesmo em tempo de crise. Fazemos verdadeiras ginásticas, às vezes até prejudiciais à saúde, para disfarçar os odores que nosso corpo, naturalmente, emite.
Muitas vezes, mais do que desodorizontes e perfumes, o melhor mesmo seria abrir as janelas para que o ar fresco e perfumado da natureza penetre as casas. Mas teimamos em domesticar os odores. E isso nos limita, nos faz sofrer, nos torna assépticos e insensíveis. A cada manhã, abrir a janela, alargar as narinas, sorver o ar novo... E reaprender a ser humanos, com nossos odores, com nossos amores.
quinta-feira, 24 de agosto de 2017
Você sabe o que é caviar?
Com essa pergunta, Zeca Pagodinho inicia o refrão de uma das músicas mais questionadoras do seu amplo e excelente repertório. Ela nos chama atenção para o sentido do paladar. Um sentido que utilizamos muitas vezes ao dia e ao qual nem sempre damos a devida atenção mas que é fundamental para a nossa sobrevivência. É ele que nos permite realizar de forma eficaz uma das necessidades elementares do ser humano: comer!
Sem comer, morremos por inanição. Mas também não podemos comer qualquer coisa. Comer sem critério, também pode levar à morte. Não apenas porque podemos comer demais. E esse é um dos grandes males da atualidade, a obesidade. Mas também porque podemos comer algo que faça mal à nossa saúde.
A função do paladar é selecionar aquilo que comemos. Fazemos isso através dos milhares de botões gustativos – assim os chamam os estudiosos da anatomia humana – que recobrem nossa língua e nos permitem identificar os alimentos e classificá-los conforme os cinco gostos básicos: doce, salgado, amargo, azedo e umami.Através desta seleção básica, o corpo identifica o que é bom para ser comido e o que pode fazer mal ao corpo.
Mas, além do gosto, existe também o sabor. Gosto e sabor não são a mesma coisa. O gosto é a reação química do corpo diante do que é colocado na boca. Sabor, é algo mais complexo. É a combinação do gosto com outros sentidos – a visão, o tato e o olfato – e com toda uma aprendizagem do que é agradável e desagradável. Por isso, há comidas que são amargas e consideradas saborosas; outras, também amargas, consideradas como não saborosas. O mesmo com comidas ácidas, salgadas e doces... Há um doce que dá prazer; outros doces que são nojentos e nosso corpo rejeita. E a mesma comida ou bebida, para um grupo social pode ser considerada saborosa enquanto para outro é asquerosa. Tudo é uma questão de aprendizagem.
Por isso, o paladar, além de um fato biológico, é também um fato cultural. E, por tocar algo que é fundamental ao ser humano, é um elemento fundamental para identificar uma sociedade. Como nos lembrar os sociólogos Farb e Armagelos, “em todas as sociedades, o ato de comer é o modo básico de iniciar e manter relações humanas. Quando o antropólogo descobre onde, quando e com quem se dá a alimentação, pode-se inferir quase tudo mais sobre as relações entre os membros da sociedade. Saber o quê, onde, como, quando e com quem as pessoas comem é conhecer o caráter de sua sociedade”.
Voltando a Zeca Pagodinho, há gente que faz questão de dizer que come caviar e toma champanhe francês. Outros, preferem arroz, feijão, ovo frito e torresmo. Os primeiros, normalmente, o fazem por opção. Os segundos, os que comem todo dia feijão, arroz e ovo frito, normalmente o fazem porque não tem outra opção.
A capacidade da comida em revelar quem são as pessoas e como é a sociedade é tal que poderíamos dizer: “diga-me o que e com quem comes, e eu te direi quem tu és”. Ou, como diz o velho filósofo Feuerbach, “o ser humano é aquilo que come”.
Em qualquer uma das nossas cidades, é fácil saber quem come nos restaurantes onde um almoço ou janta passa dos cem reais e os que almoçam todos os dias no Restaurante Popular ou então nos sopões dos Centros Espíritas. Os que comem num lugar, não se misturam com os que comem no outro. Cada um na sua mesa e com suas companhias.
Os restaurantes são seletivos. A comida é seletiva. O paladar é seletivo. E seletiva é a sociedade, como a brasileira, que, segundo dados da EMBRAPA, 40% do alimento produzido é desperdiçado, desde o início do processo de sua produção, na colheita, no armazenamento, transporte, distribuição, preparação da comida e até o descarte depois das refeições realizadas. Enquanto isso, 20% da população brasileira sofre de carência alimentar... Nos Estados Unidos, o desperdício é de 50% do produzido. Com a comida desperdiçada só nos Estados Unidos, seria possível saciar todos os famintos do mundo.
Assim que, ao comer, somos convidados a sentir o sabor dos alimentos. Mas a também perguntar-nos por quem está à nossa mesa e também por aqueles que não tem uma mesa e com quem comer e muito menos o que comer. Bom apetite!
sexta-feira, 18 de agosto de 2017
Tocar o intocável
O tato é o mais
primitivo e o mais amplo dos sentidos humanos. Quando nascemos, nossos olhos
ainda estão fechados, nossos ouvidos ainda estão surdos... nosso contato com o
mundo se dá através da nossa pele.
O maior conforto para
uma criança, logo ao nascer, é ser colocada sobre o corpo da mãe. Sentir o
calor do corpo materno dá para o recém nascido o conforto e a segurança para
superar a violência do parto. O mesmo diga-se para a mãe. Sentir o corpo da
criança junto ao seu dá a ela a sensação de que tudo está bem com a criança.
Hoje, depois de séculos de uma medicina asséptica, médicos voltam a descobrir
essa realidade tão primitiva da experiência humana: o tato é o mais primitivo e
mais profundo dos sentidos. Ele nos remete ao início da vida.
O tato como primitiva
expressão da relação humana, também se manifesta quando queremos dizer a alguém
que o amamos. Não basta dizer. Temos que nos aproximar e demonstrá-lo
fisicamente. Num ambiente formal, simplesmente apertamos as mãos. É distante,
mas já é um contato. Quanto temos um pouco mais de proximidade, beijamos o
rosto da outra pessoa e nos deixamos beijar.
Quando esta proximidade
ainda é maior, a proximidade se aprofunda e partimos para o abraço que aperta
cada vez mais na medida em que queremos expressar a profundidade do sentimento
que experimentamos pelo outro.
Num casal de amantes, o
beijo, do rosto, passa aos lábios, à boca, fazendo-se expressão do encontro
total dos dois que já não são dois, mas passam a ser um. A culminância do encontro
táctil se dá na relação sexual, momento em que todo o corpo é tocado, na sua
exterioridade e na sua intimidade, pelo corpo do outro.
Muitas vezes, quando
representamos os sentidos, para falar do tato, desenhamos as mãos. Ledo engano.
As mãos são a ínfima expressão do tato. O tato está presente em toda a
superfície de nossa pele. Da ponta dos dedos dos pés até o alto da nuca. São,
em média, dois metros quadrados de pele com cinco tipos de sensores que
permitem ao nosso corpo sentir o mundo ao seu redor. Sentimos frio, calor,
prazer e dor. É o sentido quantitativamente mais amplo no ser humano. Quando
pisamos numa superfície quente ou fria, é o tato que está na sola dos nossos
pés que sente. Todos já sentimos um frio subir pelas pernas. Ou um frio na barriga.
Ou um calor... ou frio na nuca, nas costas, no ventre! Toda a superfície de
nosso corpo é táctil. Ao mesmo tempo que protege o interior do nosso corpo, a
pele nos coloca em contato e comunicação com o exterior.
Convido-as também a
pensar em situações em que o sentido do tato não é permitido. Por exemplo, uma
mãe que, ao parir o filho ou a filha, é privada do contato com a criatura que
saiu de seu ventre. Não poder tocá-lo, sentir seu calor, sua pele, tê-lo sobre
seu regaço... E, do lado da criança, como medir o trauma de sair do calor do
ventre materno e não mais ter contato com aquele corpo que o gerou? Penso nas
crianças que nasciam nos leprosários. Conheci o de Itapuã, em Viamão, pertinho
de Porto Alegre. As mães leprosas, ao engravidar, sabiam que nunca tocariam
seus filhos depois que saíssem de seus ventres. A cadeira de parto, de madeira,
era colocada numa janelinha entre uma sala e outra. A sala das leprosas, onde
ficava a mãe e a sala dos sãos, onde ficava a enfermeira. Ao nascer, a criança
passava de uma sala para a outra. A criança apenas era mostrada para a mãe que
nunca poderia tocá-la...
Alguém já fez a
experiência de, ao estender a mão para saudar alguém, ter a mão do outro
negada? Ou então, de ver o rosto desviar-se quando se aproximava para o beijo?
Ou então, aquele abraço frio, mecânico, sem calor, sem sentimento?
Poderíamos também falar
– e é preciso falar – daquele toque da pele agressivo, violento, impositivo.
Aquele toque na pele indesejado, ofensivo, que as mulheres sofrem nos ônibus,
nos trens, nas ruas, nas festas, nas casas, na intimidade do lar e até nas
igrejas. O toque que se transforma em golpe, tapa, soco, estupro, quando a
mulher não consente em ter seu corpo tocado por quem ela não deseja.
E as crianças que tem
seus corpos tocados de forma violenta por parte de quem esperavam carinho e
proteção. E seus corpos recebem agressão, violenta, na pele, no corpo, na
profundidade da alma. Agressões de forma tão violenta que, muita vezes, inibem
o próprio sentido do tato e acabam por tornar os corpos, individual e
socialmente, insensíveis e intocáveis.
É preciso reaprender a
tocar o intocável. E afastar o toque não consentido e não desejado que pode
deixar marcas de dor e sofrimento para o resto da vida.
terça-feira, 8 de agosto de 2017
Ver o invisível
Estamos tão habituados com o fato de enxergar, que
dificilmente nos imaginamos cegos ou impedidos de ver. O mundo, tal qual o
organizamos, é um mundo de videntes e para videntes. Uma pessoa que não enxerga
tem muita dificuldade para habituar-se e conviver no mundo ordinário.
Estamos tão acostumados com o verbo ver que, mesmo
quando a experiência se refere a outros sentidos, usamos, para indicá-la,
muitas vezes, a expressão “ver”: “Viu” que música bonita? “Viu” como fazia
calor? “Viu” o cheiro daquela coisa? Vivemos, mentalmente, uma dominância do
sentido da visão.
E isso porque a visão é o sentido da dominação.
Quando chegamos a um lugar novo - tal qual cães que vão sinalizando o
território através de sinais odoríferos urinários - nosso primeiro instinto é
dar uma volta para ver o que existe
naquele lugar. Dificilmente paramos para ouvir, cheirar, apalpar, saborear...
Queremos ver! E, de preferência, ver do lugar mais alto para ter uma visão
ampla, abrangente, dominadora.
Hoje, mais do que nunca, a imagem é a rainha da
comunicação. Quem não é visto, não existe. Nas redes sociais, o ideal é
alcançar o máximo possível de visualizações. Uma postagem, em qualquer uma das
redes sociais, se não é visualizada, é como se não existisse.
E, como todas sabemos, quanto mais chamativa ao olhar
for uma foto, mais visualizações ela terá. Uma postagem sem foto, é muito
provável que passará desapercebida nas redes sociais!
Por outro lado, somos incapazes de ver o nosso
próprio rosto. Só podemos vê-lo no espelho. Mas o espelho não somos nós.
Diferentemente do que muitos pensam, o espelho é apenas o reflexo do nosso
rosto, e não o nosso rosto. Muitas vezes esquecemos isso e pensamos que o que
vemos no espelho somos nós...
Por isso, talvez, seja verdadeiro o que dizia o
Pequeno Príncipe: “o essencial é invisível aos olhos”. É a ânsia insaciada e
insaciável de ver o próprio rosto que nos leva ao desejo infindo de ver imagens
que, esperaremos eternamente sem nunca sermos satisfeitos, reflitam o rosto que
somos. Mas, feliz ou infelizmente, precisamos nos conformar ao fato de que não
teremos jamais a possibilidade de nos divisarmos a nós mesmos tal qual somos. E
esse é um desejo eterno que pode nos levar, tal qual novos Narcisos, à morte
pela inanição contemplativa do próprio rosto invisível.
domingo, 30 de julho de 2017
Escutar o silêncio.
Quando falamos dos sentidos, é temerário dizer que este ou
aquele tem maior ou menor capacidade de despertar sentimentos. Todos eles tocam
o mais íntimo de nosso ser e por isso são capazes de fazer soar as cordas mais
íntimas da nossa existência.
Mas talvez nenhum deles tenha sido usado de forma tão
massiva para produzir e estimular sentimentos como a audição. E o grande canal
para isso, é a música. Cada ritmo parece tocar uma tecla de nosso ser. Uma
música relaxante nos ajuda a entrar em nós mesmos, a nos situarmos frente ao
universo, a colocar em harmonia nossos interior e buscar a sintonia com o
exterior. Um samba convida para a festa, a convivência, a camaradagem. Uma
milonga é o ritmo perfeito para expressar a dor que vai no coração, as
tristezas da vida, os sofrimentos do peão e do trabalhador que tem a sua vida
marcada pela penúria e pelo labor. O tango faz descer as lágrimas da perda do
amado ou da amada, a tristeza de sentir-se abandonado por quem se ama e a
solidão incompreendida. A marcha convida para a luta, para a guerra, para a
conquista dos direitos. Quem não se sente entusiasmado ao ouvir soar as notas
da Marseillese e seu Allons enfants de la patrie, le jour de
gloire ést arrivé... Ou então, a Internacional socialista e “De pé, ó
vitimas da fome! De pé, famélicos da terra! Da ideia a chama já consome, A
crosta bruta que a soterra.” E um funk, que sentimentos desperta em nós? Talvez
nós, que já passamos dos 50, não estejamos acostumados com esse ritmo as letras
agressivas que o acompanham. Mas hoje ele é o mais popular nas periferias das
grandes e também das pequenas cidades. E especialmente entre os jovens. Talvez
seja a única forma que eles encontram para fazer-se ouvir por uma sociedade
surda aos seus clamores.
Uma peculiaridade da audição, é o fato de ser um sentido
principalmente passivo. Nós dificilmente podemos barrar os sons que chegam até
nós. Eles entram nos nossos ouvidos, nos invadem, tomam conta de nós. Quem já
não foi acordado pelo som ensurdecedor de um avião a jato passando rasante, ou
uma explosão, um tiro... ou pelo grito de um vizinho, de uma criança agredida,
de uma mãe que teve seu filho assassinado? Ou pelo grito de gol, de vitória, de
alegria! Podemos nos isolar, colocar barreiras, tapar os ouvidos, mas, quando
menos esperamos, o som aí está impondo-nos sua verdade.
Mas o ouvido também pode ser educado. E ele é educado, mesmo
que nós não nos demos conta. Ele é conformado pela cultura em que vivemos. Nós
ocidentais, estamos acostumados a ouvir 12 notas musicais. Nossa escala sonora
é duodecimal. Já os gregos, os chineses e os escoceses, eles só ouviam cinco
notas. A música árabe tem uma escala de 16 notas. Os indianos, por sua vez, tem
um ouvido muito mais apurado e são capazes de distinguir 22 notas musicais. Por
isso nós, ocidentais, educados para escutar apenas 12 notas, temos dificuldade
em compreender a complexidade da música árabe e da música indiana. Nos escapam
praticamente metade dos sons emitidos pelos seus instrumentos e pelas suas
vozes.
Mas existe também o som do silêncio. É algo que está se
tornando cada vez mais difícil de ser encontrado na nossa civilização cheia de
apelos sonoros. Numa cidade grande, é muito difícil poder estar em silêncio.
Seja de dia, seja de noite, em nossas casas ou em qualquer outro lugar onde nos
encontremos. É preciso sair para longe, fora das cidades, longe da civilização,
para poder escutar o silêncio. E como ele fala... Nossos povos nativos são
especialistas em cultivar o ouvido para o silêncio. Por isso são capazes de
ouvir os sons das flores, das plantas, das árvores, dos animais, dos rios, das
pedras... E como eles e elas falam. Com suas vozes próprias, com suas músicas
específicas.
No silêncio, tudo fala! Até mesmo aquilo e aqueles e aquelas
que nós não gostaríamos de ouvir. É preciso reaprender a escutar o silêncio.
sexta-feira, 21 de julho de 2017
ANDO DEVAGAR...
Ando devagar porque já fui
multado. Mais de uma vez... Verdade que nunca foi por exagero. Ainda tenho
pontos na carteira para continuar dirigindo. Minhas multas foram daquelas
multas idiotas. O limite era 50 sobre a ponte do Rio Gravataí, na Rodovia do
Parque. Passei a 63. Demorou mais de três meses, mas ela chegou. Descendo a BR
470, de Carlos Barbosa em direção a São Vendelino, o limite era de 60 por hora
e eu fui flagrado, por um radar móvel, aquele tipo “secador de cabelo”. O
policial estava escondido atrás de uma árvore, logo depois da curva. E eu a 73
quilômetros por hora. Coisa mínima. Um pouquinho além do limite. Mas o
suficiente para ter os pontos na carteira de motorista e uns reais a menos na
carteira onde guardo o pouco dinheiro que ganho.
Tem outra multa que ainda estou
esperando. Na mesma BR 470, na passagem por Bento Gonçalves. De novo o policial
rodoviário escondido atrás de uma curva. Com a federalização, a estrada
melhorou muito, há que se reconhecer. Não tem mais buracos, a sinalização é
boa, iluminação e radares. Tudo bem... O pessoal que estava acostumado com a
buraqueira, agora que a estrada está boa, tem a tentação de recuperar o tempo
perdido. Daí a razão dos radares móveis e das multas. Mas a minha multa foi
injusta. Verdade que todos dizem isso! Mas eu explico e peço sua consideração.
Depois do último pardal fixo, onde a velocidade é de 50, você vê o sinal de que
pode andar a 60, depois a 80, aí, 200 metros depois, a velocidade volta a 40. Sem
nenhuma razão aparente, 300 metros adiante volta a 60, depois a 80 e,
subitamente, depois da curva, lá está a placa de 50 quilômetros por hora. E aí
já não há tempo para reduzir a velocidade. O policial aí está, impávido, com o
olho na mira acompanhando o deslocamento do carro. O alvo é a placa. Não tem
apelo! Só esperar o golpe.
O mesmo ocorre no entorno de
Carlos Barbosa, Veranópolis e Vila Flores que também são cruzadas pela BR 470.
Não há uma lógica para as velocidades estabelecidas. Parece que juntaram um
monte de placas com números diferentes e foram espalhando-as aleatoriamente ao
longo do caminho. Essa forma ilógica de dispor as placas parece ser a única
lógica plausível no caso.
Mas, e é aí que eu fico ainda
mais espantado, é que, se você tenta obedecer à sinalização e rodar nas
velocidades estabelecidas, aí você corre um sério risco muito maior que o da
possível multa. O risco de ter seu carro abalroado por alguém que vem atrás. Aí
estão as placas com seus números implacáveis, você segue a velocidade indicada
e atrás vem um, dois, três, vários carros, camionetes, caminhões com dois,
três, quatro eixos, bitrens e tudo mais que anda sobre duas, quatro, seis, oito
ou não sei quantas rodas, dando luz alta em pleno dia, sinalizando que vão
ultrapassar, buzinando, acenando com o braços, insultando sua linhagem materna
até a sétima geração, afirmando aos berros que sua mulher sai com todos os
homens da cidade e que você não pode mais passar por baixo dos fios de alta
tensão, duvidando de sua identidade de gênero, mandando você prá tudo o que é
lugar, inclusive aquele... Tudo isso para reclamar que você está andando na
velocidade estabelecida para aquele trecho. E todos eles sabem que, atrás da
próxima curva, pode haver um policial com um “secador de cabelo” na mão,
mirando para você, para eles, para todos nós e que, em breve, a temida multa
chegará a nossas casas.
Sinceramente. Não entendo nem uma
coisa nem outra. Mas fiz o estoico propósito de que não vou me alterar nem com
a ilógica distribuição das placas de velocidade e nem com os intrépidos colegas
de volante que sabem que podem ser multados, mas continuam insistindo em andar
em velocidades superiores às estabelecidas.
Para me ajudar a manter o
propósito, no pen-drive que me acompanha nas viagens, entre outras músicas, a impagável
do Almir Satter: “Ando devagar porque já tive pressa...”
sábado, 15 de julho de 2017
Um novo mundo é possível!
Tempos difíceis os que estamos vivendo. Tão difíceis que se
tornam assustadores. Você liga a televisão e, quem aparece? O Trump e seu
topete! Você troca de canal e quem te sorri? O Putin. E todos conhecem o
sorriso do Putin: não existe. Nunca vi o Putin sorrir. Por que será? Outro
canal e agora é o eterno sorriso banqueiro do jovem recém-eleito à Presidência
da França. E aí você se pergunta: por que o Macron está sempre sorrindo?
Desconfie de quem nunca sorri e desconfie também de quem está sempre sorrindo.
Alguma coisa ambos estão tentando disfarçar com seu eterno não-sorriso ou com
seu eterno sorriso. Para não ficar só em figuras masculinas: alguém poderia me
informar se já viu a Angela Merkel sorrir? Não naquelas fotos de campanha
retocadas por sofisticados programas. Numa situação real, alguém lembra de um
sorriso da Merkel?
Cansado de notícias internacionais? Pense nas nacionais. É
ainda mais assustador. Procuradores vendendo palestras onde prometem revelar de
primeira mão informações obtidas através de confissões forçadas. Juízes
absolvendo ou condenando não na base de provas, mas de convicções. Deputados e
senadores fazendo leilão de seu voto a favor ou contra a cassação de um Presidente
ilegítimo que apresenta como principal conquista de seu efêmero governo o
aumento do desemprego. E esse mesmo que se faz passar por Presidente comprando
votos daqueles que não querem vê-lo cair porque a instabilidade lhes é
favorável. São deputados profissionais. Eles são cascudos e sabem que, em rio
que tem piranha, jacaré nada de costas. Partidos que afirmam que sua diferença
consiste em roubar sem ser flagrado na ilegalidade. Sindicalistas defendendo
uma reforma trabalhista que faz os trabalhadores voltarem à condição de
escravos. Talvez sonhem em serem promovidos a capitão-do-mato. É um progresso
prá trás. Um vereador negro da maior cidade do país furioso porque a
universidade mais elitista do Brasil aderiu ao sistema de quotas econômicas e
raciais. Empresários que defendem a eficácia da iniciativa privada enquanto se
locupletam com o dinheiro roubado do erário público. A polícia agenciando e
armando ladrões e traficantes. E, na base de tudo, eleitores que reclamam da
corrupção dos políticos enquanto buscam um vereador, deputado, prefeito ou
governador para conseguir uma vaga para seu filho no serviço público, na
universidade, no hospital...
Em meio a tudo isso fui convidado para, num final de semana,
assessorar um encontro de uma pequena congregação de Vida Religiosa no interior
de São Paulo. Congregação nova, aprovada há pouco mais de 50 anos. Ostentam o
sugestivo nome de “Filhos da caridade” os homens e “Filhas da caridade” as
mulheres. Os religiosos e religiosas são poucos. A maioria do grupo é composta
de leigos e leigas que vivem o carisma da Congregação. Além de paulistas de várias cidades, há
também cariocas e maranhenses. Há uma senhora que anda apoiada numa bengala.
Homens e mulheres já de cabeça branca. Mas também um grupo significativo de
jovens com toda a energia da idade. Negros e brancos. Alguns apenas
alfabetizados. Outros com curso superior. Casados e solteiros. Trabalhadores e
trabalhadoras de vários segmentos e micro e pequenos empresários. E, para
aumentar a diversidade, argentinos vivendo no Brasil, um irmão religioso provindo
da Tanzânia, outro da Itália, da Índia, das Filipinas e do Timor Leste. E aí a
Língua Portuguesa se mistura com o Espanhol, o Inglês, o Italiano, o Tetum, o
Suaíli, o Malaio... Pluralidade total! E todos e todas se entendem ao falar a
linguagem comum da caridade no desejo e no
compromisso de servir aos mais pobres e necessitados em cada distinto lugar em
que vivem. Jovens desempregados na Itália, doentes e anciãos na Tanzânia,
órfãos na Índia, feridos na guerra do Timor, moradores de rua nas Filipinas,
jovens em situação de risco no Brasil.
Um pequeno sinal, uma pequena experiência.
Minúscula, ínfima, invisível na própria cidade em que acontece e que não aparecerá
em nenhum noticiário. Mas um sinal, sim, de que um novo mundo é, sim, possível!
Sinal de uma Vida Religiosa profética que continua a testemunhar o sonho do
Reino de Deus. E sonhar, mais do que nunca hoje, é preciso! Pois sonhar, é o
único caminho para sair do pesadelo mundial e nacional que estamos vivendo.
sábado, 1 de julho de 2017
A reforma trabalhista tá na Bíblia!
Não foi o Temer que inventou a
reforma trabalhista. Ele faz parte dela. Mas talvez não seja a principal. Ele é
a cara visível – e risível, segundo alguns – deste projeto. Mas o projeto não é
dele. É anterior a ele. Sua sorte ou azar, dependendo do ponto de vista, foi a
de estar no lugar apropriado para apropriar-se de um projeto que outros tantos
já costuravam nos socavões do poder que não ficam exatamente em Brasília.
Mas como ele estava no local
indicado, no momento indicado e parecia ser o homem indicado, foi alçado à
Presidência com a tarefa de levá-la adiante. Não fosse ele, seria outro. E, se
não for ele, os verdadeiros donos dos fios que mandam e desmandam, vão tentar
colocar outro.
Mas a história sempre foi assim.
E falo de história longa. Aquela que no nosso imaginário ocidental parece ser a
mais antiga, a história bíblica. Há poucos dias me dei conta que a primeira
proposta de reforma trabalhista está no Antigo Testamento. Bem lá no início, no
Livro do Êxodo, quando Moisés foi, a mando de Deus, pedir que o Faraó desse o
descanso semanal para os escravos hebreus. O Faraó, no lugar de atender as
reivindicações, fez uma Reforma Trabalhista: tirou todo e qualquer dia de
descanso, aumentou a carga horária diária de trabalho, reduziu o pessoal e
aumentou as metas de produção. E ainda tentou convencer os próprios hebreus de
que eram preguiçosos e deviam trabalhar mais. Ocupados, não dariam ouvidos a
loucos sindicalistas como Moisés.
Para sorte de Moisés e dos
hebreus, eles tinham Deus por aliado! Ele ajudou os israelitas a fugir. Mas não
foi fácil... Antes teve que usar o terror das pragas para convencer o Faraó e
seus capatazes de que deveriam deixar o povo ir em paz. Rãs, mosquitos, moscas,
peste nos rebanhos, doenças nos humanos, chuva de pedras que mataram animais e
destruíram plantações, nuvens de gafanhotos e três dias de escuridão. A cada
praga, o Faraó se arrependia, mas, em seguida, vendo o prejuízo que lhe podia
acarretar a folga de três dias que os hebreus pediam, voltava atrás. Foi só com
a devastadora morte dos primogênitos que o Faraó finalmente deixou os hebreus
partirem. Mas depois se arrependeu, tomou seu exército e foi atrás deles para
impedir que atravessassem o Mar Vermelho e saíssem de seus domínios. E dessa
parte da história todos lembram o fim...
Voltando à reforma trabalhista de 2017: quantas
e quais pragas do Egito serão necessárias para que os faraós neoliberais
adoradores do deus-mercado se convençam a deixar o povo descansar, pelo menos
uma vez por semana? Oxalá Deus não tenha endurecido seu coração a ponto de
exigirem a morte dos próprios primogênitos e, num gesto de insana teimosia,
deixarem-se tragar pelas revoltas águas do Mar Vermelho.
sexta-feira, 9 de junho de 2017
O terno não faz o treinador
Falar de futebol é sempre arriscado. Principalmente no
Brasil. Aqui, as rígidas regras do esporte bretão foram dribladas pela ginga e
criatividade típicas do brasileiro. Com vantagens e desvantagens. O lado bom da
flexibilização é que proporcionou o surgimento dos Garrinchas, Romários e
Túlios que encantaram o mundo e nos deram tantos títulos. Por outro, nunca
tivemos em nenhuma equipe brasileira um Alex Ferguson e suas duas décadas e
meia à frente do Manchester. Nos campeonatos brasileiros, o normal é que nenhum
time inicie a temporada e vá até seu fim com o mesmo elenco e o mesmo
treinador.
Por falar em treinador, é sabido por todos que nenhum
brasileiro conseguiu se firmar à frente de uma equipe europeia. Não por
incompetência. A causa é cultural. Na última final da Champions League em que o
Real Madrid massacrou a Juventus, era interessante a figura dos dois
treinadores, Zinedine Zidane na esquadra espanhola e Massimiliano Allegri na
turinesa. Os dois foram jogadores de futebol e agora estavam à beira do campo.
Os dois de terno. Meio desalinhado o de Zidane, é certo. Mas sempre um terno,
clássico, elegante. O de Allegri, então, perfeito, italiano. Só isso diz tudo.
Os dois com gestos comedidos como cabe a um treinador... europeu. Emoção
mínima. Eficiência máxima.
Quanta diferença com um Abel Braga, Joel Santana, Murici
Ramalho, Renato Gaúcho... só para falar em alguns da atualidade. Estes não
cabem dentro de um terno. O Renato até que tenta usar camisas sociais, mas a
calça é jeans e, no pé, os tênis. De marca, óbvio. Mas não são sapatos
italianos! São tênis. Roupa esportiva e não executiva.
No auge da carreia, o Wanderlei Luxemburgo foi treinar o
Real Madrid. Fracassou. Não tinha o perfil europeu. Mas voltou de lá vestindo
terno à beira do gramado. Dunga, talvez pela longa experiência como jogador na
Itália, ao assumir como treinador no Brasil, também primava pela roupa social.
De elegância duvidosa em certas ocasiões, como todos pudemos notar. Também não
deu certo. Mais recentemente, aqui na Província de São Pedro de Rio Grande,
outro treinador com passagem pela Europa como jogador, passou a dirigir uma da
Série B, fardado com elegantes ternos italianos. Fracassou rotundamente... Ele
vestia terno italiano. Mas não tinha jogadores italianos. Nem treinava um time
italiano. E nem participava de um campeonato italiano. A realidade que estava à
sua frente não se transformava pelo fato de ele usar um terno italiano.
Lembro disso tudo ao reparar o cenário político brasileiro e
seu messianismo mágico. Personagens que vestem um traje – de presidente, de
juiz, procurador, ministro, senador, deputado, prefeito... – e acham que isso é
suficiente para que todos os considerem como tal e submetam-se a seus ditames.
Pelo simples fato de usarem um terno, uma faixa, uma toga, acham que tem
autoridade. Mas para ser autoridade, é preciso muito mais. É preciso o respaldo
do povo, da nação, da urna, da democracia.
Por isso, mesmo admirando a eficácia do futebol europeu,
ainda prefiro nossos Garrinchas, Romários, Abeis, Joeis, Muricis, Renatos...
que não vestem ternos e togas, mas tem o jeito e a ginga do povo brasileiro,
falam a linguagem do povo brasileiro e, sem sonhar em ser espelhos cacofônicos
da Europa, ganham títulos com o povo brasileiro.
quarta-feira, 24 de maio de 2017
Harakiri
Em japonês, seu nome é Seppuku. No Ocidente, tornou-se conhecido como haraquiri.
Em qualquer uma das versões, literalmente, significa “cortar o ventre”. As
primeiras informações de sua existência remontam ao século XII. No século XIX,
foi proibido. Reservado aos samurais, o ritual surgiu primeiramente como prova
de lealdade, mesmo na morte, do samurai ao seu senhor. Com o tempo, passou a
ser executado como forma de resgatar a nobreza de um samurai que traíra ao seu
senhor ou infringira o código de honra dos guerreiros.
O harikiri era uma cerimônia pública.
Após ter obtido autorização de seu senhor, o samurai, devidamente trajado,
ajoelhava e, tomando sua espada ou punhal, realiza primeiro o kiru, um
corte horizonte, abaixo do umbigo (em japonês, hara), da esquerda para a
direita. Em seguida, se lhe restavam foças, fazia outro corte no sentido
vertical, de baixo para cima. As vísceras deviam ser versadas para fora para
provar a honradez. Feito isso, entrava em ação o kaishakinin que, num
golpe de misericórdia, realizava a decapitação final.
Mesmo identificada com
a cultura oriental, a prática de tirar a própria vida como um modo de ter morte
digna, foi comum também na Roma antiga. Chefes militares e soldados, na
iminência de serem aprisionados pelos inimigos, optavam por cravar a espada em
si mesmos. Como nos atesta a Bíblia no livro dos Atos dos Apóstolos, qualquer
funcionário público que falhasse no cumprimento do seu dever, salvava sua honra
tirando a própria vida (At 16, 25-28). Mas o ato era mais habitual entre os
funcionários mais graduados. Foi o caso do general Quintílio Varo ao ser
derrotado pelos germanos. Sentindo-se culpado por não ter sabido conduzir seus
soldados, cravou a espada no peito. O mesmo foi feito por Marco Antônio, aquele
que se tornou famoso por ser amante de Cleópatra. Nero, sem coragem para tal
ato, pediu a um soldado que lhe cravasse a espada no coração.
Mas o método mais
utilizado em Roma para morrer com dignidade era o corte nos pulsos. A história
nos atesta que foi grande o número de políticos romanos que, metidos em
intrigas e falcatruas, recorriam a esta prática. No fim do período de Tibério,
parte significativa do Senado romano fez correr o sangue das próprias veias. Estavam
todos com a honra comprometida e, para fugir à prisão e castigo, preferiram
sair desta vida por própria iniciativa e assim resgatar a dignidade, mesmo que
fosse depois da morte. Segundo o historiador Tácito, “por medo do carrasco
preferiam morrer assim, e também porque, aos condenados, recusava-se sepultura
e os bens eram confiscados, enquanto que aos que tiravam a própria vida
respeitava-se o testamento e dava-se sepultura ao corpo, como recompensa”.
Entre os que optaram por essa saída encontram-se os famosos Sêneca, professor de Nero, e o escritor Petrônio.
Tripas
saltando para fora do ventre, espada cravada no coração, sangue jorrando dos
pulsos... Cenas que, certamente, não são mais necessárias e nem desejáveis na
nossa sociedade moderna e civilizada que rejeita a violência. No lugar delas,
sugerimos o simples, singelo e incruento sincericídio.
Se alguma noção de honra resta aos homens públicos neste momento de crise
nacional, poder-se-ia apenas exigir-lhes que admitam seus crimes, deixem a vida
pública, devolvam o dinheiro roubado e, num gesto de grandeza, nunca mais a ela
voltem. E isso, de livre e espontânea vontade para que as mãos das vítimas não
se sintam tentadas a sujar-se para fazer justiça.
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