domingo, 16 de dezembro de 2018

Sobre suicídios e suicidas: uma velha história sempre atual

Meu pai era um ótimo contador de histórias. Sabia por onde começar, dar os volteios, fazer o suspense, apresentar as diversas alternativas de sequência e aí arrematar com um bom final. E, mesmo tendo por língua materna e habitual o vêneto, as histórias eram sempre contadas em bom português. Até hoje eu me pergunto o por quê de seu Avelino escolher a segunda língua para contar as  melhores histórias. Claro que, no meio de cada conto, sempre deslizava sorrateiramente palavras e expressões em vêneto que davam à história um colorido todo especial. 
Algumas destas histórias as tenho até hoje na memória. Uma das mais interessantes era a do rapaz que queria se suicidar. O tema era difícil, pois o suicídio, no meio dos descendentes de italianos, tinha muito de tabu. Quem se suicidava, entre outras coisas, além de não ter velório público, era enterrado fora do cemitério. Na Linha Aimoré, lá onde eu me criei, no interior de Vila Flores, antes que se fizesse a atual ampliação do cemitério, havia um "anexo" em que eram sepultadas as crianças que morriam antes de serem batizadas, os que não eram católicos e os que se suicidavam. Ainda hoje lembro das três cruzes que havia naquele cercadinho ao lado do Campo Santo e da certeza que todos tinham de que as almas daquelas três pessoas estavam condenadas eternamente ao fogo do inferno. Era assim que se pensava... por isso, fazer piada de suicida, exigia uma boa dose de arte.
Sem a arte de meu pai e por ter que fazê-lo por escrito, reproduzo apenas o script da história do rapaz que, por razões que seu Avelino sempre deixava no entredito, queria se suicidar. A decisão dele era definitiva: não queria mais morrer e, sabendo de outros que haviam intentado tal desdita e haviam fracassado e se amostravam como mais confiáveis: um tiro na cabeça, o enforcamento em uma alta árvore e uma boa dose de veneno. Para não fracassar, o rapaz resolveu combinar as três possibilidades: corrependido de não terem morrido, buscava um meio seguro de alcançar seu objetivo. Depois de muito pesquisar e eliminar métodos de suicídio que não lhe pareciam seguros, chegou a três que se lhe nseguiu clandestinamente uma boa dose de estricnina, comprou um revólver novo carregadinho com sete balas para que não pudesse haver erro e uma corda soga novinha.
Tudo meticulosamente planejado, colocou a estricnina numa garrafa de água meticulosamente armazenada no bolso, fez a forca com a corda e molhou-a para dar-lhe mais resistência. Com a ajuda de uma escada, subiu em uma árvore, sentou-se no galho, empurrou a escada para o chão para não haver nenhuma tentação de retorno. Com todo cuidado, prendeu a corda firmemente ao galho e passou a forca no pescoço. Tudo pronto como no
passo-a-passo planejado. Agora, só faltava o ato final que envolvia os três componentes: a estricnina, a forca e revólver. Sorveu a garrafa de água envenenada em rápidos goles, deslizou do galho até a corda esticar e começar a apertar violentamente o pescoço e, antes que a falta de ar o impedisse de movimentos, sacou o revólver e desferiu um tiro contra a cabeça. E aí entrou em cena a fatalidade: A mão trêmula pelo sufocamento fez com que o tiro, ao invés de atingir a cabeça como o planejado, desviou para cima e acertou a corda soga que, esticada pelo peso do corpo, se rompesse fazendo com que o pobre infeliz tombasse rotundamente no chão e, com o golpe, vomitasse o veneno que ainda estava se acomodando no estômago. Resultado: o rapaz fracassou em seu intento de deixar esta vida de forma voluntária e, como a grande maioria dos suicidas, arrependeu-se e nunca mais tentou se matar.
Lembro desta história neste final de ano em que começamos a olhar para trás e tentar compreender a tentativa de suicídio que, como nação brasileira ensaiamos neste último ano utilizando os três métodos mais confiáveis para se acabar com uma democracia: a deslegitimação da representatividade política, a eleição de pessoas assumidamente autoritárias e a reabilitação dos militares como condutores da vida pública. Oxalá tenhamos a mesma sorte que o rapaz e a combinação dos três fatores leva a que um anule o outro.
Ah! A árvore da história que meu pai contava não era uma goiabeira. Lá na serra não havia goiabeiras. A árvores da história era uma araucária. E Jesus não subia nela...