terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

CENAS DE VERÃO III: O PADRE E O PINSCHER


Para boa parcela dos gaúchos que desfrutamos apenas de um breve e instável verão, ir à praia entre o Natal e o Carnaval é praticamente um ritual. Para muitos, mais do que o mar, o sol e a areia, os poucos dias ou semanas – para os mais agraciados, um mês! – tornam-se uma espécie de parêntesis onde se pode viver a distopia do quotidiano assoberbado por trabalho, compromissos, aparências e rotinas. Aproveita-se este tempo, mesmo que breve, para não fazer nada ou para fazer aquilo que não se pode fazer durante o ano. Para o bem ou para o mal...
Uma das coisas que muito me impressiona no Litoral Norte gaúcho é a frequência das pessoas às igrejas. Falo, concretamente, da Igreja Católica. Em cada pequena praia há uma capela. Algumas em condições precárias que só funcionam durante o veraneio. Outras, com sólidas estruturas e que funcionam o ano todo. Em umas e outras, é quase corrente haver missa todos os dias. Padres que se deslocam do interior, da serra ou da região metropolitana para descansar e, a convite da comunidade ou por interesse próprio, celebram a missa nas capelas. Tanto nos fins de semana como durante a semana.
Sábado de tarde. Tempo chuvoso e nordestão batendo. Impossível ir à praia. A missa na capela próxima da casa é às 20 horas. Chego quinze minutos antes. O espaço é grande. Cabem, tranquilamente, umas quatrocentas pessoas. Lotada. Consigo um lugar para sentar na fila de bancos do lado direito. Uma enorme variedade de idades, cores e vestimentas. É o Rio Grande mesclado em oração!
Um rapaz com um violão e um pequeno grupo de senhores e senhoras afina a voz para animar a missa. Um ruído no fundo da capela e depois o silêncio. Um perfume de incenso se espalha no ar. Olho para trás e aí está o padre para a procissão de entrada. Idade mediana, entre os 40 e 50. Um pouco mais do que bem paramentado para meu gosto. À sua frente um séquito de seis coroinhas e dois ministros. Os coroinhas marcham à frente com velas e o incenso. Um dos ministros carrega a cruz. O outro a Biblia. Em seguida o padre fechando a procissão e, a seu lado, um pinscher marron-avermelhado. A procissão é acompanhada por um canto tipicamente carismático.
Ao chegar ao altar, depois das devidas genuflexões e inclinações, cada um toma seu lugar. O pinscher também teu o seu. Quando o padre está sentado, descansa deitado entre seus pés. Quando o padre se levanta, o pinscher vai para baixo do altar e permanece de pé, olhando a assembleia. De vez em quando, sabe-se lá se motivado pelo irritante som da microfonia, pelo canto desafinado ou por algum olhar ou gesto de alguém da assembleia, o pequeno cão solta três ou quatro de seus agudos latidos que são pacientemente suportados pelos frequentadores da missa. Afinal, o pinscher é do padre. Os paroquianos o sabem e os visitantes desde o início da missa se deram conta do fato.
O movimento dos coroinhas, dos ministros e do comentarista não provoca qualquer reação do pequeno cão. Mas os latidos se tornam mais agressivos quando as leitoras se aproximam para proclamar os textos bíblicos que antecedem os evangelhos. Parece que ao pinscher do padre não agradam as presenças femininas perto do altar.
Depois do Evangelho, o padre inicia o seu sermão. O pinscher permanece sob o altar olhando a assembleia. A fala se prolonga monotamente mais do que o tempo recomendado. Depois dos primeiros minutos de atenção, os assistentes começam a torcer para que o tempo passe rapidamente. Uns fecham os olhos, talvez lembrando as ondas do mar. Outros ocupam o tempo vasculhando as visagens e vestimentas de seus vizinhos e vizinhas. Nos fundos, não faltam aqueles que aproveitam para dar uma olhadinha nas redes sociais. Na terceira fila do lado oposto de onde estou, uma senhora de meia idade com seu filhinho no colo. Pela aparência, não é veranista. É moradora do local. Talvez uma senhora que tenha trabalhado o dia todo e que, no fim do sábado de labuta, tenha vindo à igreja para encontrar um momento de consolo e esperança. No seu colo, a criança com o rosto tão cansado como o da mãe. Talvez não cansada esta do trabalho, mas da solidão ou quem sabe da fome, da multidão da igreja cheia, do calor que já começa a se tornar incômodo ou do sermão que não termina mais. Previsivelmente, a criança começa a chorar. A mãe tudo faz para acalmá-la. Por um momento, ela cessa seu lamento para em seguida recomeçar. Os circundantes olham, uns com compreensão e comiseração e outros com um certo incômodo. De sob o altar, a cada choro da criança, os agudos latidos do pinscher... O padre, sem interromper a fala que repete as mesmas frases pela enésima vez, olha para a criança, a mãe e o pinscher. Diante dos olhos assustados da assembleia, desce do altar com o microfone e se dirige até a terceira fila onde está a mãe e a ela se dirige falando ao microfone para que toda a igreja ouça: -- A senhora, por favor, faz essa criança parar de chorar ou se retira da igreja!
Todos os oitocentos olhos estão cravados na criança e na mulher. Esta, com uma calma muito além do que se poderia esperar da situação, responde tranquilamente: -- Quando o senhor fizer o seu cachorro parar de latir, eu faço o meu guri parar de chorar. Mas sair da igreja eu não saio...

O padre olha para a criança, para a mulher, para o pinscher, para a assembleia. Todos os presentes estão com os olhos cravados no padre. Uns olhares sérios, outros interrogativos, risonhos e até desafiadores. Sem abaixar a cabeça nem dizer outra palavra, o padre dá meia volta, retorna ao altar, levanta os braços e inicia a rezar o “Creio em Deus Pai”. A assembleia se levanta. A mulher continua sentada com seu filho que já não chora no colo. O pinscher está sob o altar, de pé, atento ao menor movimento da assembleia. A missa segue...

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Cenas de Verão II: o menino e o pitbull

Praia da Conceição. Uma das tantas pequenas e pouco conhecidas praias do Litoral Norte gaúcho. São apenas três ruas ligando a Interpraias e as dunas da orla entre Arroio Teixeira e Curumim. Até os anos 1970, eram apenas algumas choupanas de pescadores e umas poucas casas de madeira de araucária construídas pelos abastados de São Francisco de Paula e Bom Jesus que aqui vinham veranear. A partir dos anos 80 e as sucessivas promessas de abertura da Rota do Sol, chegou o povo de Canela e Gramado. As avenidas foram calçadas e as travessas assinaladas e ocupadas por mais e mais veranistas.Com a finalização da Rota do Sol, veio a invasão dos gringos de Bento Gonçalves e Caxias do Sul. Foram comprando e construindo casas e mansões sempre maiores e melhores que as dos vizinhos. Quem é gringo sabe como é isso...Apesar dessa mudança, a Praia da Conceição continuou sendo eminentemente residencial. O único comércio é o Minimercado Mattos na esquina da Interpraias com a avenida por onde passa o ônibus urbano. Tem de tudo: do pão francês ao material elétrico e hidráulico para concertos básicos. O espaço é pequeno. Tudo apertadinho, especialmente no verão, quando todos buscam este "pronto socorro material". Na porta de entrada, um enorme cartaz com dois dizeres: "Proibido entrar sem camisa. Proibida a entrada de animais".Sábado de Carnaval. Chego para buscar o pão para o lanche da tarde. Pequeno tumulto na entrada. Dona Bela, esposa do proprietário e caixa, impede um rapazote sem camisa de entrar. Depois de uma rápida discussão, o rapaz sai e, desde a rua, anuncia em tom de ameaça: -- Vou chamar meu pai!Dona Bela olha para seu Ervino que está no açougue que olha para o genro que atende na padaria que olha para a nora que repõe as verduras nas caixas de plástico... Eu olho para os fregueses que se apressam nas compras e, ao sair, se postam na parada de ônibus em frente ao armazém. Algo de ameaçador paira no ar...No momento em que estou colocando as maçãs no saquinho plástico, uma sombra de dois metros tapa a luz do fim da tarde que entra pela porta. Ele aí está, de bermuda e sem camisa, no braço direito uma tatuagem de uma caveira sobre dois fuzis, no esquerdo, o emblema de um time de futebol. A seu lado, um pitbull que lhe chega ao joelho. Sem focinheira nem laço. Solto, pronto para o bote. Atrás dos dois, o rapazote...Olhando ameaçadoramente para os presentes - eu incluído - o homem dirige a palavra ao filho: -- Luizinho! O que você queria nesta espelunca? -- A tatuagem do dragão com o arco-íris. -- Onde é que tá essa p...? -- Ali! -- Pega logo essa m...O meninote vai passando um por um os saquinhos com as tatuagens até achar a desejada. Olha para o pai. Olha para Dona Bela que segue estática atrás do caixa. O pai toma o filho pelo braço e sem qualquer menção de pagar pelo dragão com arco-íris, toma a porta da rua. O pitbull espera que os dois cheguem a calçada, solta um rosnado, dá meia volta e também parte. Os vira-latas que habitam a entrada do Minimercado Mattos seguem o pitbull a uma cuidadosa distância até este desaparecer na esquina.A parada de ônibus se esvazia. Uns voltam para casa. Outros para o armazém. Dona Bela enxuga o suor. Seu Ervino guarda a faca do açougue. O genro emerge da padaria. Sorrio para Dona Bela, pago minhas contas e retorno para casa. No caminho cruzo com um vira-lata que me rosna insistentemente.  Talvez ele esteja treinando para ser pitbull. Ignoro-o e signo meu caminho pensando no perfume do café colombiano que me espera.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Cenas de Verão I: a menina e o cachorro

Primeiro dia de fevereiro. Primeiro dia de férias. Um dos poucos dias de sol e sem vento no litoral norte gaúcho. Preparo meu mate, junto cadeira e guarda sol e vou até a praia. Água azul e ondas calmas: espetacular. Instalo o guarda sol, acomodo a cadeira e, cuia apos cuia, sorvo o mate embalado pelo rítmico bater das ondas.
A medida que o sol esquenta, a praia vai sendo colorida por outros guarda-sois, cadeiras e pessoas de todas as idades, sexos, pesos, cores e estilos. A poucos metros ao meu lado direito, três mulheres de três distintas gerações: avó, mãe e filha. Da mesma forma que eu tinha feito, instalam seu guarda-sol, duas cadeiras, a toalha e os brinquedos para a menina. Mais uns metros e outra senhora também prepara seu lugar para passar a manhã. Tampouco ela veio sozinha. Acompanha-a um cachorrinho que ela ternamente chama de "filhinho". Instalado o guarda sol e a cadeira, o cãozinho - aparentemente macho - dá a clássica volta ao redor do sítio e deita-se entre os pés da mamãe.
De forma quase sincronizada, as três senhoras levantam-se e se dirigem até a água. São nada mais que oito a dez metros. A menininha, ocupada com seus brinquedos, continua sob o guarda-sol e o olhar vigilante de duas gerações. O cãozinho, por sua vez, acompanha sua mae até a água. De repente, ao perceber que a criança ficará só, o cao dispara em direção aos guarda-sois. Numa primeira mordida, arrasta a toalha sobre a qual estava sentada a criança. Na segunda, destrói o patinho de borracha. Antes que a terceira dilacere uma mao, um pe ou o rosto da menina, a mae alcança a criança e a protege no seu colo. O cãozinho permanece rosnando ao redor. Sua mãe chega e, olhando a menininha que esconde seu rosto no regaco da mãe, vocifera em tom ameaçador: "-- Você devia afastar essa criança daqui. Ela está incomodando meu filhinho! "
A avó, refeita do susto, em silêncio e sabedoria, fecha o guarda-sol, dobra as cadeiras, recolhe toalha e brinquedos e, seguida pela filha e neta, afasta-se para o lado esquerdo de onde estou sentado. A outra senhora também recolhe seu guarda-sol, sua cadeira, seu cãozinho e toma o caminho de casa.
Os olhares dos circundantes que, pela rapidez da cena não puderam intervir, impediam que ela ai continuasse. Era uma manhã de sol, sem vento, de águas limpas e ondas suaves. Algo raro no litoral norte gaúcho.