segunda-feira, 30 de março de 2020

TENHO MEDO!

Tenho medo, sim! E não tenho medo de dizer que tenho medo... Dizê-lo com todas as palavras, é uma forma de afastá-lo e poder viver com os medos que me atormentam no dia a dia. São muitos medos: de morrer antes do tempo, medo de nunca mais ver a pessoa amiga que não vejo há tanto tempo, medo de sair de noite, de ser assaltado, medo de aranhas, de subir num lugar alto... Medos medíocres e grandes medos!
Ter medo é natural no ser humano. Faz parte da dinâmica de preservação. É uma proteção que nos impede de ir em direção ao perigo. O sujeito mais perigoso é o que não tem medo. Ele é capaz de arriscar a própria vida por qualquer coisa. Traficantes e milicianos utilizam jovens e crianças em suas ações assassinas. Elas não têm medo de morrer, pois ainda não sabem o valor da vida.
O medo coletivo pode ser utilizado como estratégia de controle social. Jean Delumeau mostra isso no livro clássico “A História do Medo no Ocidente”. Tanto as religiões como o poder político utilizaram o medo para controlar fieis e súditos. Medo do inferno e medo da cadeia. A política do terror é corrente no Ocidente. Do terror da Revolução Francesa ao terrorismo islâmico. Michel Foucault, por sua vez, nos mostrou que a manipulação do medo, nas sociedades modernas, foi integrada nos dispositivos da biopolítica. Impor o medo sobre a população é uma forma de fazer política. E isso conhecemos muito bem no Brasil atual.
Nesse momento, tenho medo do coronavírus. Ele é invisível. Circula por todos os lugares de forma ágil e sorrateira e, quando se instala nos pulmões de uma pessoa, é o terror! Mata por sufocamento. Tenho medo da Covid19. Muito medo!
Mas tenho mais medo daqueles que não têm medo da Covid19. Ou que aparentam não ter medo. Sua falta de medo é um perigo para a sociedade tão grande ou maior que a própria pandemia. Porque, quem não tem medo, além de expor-se à própria morte, é capaz de provocar a morte dos outros.
Diante de um perigo, precisamos nos proteger. Não com armas e muito menos com mentiras! É preciso encarar o perigo com tranquilidade e, no caso da Covid19, com os recursos da ciência.
Neste Domingo de Ramos, lembramos a entrada de Jesus em Jerusalém. Ele entrou na cidade com medo. Sabia que nela estavam os chefes do povo judeu que tanto o odiavam. E aí estavam também os soldados romanos prontos para controlar, pelo medo, a população judaica.
Jesus não se armou. Ele dispensou cavalos e soldados. Entrou montado num jumento. Um animal pacífico que não servia para a guerra. Entrou acompanhado por mulheres e crianças que o aclamavam com ramos de paz. Diante do medo dos discípulos que mandavam as pessoas calarem, Jesus seguiu seu caminho proclamando a verdade.

É tempo de pensarmos em nossos medos. E na forma como os enfrentamos. Fingindo que não temos medo e caminhando para a morte ou assumindo nossos medos e afrontando-os com a coragem da verdade.
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Baixe aqui a versão áudio 🔉 que pode ser livremente reproduzida. Pedimos apenas que nos informem pelo email zugno1965@hotmail.com

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segunda-feira, 23 de março de 2020

Calma...deixa-me ver tua alma!


A atual pandemia do covid19 é um momento de dor e sofrimento para toda a humanidade. Principalmente para os países, cidades, comunidades, famílias e pessoas atingidas. Para os que morrem e para os que ficam chorando seus mortos.
É ocasião para a solidariedade e compaixão que, devido às características de transmissão do coronavírus, tem sua melhor expressão no isolamento social. Quanto menos contato físico com as pessoas, mais as estamos ajudando!
É uma pandemia que nos obriga à solidão, ao silêncio e à reflexão. Hábitos esquecidos e até desprezados na sociedade da hiperconexão e da interação. Da dificuldade de introspecção de uma cultura voltada para a autoimagem projetada, nascem dois sentimentos aparentemente opostos: a agressão e a depressão.
Nas redes sociais vemos amigos e amigas virtuais expressar a incapacidade de estar consigo mesmos através da agressão a toda e qualquer pessoa que sente, pensa e comunica diferente do que eles gostariam. É a tentação da alma vazia, do espírito incapaz de encontrar-se consigo mesmo, do medo de se olhar no espelho interior e se deparar com o horror vacui da própria existência. Vazio que se projeta agressivamente sobre os outros tentando destruir neles o que não quer apagar de si mesmo.
Por outro lado está a tentação de preencher o vazio de sentido da existência através do consumo de coisas desnecessárias. Horas e horas de shopping, de cinema, de teatro, de restaurantes, de séries televisivas, novelas, viagens e tantas outras coisas mais, com a única finalidade de empanturrar o interior de bens. É o acumulador típico do mercado capitalista. Ele morre sufocado pelos objetos dos quais não necessita. Agora que a pandemia do covid19 o impede de consumir, padece o delirium tremens do consumismo e corre o risco da implosão depressiva.
A covid19 é uma doença física grave. Não é uma gripezinha qualquer. Ela mata. Mais de 15 mil pessoas já perderam a vida. Infelizmente, muitas outras a perderão. A humanidade demorará anos, talvez décadas, para refazer-se.
Mas a covi19 também revela uma doença da alma. De uma humanidade que coloca a economia acima da vida das pessoas e da vida dos outros seres que habitam o mesmo sistema Terra.
É importante que se faça tudo o que é possível para impedir o avanço da pandemia. É importante que se descubra logo um tratamento para os já infectados. Todos os esforços devem ser envidados nesta direção e sem tergiversação e atitudes diversionistas, seja por parte dos cidadãos como dos governantes.
Mas é importante que saiamos desta pandemia com uma alma nova, com a capacidade de olhar para dentro de nós mesmos e percebermos que não podemos transformar nossas vidas, a vida da humanidade e do Planeta Terra em uma sepultura onde jazem os restos das pessoas que amamos.
Para os que creem na Ressurreição, não há quarto dia. Lázaro está vivo e pode, sim, sair do túmulo e iniciar uma vida nova.
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terça-feira, 17 de março de 2020

Da Terra viemos...


A maioria de nós tivemos um dia a ocasião de ler a carta escrita, em 1854, pelo Cacique Seattle ao Presidente dos Estados Unidos, quando este lhe propôs a compra de suas terras. Naquela carta, que é um poema de amor à criação, entre outras afirmações, dizia Seattle: “Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence a terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas, como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo”.
A consciência de que os humanos pertencemos ao conjunto da criação e de que tudo está interligado são eixos estruturadores da Carta Encíclica Laudato Sì do Papa Francisco.
Com pontos de partida diferentes – a cultura milenar dos povos originários deste continente e a cultura judaico-cristã – o Cacique Seattle e o Papa Francisco chegam à mesma conclusão. Por que, então, temos tanta dificuldade em organizar nossas vidas a partir destes princípios básicos que garantiriam a sobrevivência da espécie humana e de todas as outras formas de vida vegetal e animal?
A nosso modo de ver, por duas razões. A primeira, pela dificuldade em aceitarmos nossa fragilidade humana. Somos seres mortais, tão mortais quanto os outros animais e nossa vida neste mundo é fugaz e poucos ou ninguém lembrará de nós depois da nossa morte. A outra razão, conexa com a primeira, é a tentação de nos pensarmos como senhores da criação, com direito a tudo dominar e a tudo explorar. Tanto os seres humanos como as outras criaturas. Temos dificuldade em aceitar que não somos senhores, mas cuidadores da criação.
A atual pandemia provocada pelo coronavírus é ocasião para lembrarmos e pensarmos nisso. Com todo o avanço científico e tecnológico, estamos ameaçados por um simples vírus. Ou não seria exatamente por causa de uma ciência incapazes de perceber o ser humano em sua relação com a criação as causas desta pandemia que tanto assusta?
Precisamos rever a forma como os humanos nos situamos no mundo. E o tempo quaresmal é adequado para isso. Iniciamos este tempo litúrgico lembrando que somos pó e que ao pó voltaremos. É um chamado à humildade, à simplicidade, à humanidade nas suas formas básicas e fundamentais.
A Palavra de Deus lembra que, num mundo tomado pela doença e agressão, deste mesmo pó da terra, quando conformado pelo sopro e pela saliva divina, pode nascer a esperança da cura e da vida nova. Do pó da terra fomos criados pelo sopro divino. E Jesus, diante do cego que tem sua vida ameaçada pela insensibilidade e prepotência dos fariseus, junta sua saliva ao pós da terra e devolve a luz e a capacidade de sobreviver.
Deixar que a fragilidade humana seja conformada pelo sopro divino que compartilhamos com todas as outras criaturas é um caminho para construir um mundo mais convivial onde todos, humanos e não humanos, podemos conviver em harmonia.
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segunda-feira, 9 de março de 2020

A verdade no fundo do poço


Não vou falar aqui das fake news que invadem as redes sociais e da infodemia que se gerou em torno ao coronavírus. Simplesmente lamento que, em pleno século XXI, quando os cientistas conseguem desvendar, em 24 horas, o genoma de um vírus e, outros cientistas, em longos anos de pesquisa, ajudam-nos a compreender os mistérios do universo, ainda somos obrigados a ouvir pessoas afirmando que uma doença é castigo de Deus ou que a Terra é plana e que os astronautas nunca pisaram na Lua. Não é fácil... Mas, no fundo, este é um problema derivado.
De fato e o que realmente deve nos preocupar, é a raiz desta insanidade que hoje parece tomar conta de nossa sociedade e leva a atitudes de intolerância, violência e desejo de extermínio do outro. A raiz de tudo isso, é a dificuldade de encarar a verdade sobre nós mesmos.
A aceleração do tempo gerada pelas condições extremas de trabalho – penso num motorista de aplicativo que tem que trabalhar 12 ou 16 horas por dia – e o impacto alucinante das mídias sociais sobre o nosso cérebro, faz com que estejamos sempre voltados para fora e incapazes de olhar para o interior de nós mesmos e fazermos aquelas perguntas básicas que estão na origem de toda filosofia e de toda religião: quem sou, de onde vim e para onde vou? Em outras palavras: qual o sentido da minha vida? Como estou vivendo o tempo que me cabe habitar neste mundo?
Quando não paramos para pensar no fundamental, é fácil ser tentado a colocar nos outros a culpa por tudo aquilo que de mal acontece. Se não sei porque estou a viver, a solução fácil que desobriga a pensar, é culpar o irmão, o pai, a mãe, o filho, o vizinho, o colega de trabalho ou de faculdade, o professor, o patrão, a empregada, o estrangeiro, os chineses, o prefeito, o presidente, a oposição. E, da culpabilização à agressão e extermínio, é só um passo, fácil de ser franqueado, quando se tem as armas do poder.
O diálogo de Jesus com a samaritana junto ao Poço de Jacó é uma amostra de como é difícil, mas necessário, olhar para dentro de nós mesmos, para o fundo do poço da nossa existência, para reconhecermos quem somos, quem são os outros e quem é Deus.
No diálogo, Jesus não ensina nenhuma novidade à mulher. Apenas a ajuda a perceber quem ela é em seu presente e em seu passado. E não só a história pessoal, mas a história de seu povo – os samaritanos – e do povo de Israel a quem havia sido ensinada a odiar.
A verdade estava ali, na sua frente, no fundo do poço cavado pelo patriarca Jacó. Estava dentro dela mesma e na sua vida sofrida que a obrigara a ter cinco maridos. Estava na cidade que a segregava e não lhe permitia ir junto com as outras mulheres buscar água no poço. Estava em Jesus que com ela dialogava, despido de todo e qualquer preconceito.
No momento em que pôde olhar para a verdade e compreendê-la, a mulher deixou de odiar-se a si mesma, deixou de odiar a cidade que a discriminava e violentava, deixou de odiar a Jesus, o judeu que estava à sua frente. E passou a anunciar a verdade que encontrara no fundo do poço de si mesma e de seu povo.
Que o caminho da Quaresma, com seu jejum e sua penitência, nos impeça de jogar a verdade no fundo do poço do ensimesmamento e nos dê forças para descobri-la e proclamá-la a todos e todas.
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segunda-feira, 2 de março de 2020

O 8 de março ou a transfiguração das relações


Dois lados nada brilhantes da sociedade brasileira a serem considerados neste Dia Internacional da Mulher. De um lado, a realidade laboral. Em todas as empresas, em todas as funções, desde as básicas até as gerenciais, as mulheres, exercendo as mesmas funções que os homens, ganham, em média, 30% a menos que os homens.

Nas profissões que exigem menos qualificação, a diferença é menor. Nas profissões ditas “de ponta”, a diferença pode ultrapassar os 100%. Ou seja, os homens ganham o dobro das mulheres, pelo simples fato de serem homens... Segundo dados do IBGE, em 2019, a renda média dos homens brasileiros foi de R$2.043,00. A renda média das mulheres, por sua vez, foi de R$ 1.762,00. Uma diferença de R$ 489,00.

O que explica isso? Apenas uma razão: o machismo que impregna a sociedade brasileira como um todo e se expressa no mundo do trabalho onde uma mulher, mesmo tendo a mesma formação e desempenhando a mesma função, recebe uma remuneração inferior à de um homem nas mesmas condições.

O outro dado, ainda mais estarrecedor do que o primeiro, é o da violência contra a mulher. No Brasil, a cada quatro minutos, uma mulher é vítima de violência física, sexual ou psicológica. Número que inclui apenas os casos notificados em que as vítimas sobreviveram. E todos sabemos que os casos não notificados são muito mais numerosos que os que chegam aos registros policiais ou médicos. A cada duas horas, uma mulher é estuprada.  No ano de 2017, no Brasil, 4.396 mulheres foram assassinadas pelo simples fato de serem mulheres, ou seja, casos tipificados como feminicídios.

As maiores vítimas de violência sexual são mulheres com até 19 anos, ou seja, crianças e adolescentes. A violência física é cometida principalmente contra mulheres entre 20 e 39 anos.
O mais aterrador destes dados – já de por si assustadores – é que 70% dos atos violentos contra as mulheres acontecem dentro do próprio ambiente familiar. Os principais abusadores de crianças e adolescentes são os pais, avôs, tios, irmãos, primos... 36% das agressões físicas contra as mulheres adultas são cometidos pelo cônjuge e 14% por ex-maridos ou ex-companheiros. Apenas 9% das agressões contra as mulheres são cometidas por desconhecidos.

Que dizer de tudo isso e de outros dados que poderiam ser acrescentados? Primeiro, que é necessário, assim como foi naquele março de 1911, quando 125 mulheres e 21 homens em greve foram queimados dentro de uma fábrica nos Estados Unidos, continuar lutando pela igualdade de gênero. Sonhamos com uma sociedade em que ninguém seja julgado melhor ou pior pelo fato de ser homem ou ser mulher.
É o primeiro passo que, para ser pleno, necessita de um segundo: o da transparência nas relações entre homens e mulheres. Na nossa sociedade, as mulheres sofrem, em todos os âmbitos das relações, a violência do machismo. Isso não pode ser negado, ocultado, disfarçado. Precisa ser dito e superado. Mas para isso é preciso superar as masculinidades tóxicas que fazem sofrer as mulheres e também fazem sofrer os homens. Como dizia Paulo Freire, o opressor, ao mesmo tempo em que desumaniza o oprimido, se desumaniza a si mesmo.

A igualdade de gênero buscada pelas mulheres não é um perigo para os homens. Pelo contrário... É a ocasião para os homens libertarmo-nos da condição de opressores que – consciente ou inconscientemente – carregamos dentro de nós e possamos realizar a transfiguração do nosso ser masculino para que, homens e mulheres, possamos conviver em harmoniosa diferença e pluralidade.
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