segunda-feira, 27 de abril de 2020

Ovelha ou rebanho?

Aconteceu comigo há alguns meses. Voltava de uma atividade no interior. Parei na tenda em que sabia que havia um bom queijo. Havia uns quatro ou cinco carros estacionados. Desci, entrei na tenda e, para minha surpresa, não havia nenhum cliente. Saudei o rapaz que aí estava e, como era meu conhecido de longa data, perguntei: “Cadê todo o pessoal desses carros aí na frente?”
Do fundo da tenda saiu o pai, me saudou e disse com toda calma: “Os carros são nossos. A gente traz aí de manhã e deixa estacionado. Se não tem nenhum carro na frente, ninguém para. Se tem muito carro, todo mundo para!” Imagino que aquele senhor de quase sessenta anos, nascido na Região das Missões e com seu negócio instalado há dez anos no Vale do Caí, não tenha conhecimentos de sociologia e psicologia social. Mas ele, com seu saber prático, descreveu um dos fenômenos mais típicos de nossa época: o comportamento de manada.
A sociologia descreve o fenômeno como a atitude de indivíduos em grupo que, em uma situação de dúvida ou tensão, reagem todos da mesma forma, mesmo sem saber para onde suas ações conduzem. É o clássico “João vai com os outros”. Só que não é um só João. São muitos Joões e todos vão para o mesmo lado sem saber o que os encontrará pela frente!
Duas são as bases para este comportamento. A insegurança e a ignorância. Quanto mais fragilizado e menos informado um grupo, mais fácil de ser conduzido. E com isto já aponto para o outro lado da questão. Hoje, o comportamento de manada, é conhecido, estudado e aplicado de forma científica em muitos setores da sociedade.
Não é só o seu Helmuth que deixa os carros na frente da tenda para que todos vejam que a loja é bem frequentada. Nas propagandas, os supermercados estão cheios de gente feliz. Duplas sertanejas inflam seus shows para dizer que são mais populares. Pastores e padres reúnem multidões para mostrar que são eficientes intermediadores da graça de Deus. Políticos pagam robôs para multiplicar “likes”, comentários e compartilhamentos em redes sociais. E todos somos convidados a ser rebanho que caminha alegremente em direção ao matadouro.
Se queremos mudar o país e o mundo, precisamos deixar o comportamento de rebanho e voltar a ser ovelhas. A diferença é simples. Jesus já a assinalou. A ovelha conhece o pastor pela voz. E ele conhece cada ovelha e a chama pelo nome. O ladrão, esse foge de toda conversa e desvia o olhar das ovelhas, porque sua intenção não é cuidar, mas matar e roubar.
Ah! Seu Helmuth, da tenda de produtos coloniais do Vale do Caí, quando chego, sempre me chama pelo nome. É um bom pastor de compradores de queijo colonial. Abraços, seu Helmuth!
_____________________
Baixe aqui o ÁUDIO desta reflexão.


Inscreva-se em nosso canal no YouTube



segunda-feira, 20 de abril de 2020

Viver para contá-la.


O escritor colombiano, Prêmio Nobel de Literatura, Gabriel Garcia Márquez, abre o primeiro capítulo do primeiro volume – são três – de seu livro de memórias com uma frase que, por si só, já vale toda a leitura: “a vida não é o que se viveu, mas o que se recorda e como se recorda para contá-la”.
De fato, muitas coisas acontecem em nossas vidas. Algumas, logo as esquecemos. Outras, ficam gravadas em nossas memórias. Umas poucas, estamos sempre a contá-las e recontá-las para nós mesmos e para os outros. E, cada vez que as contamos as vamos contando de um modo diferente. Não porque o passado tenha mudado. Mas porque o contar e o recontar estas histórias muda as nossas vidas na medida em que as contamos de um jeito diferente de acordo à necessidade do presente.
Com efeito, o sentido de recordar e contar o que se viveu, não é apenas o de lembrar os tempos pretéritos. O principal efeito de contar a própria história, é dar sentido ao momento presente e assim abrir o caminho para o futuro que sonhamos. Contar o passado é dar sentido ao passado. É o primeiro passo. Mas é, ao mesmo tempo, compreender o presente e assegurar o futuro.
A passagem do Evangelho em que Jesus se encontra com os dois discípulos de Emaús mostra o quanto a intuição literariamente expressa de Gabriel Garcia Márquez dialoga com a experiência cristã. Estavam os dois discípulos fugindo de Jerusalém diante do horroroso espetáculo aí acontecido na Festa da Páscoa. Os romanos, a pedido dos chefes de Israel, haviam crucificado a várias pessoas. Entre elas, o mestre deles, Jesus. Eles estavam perdidos. Apesar de terem assistido a tudo, estavam sem nada compreender. Jesus se aproxima e convida-os a lembrar e contar o que havia acontecido. E, a partir dos eventos recentes, faz com eles uma longa viagem pela história do Povo de Israel, desde os mais longínquos até o presente. E, ao chegar em casa, depois de haver partido o pão como o povo o fizera ao sair do Egito, no deserto, ao chegar na Terra Prometida, no exílio na Babilônia, e como Jesus o partilhara tantas vezes com eles, encontraram o sentido de tudo o que acontecera e estava acontecendo: Deus não havia abandonado o seu povo. Pelo contrário. Aquilo que parecia uma desgraça, havia sido, na verdade, a graça de Deus.
Penso nisso ao imaginar como, daqui a dez, vinte, trinta, cinquenta anos, contaremos aos nossos filhos, netos e bisnetos, aquilo que estamos vivendo hoje. E, mais de o que contaremos, como o contaremos. Afinal, como bem remarca o escritor colombiano, o mais importante não é o que a gente vive. O que importa, de fato, é o que lembraremos e como o lembraremos para contá-lo aos que vierem depois de nós. E nisso, a intuição de Gabriel Garcia Márquez pode ser pensada também de um outro ângulo, ainda mais instigador. O do futuro que interroga o presente: teremos orgulho do que fazemos hoje ou vamos fazer tudo o que for possível para ocultá-lo a nossos filhos e netos?
__________________

Se você quiser divulgar em sua rádio o áudio desta reflexão, CLIQUE AQUI!

Inscreva-se em nosso canal no YouTube

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Tomé, a fé e o fanatismo


A Páscoa é uma história com personagens fortes. O principal, como não poderia deixar de ser, é Jesus. Primeiro, crucificado. Depois, ressuscitado. A seu lado, os coadjuvantes: Judas, o traidor; Pilatos, o covarde; Herodes, o cínico; Caifás, o mau; Pedro, o medroso; Verônica, a consoladora; Maria Madalena, a corajosa. E há os figurantes: os discípulos fujões, os soldados sádicos, a multidão volúvel, os dois crucificados ao lado de Jesus, a mulher que dedura Pedro, as Marias que de longe assistem tudo...
Há um personagem que, de figurante na cena da Paixão, se torna o “coadjuvante principal” numa das cenas da Ressurreição. Tomé, o gêmeo. Aquele que só acreditou depois de ver as mãos e tocar o lado do Ressuscitado. Tal atitude lhe valeu a fama de alguém que não tem fé. Ou que só acredita depois de ter as prova. Aquele que só acredita depois de ver. Uma má fama. Fama que precisa ser reabilitada. Mais: precisa ser promovida. Ele, de certo modo, antecipou-se no tempo. Da fama daquele que não tem fé, Tomé merece ser promovido a patrono da fé moderna. Ele não se contenta em que lhe digam. Ele quer experimentar por si mesmo. Quer ver. Quer comprovar. Essa é a lógica do adulto no mundo moderno.
Ter fé – hoje e em todos os tempos – não significa acreditar naquilo que as leis da natureza não conseguem explicar. Fé, no verdadeiro sentido da palavra, é encontrar o sentido último de todas as coisas, inclusive daquilo que a razão explica. A fé não se opõe à razão. Pelo contrário. A fé exige a razão. Ela pressupõe a ciência e tira dela o proveito na medida em que lhe dá subsídios para melhor compreender o que está acontecendo e indagar-se sobre o que isso significa para o ser humano e o mundo.
O oposto da fé é a falta de sentido e não a falta de explicação. A razão explica. A fé compreende. Em outras palavras, a ciência procura explicar o “como” as coisas acontecem. A fé se interessa e tenta explicar o “porque” tais coisas acontecem.
A ciência sem a fé pode tornar-se perigosa. Arrisca enveredar-se por uma busca vaidosa do conhecimento pelo conhecimento e se esquece das consequências que isso tem para o ser humano e para o mundo. É o cientificismo desvairado que pode nos levar ao apocalipse ecológico.
A fé sem ciência transforma-se em curandeirismo necrófilo, em obscurantismo patógeno que descamba no fanatismo totalitário que constrói e alimenta mitos que falsificam a realidade e impedem o encontro com a verdade
Muitas vezes, tanto na pesquisa científica quanto no caminho da fé, o “porque” explicativo se transforma em “por quê” interrogativo. Ao lado da busca, muitas vezes inglória das ciências, há, não raras vezes, a “noite escura da fé”.
Nestes tempos difíceis que nos cabe viver, no trôpego caminho da incerteza que aguilhoa o espírito humano, fé e ciência, vividas na humildade da busca titubeante, precisam dar-se as mãos para alcançar a verdade. E assim, como Tomé, ao ver as mãos de Jesus e tocar seu lado, teve fé e acreditou, também possamos entender racionalmente o que está acontecendo e colocarmo-nos nas mãos de Deus.


  • Baixe aqui o AUDIO desta reflexão. Caso você o difunda em sua rádio, por favor, comunique-nos pelo email zugno1965@hotmail.com 





segunda-feira, 6 de abril de 2020

Vocês sabem o que aconteceu...


O cristianismo é a religião da memória. No sentido cristão, fazer memória não é apenas lembrar os fatos do passado. É lembrá-los, sim, mas na medida em que eles continuam atuando em nosso presente e nos conduzindo para o futuro.
O cristianismo não inventou isso. É uma herança das raízes judaicas. Na Páscoa judaica, o pai, ao redor da mesa com a família, lembrava aos filhos a trajetória do povo, desde os tempos de peregrinação no deserto, a descida para o Egito, a escravidão que sofreram durante quatro séculos e, finalmente, a libertação que Deus lhes havia proporcionado. Recordar o passado de escravidão e a libertação operada por Deus era a forma de vacinar o povo contra a sedução das novas escravidões.
Na última Páscoa que passou com seus discípulos, Jesus celebrou com eles a memória da libertação. Como mandava a tradição repartiu o pão e o vinho. O pão lembrava a comida para o povo faminto e o vinho a alegria pra os que viviam a dor e o sofrimento. Era o compromisso de continuar fiel a Deus e fiel ao povo.
Jesus pagou caro por sua fidelidade ao projeto de Deus de dar pão aos famintos e alegria aos entristecidos. Foi crucificado e morto na cruz. Mas Deus o ressuscitou e os discípulos reconheceram que Ele estava presente e atuante na pessoa de Jesus. E que, para ser fiel a Deus, era preciso fazer a memória de Jesus e de tudo o que Ele tinha feito.
Na Vigília Pascal, renovamos nosso compromisso com Cristo. Fazemos a Grande Memória da libertação do povo de Israel e da entrega de Jesus Cristo para a nossa salvação. Na memória desse passado, afirmarmos nosso compromisso de viver no presente aquilo que Jesus viveu afim de que o futuro seja de vida nova para todos.
Este ano, a Páscoa terá um sabor especial. As circunstâncias forçam-nos a vivê-la de um modo diferente. Não haverá viagens. Não haverá festas. Nem celebrações litúrgicas públicas. O isolamento social imposto pela Covid19 nos obriga a passar a Páscoa em casa, com nossas famílias. Muitos a passarão sozinhos. Outros em hospitais. E também haverá aqueles que a passarão chorando seus mortos. Os “coelhinhos da Páscoa” desapareceram. Assim como raros serão os chocolates. A mesa não será tão farta como costuma ser nas festas pascais.
Será uma Páscoa diferente, de silêncio e de reflexão. Talvez a oportunidade para, em meio à apreensão, à dor e ao sofrimento, retomarmos o costume de fazer a Memória Pascal. Lembrar a ação libertadora de Deus e renovar o compromisso de, com Jesus, colocar a nossa vida a serviço dos que tem a sua vida ameaçada pelo coronavírus e pelos discursos de morte que ameaçam a sobrevivência dos débeis e dos pobres.
Afinal, como lembra Pedro em seu discurso na casa de Cornélio, “vocês sabem o que aconteceu...”
Uma boa Páscoa de Ressurreição a todos e a todas.
______________________________________

Baixe aqui o AUDIO desta reflexão. A divulgação é livre. Pedimos apenas nos comunique através de nosso correio eletrônico: zugno1965@hotmail.com

Siga-nos em nosso canal no YouTube