segunda-feira, 27 de maio de 2019

A metáfora da Ascensão


A metáfora é uma das figuras de linguagem mais utilizadas e mais poderosas. Através dela, transpomos o significado de algo já conhecido para algo ainda desconhecido e em processo de conhecimento. No falar ou escrever do dia-a-dia, utilizamos muitas metáforas. Na maior parte dos casos, fazêmo-lo sem nos darmos conta.

Tal fenômeno é notável, sobretudo, na linguagem religiosa. Com efeito, falar de Deus implica em tentar dizer aquilo que ultrapassa a capacidade da expressão. Deus é indizível e incircunscritível. Como fazer com que caiba dentro de nossas palavras? Dele, só podemos dizer algo usando metáforas tiradas daquilo que nos é conhecido.

A nossa profissão de fé, o “Creio”, é cheio de metáforas. Uma delas é forte e famosa e está no imaginário de todas as pessoas cristãs. A de que “Jesus subiu as céus”. É uma metáfora que parece pois, na nossa fé, afirmamos que Deus é Espírito e habita em todos os lugares. Se é assim, como o afirmava o velho catecismo de São Belarmino, faz algum sentido tomar esta expressão de forma literal e imaginar Jesus subindo aos céus em meio às nuvens? O que esta metáfora, de fato, quer dizer?

Tomando como referência o imaginário bíblico e a cultura do mundo em que os textos foram que falam da Ascensão foram escritos, podemos afirmar que “subir aos céus” significa, conceitualmente, que Jesus é Deus. Tanto no mundo judaico como no mundo grego, imaginava-se os deuses morando nos lugares altos. As manifestações bíblicas de Deus aconteciam, normalmente, em lugares altos. O Monte Sion, o lugar onde estava construído o Templo de Jerusalém, mesmo não sendo a maior elevação da região, era tido pelos judeus como o lugar mais elevado da Terra. Para os gregos, os deuses moravam no monte Olimpo e, lá das alturas, contemplavam e, conforme o caso, premiavam ou castigavam os míseros mortais que habitavam as planícies.

A verdade de que Jesus, o Filho de Deus, é Deus com o Pai e o Espírito Santo, descrita na metáfora da Ascensão, foi elaborada conceitualmente e proclamada pela Igreja nos Concílios de Niceia e Calcedônia que abandonou a metáfora da Ascensão e afirmar a consubstancialidade entre o Pai e o Filho. Poucos cristãos sabem o que significa “consubstancial”. Mas todos, sem esforço, entendem a metáfora da Ascensão...

Por sua plasticidade, a metáfora é uma figura aberta. Ela é passível de novas interpretações a partir de novas pergunta se novos contextos. Nisso está sua riqueza e amplitude. No caso da metáfora da Ascensão, ela também pode ser lida a partir da linguagem do teatro. Tal interpretação é possível a partir da dica dada pelo texto dos Atos dos Apóstolos. Lucas, ao descrever a cena da Ascensão, afirma que, enquanto Jesus desaparecia entre as nuvens, dois homens vestidos de branco apareceram aos discípulos e disseram-lhes: “Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu?”

Na metáfora da Ascensão, Jesus sai de cena. Durante três anos, ele havia sido o personagem central e os apóstolos os coadjuvantes e, alguns, a plateia. Agora Ele sai do palco. Jesus se retira para que eles assumam o protagonismo da missão. Aos discípulos e discípulas cabe agora serem os mensageiros e atuadores do Reino. Ele já fez a sua parte. Agora, a responsabilidade recai sobre os homens e mulheres que o acompanharam desde a Galileia e com Ele aprenderam a arte de atuar o Reino de Deus.

Mas, como bom mestre, Jesus não os deixa sozinhos. Deixa-lhes o Espírito Santo. E promete-lhes sempre estar presente para dirigir a sua obra prima para que o espetáculo do Reino não se perca. Agora, é o tempo da Igreja. Nada de ficar olhando para cima. Deus não está acima de todos. Ele está ao nosso lado. Tanto no irmão e na irmã com o qual solidariamente unimos as mãos quanto naquele que está caído e estende a mão para ser levantado. É hora de atuar. É hora de seguir o caminho de Jesus para que um dia nós também possamos ser elevados aos céus.


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quarta-feira, 22 de maio de 2019

Pax Romana ou Paz Cristã?

Todos aspiramos a um mundo de unidade e paz. Só pessoas psicopatas, doentes ou mal-intencionadas gostam de armas, de tensões, conflitos ou guerras. O sonho de quem experimenta em si e quer estender aos outros o calor de humanidade e solidariedade, é de que um dia possamos viver em sociedades onde não haja mais divisões, tenham elas suas raízes em diferenças econômicas, políticas, culturais, étnicas, religiosas, de gênero ou de qualquer espécie. E que, da superação das divisões, nasça a paz tão anelada que nos permita aproximamo-nos de cada pessoa, por mais próxima ou mais diferente de nós, sem receio de ser rejeitado ou agredido e sem provocar nela temor algum.
A fé cristã expressa esse sonho de unidade nas palavras dirigidas por Jesus a seus discípulos no encontro de despedida que com eles fez antes da paixão em Jerusalém. Na conversa com os discípulos, Jesus anuncia que parte para o Pai, mas não os deixará sós. De junto do Pai, Ele enviará seu Espírito para continuar a animá-los na caminhada. E diz aos discípulos que deixará a paz como sinal de sua presença: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou, mas não a dou como o mundo.”
Ao ouvir essa afirmação, logo surge uma pergunta: por que Jesus acrescenta, depois de ter anunciado a paz, que a sua paz não é a mesma que o mundo dá? Haverá duas formas de paz? A paz de Jesus e a paz do mundo?

Ciente da realidade do mundo que o envolve, Jesus sabe, sim, que há dois tipos de paz. A “paz do mundo” é a “pax romana” vivida em seu tempo. A paz imposta pela força das armas. A paz que não permite a diferença. A paz que exige uniformização e submissão. É a paz dos impérios que se constroem pela destruição do diferente. A paz que se nutre da eliminação de pessoas, comunidades, nações e culturas. É a paz dos cemitérios, dos presídios, das casas de tortura, das valas comuns, dos campos de concentração e extermínio. É a paz que nasce da morte, se nutre da morte e que gera morte.
Essa paz Jesus não quer. Essa paz o cristão não pode aceitar. A verdadeira paz é aquela que nasce da justiça, da acolhida do outro, da aceitação do diferente e do voltar-se para aqueles e aquelas que precisam da mão estendida para levantar-se do chão onde foram jogadas pela força da opressão.
A verdadeira paz é exigente. É mais do que um pacifismo que ignora as dores e os sofrimentos dos fracos, dos humilhados e da criação. E ela e difícil inclusive para os cristãos. Nas primeiras comunidades cristãs, assim que surgiram as primeiras tensões por causa das diversidades nelas existentes, a tentação foi a de impor a uniformidade. Os cristãos provindos do judaísmo passaram a exigir que os cristãos oriundos de outras culturas adotassem as tradições e costumes judaicos. Que não comessem carne de animais considerados impuros e se circuncidassem assim como os judeus os faziam.

Por sorte, Paulo e Barnabé, com a força do Espírito Santo, fizeram ressoar de novo no coração da comunidade o ensinamento de Jesus que não exigia a uniformidade mas respeitava cada um no seu modo de ser. Depois da assembleia conciliar em que cada um pode expor seu modo de pensar, a comunidade decidiu não impor nenhum fardo além do indispensável. No relato dos Atos dos Apóstolos, o indispensável é não deixar-se contaminar pela ideologia dominante transmitida por uma religião que, ao invés de pregar a misericórdia, exigia sacrifícios e legitima a dominação. Na Carta aos Gálatas, Paulo, de sua própria palavra, diz que a única condição necessária para que se construa uma comunidade unida e em paz, é “que os pobres nunca sejam esquecidos” (Gal 2,10).

Na soma dos dois textos, o caminho para a construção da unidade e da paz: o diálogo transparente que supera as ideologias de dominação e a justiça para com os mais pobres. Na medida em que estas duas práticas começam a ganhar espaço na Igreja e na sociedade, abrem-se as portas para a Nova Jerusalém.

Assista aqui ao vídeo com o conteúdo

domingo, 12 de maio de 2019

Sobre dores e amores ou dialogando com Buda, Jesus, Maomé e Kardec


Ninguém gosta da dor. Seja ela física ou espiritual. Mas é muito difícil, para não dizer impossível, viver sem sofrer, seja no corpo ou na alma. A dor é uma realidade que não podemos negar. Mais cedo ou mais tarde, em algum momento da vida, todos passamos por experiências que ferem o nosso ser. Por que somos obrigados a viver com essa realidade que parece confrontar a nossa condição humana?

Muitas religiões e filosofias surgiram a partir da tentativa – exitosa ou frustrada - para encontrar uma resposta que dê sentido à dor. E a arte muitas vezes se torna a expressão pública e popular das respostas à dolorosa questão. É o caso, por exemplo, de Renato Russo e sua Legião Urbana na música “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. Quase no final, depois de considerar várias realidades humanas, ele afirma: “Toda dor vem do desejo de não sentir dor”.  Popularizada pelo cantar brasiliense, a afirmação faz parte de uma das “quatro nobres verdades” de Buda.

Mas, como todas as verdades profundas expressas numa determinada expressão religiosa, ela também é encontrável em outras religiões. No cristianismo, o desejo de não sentir dor como fonte de toda dor e sofrimento, é expressa no convite que Jesus faz aos discípulos: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, some sobre si a sua cruz, e siga-me, porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á.” Ou então, na afirmação de Paulo e Barnabé quando voltaram para as cidades de Listra, Icônio e Antioquia e, para encorajar os discípulos, os exortavam a permanecer firmes na fé dizendo-lhes: “É preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no Reino de Deus”

Mas como fazer para que esta dor não nos destrua, mas sirva de ocasião para iniciar o caminho para chegar à plena realização humana? Um caminho é o do desapego de tudo o que nos prende a esse mundo. Seja das coisas materiais como de nossas vontades pessoais ou dos privilégios sociais. Quando não mais estiver apegada ao nada, aí a pessoa encontrará o todo de seu ser. Maomé dizia que a primeira Jihad é a luta que acontece no interior do fiel para vencer-se a si mesmo em seus desejos egoístas. Só depois terá condições para levar a mensagem de Alláh aos outros. E quem sabe o quanto é difícil vencer-se a si mesmo, será capaz de respeitar os passos do outro no caminho da vitória.

Para Jesus, o caminho para vencer a dor que nasce da condição humana, pessoal ou social, é o amor enquanto capacidade de esquecer-se de si mesmo e entregar-se totalmente ao outro como ele se entregou na cruz. Para o nazareno, amar não é encontrar satisfação para as próprias dores no cuidado que o outro possa proporcionar-me. Amar é voltar-se totalmente sobre as dores dos outros e buscar saná-las dando-se a si mesmo. Mas há um detalhe que precisa ser considerado a partir da única lei que Jesus deixou aos seus discípulos: amai-vos uns aos outros!

Com efeito, o amor é sempre uma experiência recíproca. É um caminho de via dupla. A entrega de um implica intrinsecamente a capacidade de deixar-se amar pelo outro. É um vai e vem em que, ao mesmo tempo em que a pessoa entrega, ela é capaz de acolher o outro que o busca. Amar é ter a capacidade de deixar-se afetar pelo outro, de sofrer em si mesmo os sofrimentos dos outros. E como as dores são mutuamente carregadas, todos, ao mesmo tempo em que carregam os pesos dos outros, tem os seus pesos carregados pelos outros e assim todos ficam aligeirados.

Não consigo imaginar a perfeição e plenitude dessa relação como o paraíso de Alláh em que cada fiel é premiado com setenta e duas huris absolutamente submissas. Onde há submissão, não há amor. Há dominação. Tampouco o posso identificar com o Nirvana e sua imperturbável serenidade da mente após o desejo, a aversão e o engano terem sido finalmente extintos. Amar é deixar-se perturbar pela dor e sofrimento do outro e mover-se para saná-los.

Sem desprezar as compreensões citadas pois elas trazem, sim, uma verdade importante, prefiro a imagem da Nova Jerusalém do Livro do Apocalipse de João. Não é uma cidade fora do mundo, um “Nosso Lar” do imaginário espírita brasileiro. A Nova Jerusalém é cada cidade onde habitamos transformada pelo amor de tal modo que o próprio Deus pode morar nela, pois vive-se, nas relações entre as pessoas, a entrega recíproca e a sanação que o amor produz em todos os que sofrem. Para localizar a Nova Jerusalém, não é preciso perguntar onde ir para encontrar o amor de Deus, mas perguntar se amamos de tal modo que Deus pode morar no meio de nós.


sexta-feira, 10 de maio de 2019

O desafio da unidade



O desafio da construção da unidade da humanidade e, nela, das religiões e das igrejas, é um dos grandes desafios de hoje. Para o cristão, esse desafio não é apenas uma questão política ou social. É uma questão de fé. Nós cremos num só Deus. Mas esse Deus, é em si mesmo plural. Por isso, os cristãos cremos que a unidade só pode ser construída no respeito à diversidade. A divisão só interessa àqueles que, do alto de sua posição social, lucram com a divisão dos fracos.

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segunda-feira, 6 de maio de 2019

A INSUSTENTÁVEL PARRESIA DO PAPA FRANCISCO

Amor e ódio. Diante dele ninguém ficava indiferente. Por quê? Porque ele não passava insensível
ante os grandes problemas da humanidade que se apresentavam a seus olhos nos rostos, corpos e
mentes de pessoas concretas que com ele cruzavam pelos caminhos da Galileia. As multidões
ficavam encantadas com seus gestos de carinho, compaixão, cura e perdão para com leprosos,
endemoninhados, aleijados, cegos, surdos, velhos, crianças, mulheres, estrangeiros, mulheres
estrangeiras, mulheres prostituídas, viúvas... Até mesmo os ricos publicanos por todos desprezados
e os soldados romanos pelos judeus odiados encontravam nele palavras e ações de aproximação e
apelo à conversão para a justiça do Reino.

Para os fracos, suas palavras eram suaves e ternas e não lhes impunha jugo algum. Para os fortes e
poderosos, palavras duras e exigências que não pediam apenas a conversão pessoal. Iam muito
além. A conversão por ele pregada implicava no fim do sistema de exploração tanto dos poderosos
da terra como de seus superiores romanos. Aos judeus pedia a justiça do “Ano da Misericórdia”.
Aos romanos, que voltassem para sua cidade e deixassem o Povo de Deus livre para o culto a Javé.

Qual a diferença entre o “Ano da Graça” com o qual Jesus abriu sua missão e o “Ano da
Misericórdia” que marcou o início do pontificado do Papa Francisco? Nenhuma! Graça e
misericórdia são duas palavras para falar do mesmo amor de Deus que vence o medo das religiões e
impérios que massacram a pessoa humana. Jesus iniciou sua missão na periferia da Galileia, região
desprezada pelos judeus e temida pelos romanos como fonte de distúrbios e provocações. O Papa
Francisco foi a Lampedusa acolher os desprezados da Europa e do mundo. Jesus reuniu junto a si
desempregados, pescadores, coletores de impostos e mulheres para fazer deles os anunciadores da
justiça e da graça de Deus. O Papa Francisco se reunião com os Movimentos Sociais e proclamou
que a justiça é que nenhuma família pode ficar sem teto, nenhum camponês sem terra, e nenhum
trabalhador sem emprego. O Filho do Homem não tinha onde reclinar sua cabeça e enviou seus
discípulos sem mochila, com apenas uma túnica e um par de sandálias. O Papa Francisco recusou
desde o princípio e persiste em manter-se distante de palácios, roupas, sapatos, faustos e honras dos
príncipes deste mundo e da Cúria Romana. Assim como Jesus se recusou a condenar a mulher que
lhe foi apresentada como adúltera, Jesus, ante aqueles indiciados como portadores de pecado ao
mundo, o Papa lembra que Jesus é o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” e pergunta:
“quem sou eu para condenar?”

O Papa é amado e odiado por uma única razão: ele insiste em ser simplesmente um cristão. E seu
cristianismo não se resume à afirmação de uma pertença religiosa. Seu cristianismo é uma fé, uma
aposta de vida, total, absoluta e, ao mesmo tempo, cotidiana e performática. Assim como Jesus, ele
não apenas fala. Ele também faz. E seu agir, provoca amor e ódio como todos os profetas que antes
dele percorreram o caminho da Esperança que passa, necessariamente, pela cruz.