segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Bauman e Simeão

Em sua obra “Tempos Líquidos”, o filósofo polonês Zygmunt Bauman, apresenta a incapacidade de planejar a longo prazo como uma das características da “modernidade líquida” em que vivemos.

Para ele, estamos na era do tempo presente. Ou seja, a grande preocupação das pessoas não é mais preparar o futuro, mas viver o agora. Tanto a nível individual como a nível social. Tal fenômeno emerge, por exemplo, na ânsia consumista que invade mentes e corações. Afinal, para que poupar para gastar mais adiante se posso ter o prazer de consumir agora? Consumir o máximo possível parece ser um modo de viver o futuro já no presente...

No âmbito da convivência social, a falta de planejamento em longo prazo se reflete no fim das utopias. Sacrificar-se no presente para um futuro coletivo melhor para as próximas gerações, é algo absurdo para a maioria das pessoas. O lema parece ser “cada um por si e quem pode que sobreviva ao presente”.

A despreocupação com o meio ambiente e o modo cego como caminhamos para uma catástrofe ecológica de dimensões planetárias, é sintoma da presentificação da experiência humana característica dos tempos líquidos em que vivemos.

Há alternativas para isso? Segundo Baumann, é possível outro modo de nos pensarmos no mundo e no tempo de modo a que o presente não se torne o coveiro do futuro. Duas condições são necessárias para que tal mudança aconteça. A primeira, é a capacidade de indignação diante do mundo em que vivemos. Afinal, só sonha com um futuro aquele e aquela que tem a sensibilidade para não conformar-se com o agora. A anestesia cultural que impede sentir as dores e os sofrimentos do presente, é o veneno que mata o sonho de um mundo melhor.

A segunda condição, é a confiança no ser humano. Se não confiarmos nas pessoas que conosco partilham as horas, os dias, as casas, as ruas, as praças, o ônibus, a fábrica, a escola e a igreja, não haverá futuro possível. Semear a desconfiança e a divisão é o primeiro passo para matar a utopia.
Para escapar do círculo vicioso da pós-modernidade voltada sobre si mesma, é preciso seguir o exemplo do velho Simeão. Sentado à porta do Templo, ele não só esperava a esmola dos que ali vinham para rezar. Ele também esperava o tempo futuro em que Deus enviaria Seu Filho para tirar o povo de Israel da escravidão.

Simeão continuava a sonhar com a utopia do Reino de Deus. E, ao ver o jovem Jesus chegando, ladeado por José e Maria, Simeão confiou nele como ninguém o faria. Jesus era apenas mais um dos tantos meninos judeus que seriam apresentados no templo. E mais: era um galileu, morador de uma região de pessoas não confiáveis. Mas o velho Simeão confiou na humanidade de Jesus e viu nele a possibilidade da realização das promessas de Deus.

E, na sua velhice, teve a certeza de que, pela ação daquele menino, a realidade podia ser mudada e conduzida para o futuro desejado por Deus. E por isso pode proclamar: “Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar teu servo partir em paz”.
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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

De onde menos se espera...


“Do jeito que está, não dá mais!” É uma frase que ouvimos com frequência. Especialmente quando se fala da grave crise social pela qual passa nosso país. “Mudança”, é uma palavra que catalisa a insatisfação e gera as mais variadas respostas.

Mas, quando falamos em mudança, é preciso sempre colocar duas perguntas. Se não queremos do jeito que está agora, para onde queremos ir? Mudar por mudar, pode levar a uma situação ainda pior do que a que aí está. Nos últimos anos, vimos inúmeras mudanças acontecerem no nosso país. Mas, todas elas, no lugar de melhorar a vida do povo, levaram a uma situação ainda mais precária. A pobreza aumentou, voltamos ao “mapa da fome”, o desemprego é a grande aflição das famílias, as condições de trabalho foram precarizadas, os recursos para a edução e saúde foram encolhidos, aposentar-se tornou-se um sonho praticamente irrealizável para as futuras gerações, a preocupação com a preservação do meio ambiente foi simplesmente desprezada, o Brasil abandonou todo e qualquer projeto de nação e tornou-se um satélite dos interesses norte-americanos. Queremos continuar caminhando nesta direção ou é necessário refazer o rumo? Tristemente, muitos se contentam com o discurso de mudança e não se perguntam para onde as mudanças que estão sendo feitas nos conduzirão a nós e às futuras gerações.

E aí vem a segunda pergunta: quem poderá realizar as mudanças que realmente interessam ao país? A história nos ensina que, aqueles e aquelas que sempre foram os privilegiados, a estes nunca interessam as verdadeiras mudanças. No máximo, eles podem fazer mudanças para buscar um lugar ainda mais exclusivo dentro da sociedade, enquanto as grandes maiorias continuarão em suas péssimas condições de vida.

A verdadeira mudança, a que interessa às maiorias, só poderá ser feita por aqueles e aquelas que sempre foram relegados às margens da sociedade. No Brasil, serão as mulheres, os negros, os jovens, os indígenas, os idosos, os sem trabalho, sem casa e sem teto, os que poderão fazer deslanchar a verdadeira mudança que o país precisa.

E isso não é apenas uma afirmação sociológica. De fato, a sociologia sempre afirmou que as verdadeiras transformações sociais nascem do desejo de mudança levantado por aqueles que vivem na periferia da sociedade, do sistema e dos impérios.

Mas, para o cristão, esta também é uma verdade de fé. Jesus iniciou sua missão em Israel, na periferia do Império Romano que, na época, dominava o mundo. E, em Israel, ele não escolheu como lugar para iniciar sua atividade a cidade de Jerusalém ou as cidades romanas de Séforis e Tiberíades. Foi em Cafarnaum, na beira do Mar da Galileia, na Terra de Zabulon e Naftali, na Galileia que era por todos desprezada por ser uma terra ocupada pelos pagãos. Foi lá, na periferia da periferia, que Jesus iniciou seu projeto de mudança de toda a sociedade.

E, para acompanhá-lo, não escolheu pessoas importantes. Chamou pescadores, homens que não tinham do que sobreviver a não ser aventurando-se no mar para buscar algo para dar de comer a seus filhos e filhas.

É nessa periferia social que Jesus busca aqueles e aqueles que, com ele, poderão fazer brotar a semente do Reino de Deus. Que o exemplo de Jesus nos inspire nas mudanças que a sociedade tanto precisa.
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segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Nós e/ou eles


Eric Hobsbawm, um dos grandes historiadores ingleses dos últimos tempos, ao organizar a periodização da história do Ocidente, chamou o séc. XX como o século “breve”. Para ele, o séc. XX iniciou com a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914 e terminou com a Queda do Muro de Berlim e a implosão da União Soviética em 1991. Segundo Hobsbawm, o que caracterizou o breve século de apenas oito décadas foi a polarização entre as duas megapotências do período: os Estados Unidos da América e a União Soviética. Polarização que se explicitava em disputas econômicas, políticas, militares, científicas, culturais e esportivas. E alinhava aliadas de um lado e de outro ao redor do mundo formando aquilo que se denominou Guerra Fria.

O desmantelamento da União Soviética foi celebrado no Ocidente, no dizer de Francis Fukuyama, como o Fim da História. Segundo essa interpretação, teríamos entrado num mundo unipolar sob o comando do Império Americano. Mas tal leitura logo mostrou-se equivocada pois, ao redor do mundo, novas tensões nasceram. As revoltas no Oriente Médio contra o padrão ocidental de vida fez com Samuel P. Huntington falasse no “Choque de Civilizações”. Este oporia radicalmente o mundo árabe e islâmico com o mundo europeu e cristão. Aqui também percebeu-se que a realidade era mais complexa que a reedição de uma releitura bipolar. Para além do “nós contra eles” da Guerra Fria ou do Choque de Civilizações há uma pluralidade de culturas, cosmovisões, identidades, interesses, diferenças… que nos obrigam a pensar o mundo tendo em conta duas realidades que estão sempre a tensionar. Por um lado, todos fazemos parte da mesma humanidade e habitamos o mesmo sistema Terra. Por outro, nesta identidade comum, somos muitos e diferentes e não há como impor um único modo de ver o mundo sobre a totalidade dos seres humanos. Em outras palavras, temos que superar os dualismos e a tentação da unipolaridade e aprender a pensar a unidade na diversidade e a diversidade na unidade.

Tarefa difícil, mas não impossível. E ela pode ser iniciada bem perto de nós. Até mesmo dentro de nossa família. Afinal, quem não tem em sua família alguém que pensa diferente daquilo que eu penso? Nestes tempos de polarização binária em que vivemos no Brasil, é uma realidade desafiadora conviver com quem pensa diferente no campo da política, por exemplo. Ou então, em temas religiosos, seja dentro de sua comunidade de fé ou na relação com as outras.
Podemos ampliar isso para a vizinhança, para a comunidade mais ampla, para o país e para o mundo. Precisamos aprender ou reaprender a conviver com o diferente. Sem este aprendizado, dificilmente teremos futuro.

Para os cristãos, combinar universalidade com as particularidades, não é uma opção. É uma obrigação. Afinal, o Deus em quem cremos e que foi anunciado por Jesus, não veio para salvar apenas o povo de Israel. Ele veio para salvar a todas as nações. E sem obrigar que todos se tornassem judeus. Cada um foi salvo a partir de sua identidade cultural, social, nacional, étnica, de gênero. E todos foram salvos.

Como bem explicita o apóstolo Paulo, em Jesus Cristo não existe o “ou nós ou eles”. Em Jesus Cristo, sempre haverá “e nós e eles”. Todos juntos, cada um na sua diferença, unidos na única salvação.
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segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Duelos de humildade


São Francisco e São Domingos são, sem sombra de dúvida, duas grandes figuras do mundo medieval. Com seu carisma e seu estilo de vida, deram origem a duas grandes tradições que até hoje continuam a inspirar cristãos e até pessoas de outras religiões ou que não professam religião alguma.

Não há certeza histórica de que os dois tenham se encontrado em vida. Certamente um ouviu falar do outro. E a tradição fez com que se encontrassem. Na fonte franciscana chamada “Espelho da Perfeição”, narra-se o que teria sido um possível encontro de Francisco e Domingos. Estando os dois em Roma, em companhia do bispo de Óstia, este sugeriu aos santos que indicassem membros das suas comunidades para ocupar o cargo de bispos e cardeais. O futuro Papa Gregório IX, que era sobrinho do Papa Inocêncio III e tinha estudado nas melhores Universidades da época, pensava a vida de cristão em termos de carreira eclesiástica. Sua lógica era a lógica do poder. Ocupar cargos eclesiásticos e, através deles alcançar a glória, era o seu ideal e o de muitos cristãos da época.

Diante da proposta do bispo, estabeleceu-se um verdadeiro duelo de humildade entre os dois. Primeiro, para ver quem tomaria a palavra primeiro. Cada um queria ceder a primeira resposta ao outro. Por fim, cedendo às instâncias de Francisco, Domingos tomou a Palavra e disse: “Senhor, com esta experiência, meus frades receberiam, por certo, grande honra; mas, tanto quanto puder impedir, não permitirei que eles recebem nem mesmo a aparência de uma dignidade”. Francisco, por sua vez, falou: “Senhor, meus frades são chamados menores para que não pretendam tornar-se maiores. Se, pois, desejais que eles produzam frutos na Igreja de Deus, conservai-os e mantendo-os no estado de sua vocação e, mesmo que eles aspirem a alguma honra, fazei-os voltar a sua antiga posição e não permitais que sejam elevados a qualquer dignidade”.

Este duelo pela humildade, tão bem dramatizado por Francisco e Domingos, tem sua origem na intuição fundamental do cristianismo: “Quem quiser ser o maior, seja o último e o servidor de todos!” Jesus começou sua missão dando o exemplo. Depois de nascer na periferia de Belém e assumir em tudo a nossa humanidade, Ele fez-se discípulo de João Batista. E, como qualquer outro discípulo, quis ser por ele batizado. João, sabendo quem era Jesus, não queria batizá-lo. Mas Jesus ordenou que João o batizasse para que todos compreendessem que, diante de Deus, a humildade é o caminho da grandeza.

Em seu duelo de humildade, São Francisco e São Domingo em nada inovaram. Apenas viveram radicalmente o caminho cristão que não é o de buscar as glórias. Nem as mundanas e nem as eclesiásticas.

A história dos franciscanos, dominicanos e de toda a cristandade mostra o quanto este modo de vida é difícil... Mas, graças a Deus, temos hoje outro Francisco que nos lembra deste grande desafio de todo cristão batizado, e de modo especial dos seguidores de Francisco e Domingos, de lavar os pés uns dos outros.
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