segunda-feira, 24 de setembro de 2018

De quanto é o juro?


O fato é real. Aconteceu com uma senhora conhecida minha. Mas com certeza aconteceu a cada dia com outras tantas pessoas no Brasil. Pode até ter acontecido com algum conhecido seu.
No caso que vou contar aqui, trata-se de Dona Cidinha. Uma mulher pobre de um bairro popular de uma cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. Dona Cidinha é uma mulher pobre. E além de pobre, é negra. Hoje está com em torno de 70 anos. Mas aparenta ter mais fruto de uma vida de muito trabalho e sofrimento. Desde a infância Dona Cidinha trabalhou em “casa de família”. Como milhões de mulheres, trabalhava e morava na casa dos patrões. Isso até ter a primeira filha. Quando a menina nasceu, a patroa disse que não podia  morar na casa com a menina. Se quisesse continuar a trabalhar, tinha que deixar a menina com alguém. E foi com a avó que ela deixou a menina. Quando veio a segunda criança, a mesma coisa. E também com a terceira. E as crianças foram sendo criadas pela vó e sustentadas pelo trabalho de Dona Cidinha. Até o dia em que a patroa disse que não precisava mais do serviço de Dona Cidinha. Cansada do Brasil, a patroa ia se mudar para os Estados Unidos. E lá se foi a patroa para Nova Iorque. E Dona Cidinha foi morar com a avó e as filhas que, a estas alturas, as duas mais velhas, já eram mães também.

Mas a desgraça maior de Dona Cidinha não foi perder o emprego. Foi saber que todos aqueles anos trabalhados na casa da patroa não tiveram Registro em Carteira e ela não teria nem Seguro Desemprego, nem Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Como recorrer à justiça se a patroa já não morava no Brasil? Nenhum advogado quis assumir a causa. Por sorte, Dona Cidinha, com a ajuda de uma Assistente Social, conseguiu encaminhar o Benefício Continuado por idade. Foi a salvação para ela, suas filhas e suas duas netas.

Mas a desgraça não tinha acabado para Dona Cidinha. Aos dois meses, a mãe de Dona Cidinha faleceu. E poucos dias depois uma de suas filhas também adoeceu e morreu. A outra se foi com um homem morar na fronteira. A terceira ficou porque doente estava e não podia trabalhar. E o dono da casa que a mãe de Dona Cidinha alugava aproveitou a ocasião para pedir o imóvel de volta. E de uma hora para outra Dona Cidinha se viu sem um lugar para morar, com uma filha doente e duas netas para cuidar.

Por sorte conseguiu nas proximidades uma pecinha para morar. Pequena, apertada, calorenta no verão e húmida no inverno. Mas era o que cabia no chuleado orçamento de Dona Cidinha. E ainda havia a água e a luz. E a comida e os remédios seus e da filha doente.

Tudo pareceu se resolver quando um dia Dona Cidinha foi ao banco retirar sua aposentadoria. A uma quadra do banco, uma moça a abordou e, com uma gentileza que Dona Cidinha nunca tinha recebido na vida, convidou-a a entrar na Financeira. E explicou-lhe que, se ela quisesse, poderia dispor imediatamente de dez mil reais. E que esse empréstimo seria pago em pequenas parcelas descontadas mensalmente de sua aposentadoria. E o primeiro desconto só seria feita em três meses. Tudo muito fácil, sem exigência nenhuma. Apenas uma cópia dos documentos e a assinatura nos papéis. Dona Cidinha não queria acreditar. Mas era real. Não havia qualquer dúvida. E ela aí viu a ocasião para fazer aquelas compras com que tanto sonhava, garantir os remédios para a filha e uma melhor alimentação para os netos.

Com um frio na barriga vazia e o coração a mil, Dona Cidinha mandou que preenchessem os papeis, assinou onde lhe mandaram e saiu da financeira com o dinheiro apertado dentro da sacola fortemente segurada pelas duas mãos. Foi para casa direto e no dia seguinte começou a implementar seus sonhos com o tão precioso dinheiro. Foram três meses de felicidade. A filha doente, com os remédios certos e a alimentação melhorada, se sentiu quase boa. As netas, com as roupas novas e os brinquedos, até melhoraram na escola. O problema começou no quarto mês quando começaram entrar os descontos na aposentadoria. Os quase mil reais do salário mínimo baixaram para pouco mais de seiscentos. E, no mês seguinte, baixaram ainda mais. E no terceiro, mais ainda. Dona Cidinha não entendia o porquê isto estava acontecendo. Foi à financeira onde tomara o empréstimo e lhe disseram que era por causa dos juros. “Juros? Mas que juros?”, perguntou ela estupefata. “Vocês não me disseram que ia ter juros!” “A senhora não perguntou!” respondeu a moça com um sorriso amarelo no rosto. E Dona Cidinha soube ali que a cada mês seu saldo iria diminuir por causa dos juros e que não havia nada a fazer, pois ela tinha assinado sem ler!

No quinto mês Dona Cidinha não pagou a conta da água. No seguinte, foi a vez da conta da luz atrasar. E também o aluguel que atrasou já pelo segundo mês. E o remédio não pode ser comprado. E a comida começou a faltar... Tudo porque não tinha perguntado de quanto seriam os juros a pagar.
Penso na triste situação de Dona Cidinha nestes dias em que um séquito de candidatos de todos os partidos passam por nossas portas, ruas, rádios, jornais, televisão e internet oferecendo mil maravilhas para hoje e para amanhã. Eles se parecem com a funcionária da financeira que ofereceu o empréstimo a Dona Cidinha. São só sorrisos e amabilidades. E dizem que tudo é fácil. Basta digitar o número deles e apertar “confirma”.

Não podemos fazer como a pobre Dona Cidinha e não perguntar de quanto será o juro a pagar por essas benesses que nos oferecem. O Brasil já gasta, hoje, 43,98% do dinheiro arrecadado com impostos no pagamento dos juros da dívida. Isso mesmo: quase metade do dinheiro que pagamos em impostos são destinados ao pagamento dos juros da dívida pública. E quem detém esta dívida? Os bancos, públicos e privados. E quem estabelece de quanto vai ser o juro da dívida?  Quem estabelece os juros da dívida é o COPOM, um organismo do Ministério da Fazendo composto, em sua maioria, por representantes do mercado financeiro, ou seja, dos bancos. Alguns membros do COPOM fogem a essa regra. Mas são a minoria. É a raposa cuidando do galinheiro. Imagina então, se colocarmos um banqueiro ou um seu representante para governar o Brasil? Os bancos vão estar com a faca e o queijo na mão para aumentar ainda mais a fatia dos impostos por nós pagos e por eles apropriados.

Antes de votar, então, busque ver qual é a proposta de política financeira de seu candidato. Mais concretamente, busque saber como ele vai tratar a dívida pública. Qual vai ser a política dele em relação ao Banco Central? Vai deixá-lo à mercê do mercado ou vai utilizá-lo como instrumento de política pública? É bom saber antes de digitar o número e confirmar, porque depois, quando ele começar a cobrar os juros, podemos ficar sem educação, sem saúde, sem saneamento, sem investimento em infraestrutura... E aí já não vai mais ter o que chorar! Será tarde demais!

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Que tal um Golpe de Democracia?

A origem do conceito – como não poderia deixar de ser – é francesa: Coup d’État. Dito assim, com a suavidade gaulesa, até parece uma coisa bonita, elegante, delicada: Coup d’État! Em português, foi traduzido literalmente: Golpe de Estado. Os ingleses, na sua mania de praticidade, nem se deram ao trabalho de traduzir a expressão para seu idioma. Utilizaram a versão francesa de modo que, em inglês, Golpe de Estado também se diz Coup d’État. De um lado e de outro do Canal da Mancha – ou do Atlântico, se preferirem – um Coup d’État é um Coup d’État. Já do outro lado do Reno, lá onde se fala a língua germânica, Golpe de Estado pode ser dito de duas formas. A mais breve, utilizada quando tudo acontece em poucas horas e sem muito sangue, diz-se Putsch. Rápido assim, quase que deslizando entre os dentes: Putsch! Já quando é violento, dura semanas, meses e tem como consequência a destruição de muitos bens e de muitas vidas, a palavra é bem mais solene e aterradora: Staatsstreich. Só de ouvir já dá medo! Em russo também soa assustador: gosudarstvennyy perevorot! Não sei se a sensação ao ouvir a expressão russa é de frio ou de ebriedade! Mas que é pesada, não há dúvida.

Mas voltemos ao sentido da expressão. Ela foi inventada por Gabriel Nodé no ano de 1639. Em sua obra Considerations politiques sur les coups d'Etat definiu o Golpe do Estado como a derrubada ilegal, por parte de um órgão do Estado, da ordem constitucional legítima. A primeira e a terceira parte da definição se relacionam entre si e são fáceis de entender. Golpe é quando alguém ou um grupo, de forma ilegal, toma o poder contra a lei e implanta uma nova lei. O detalhe importante na definição de Nodé está no elemento intermediário, ou seja, Golpe mesmo, no sentido estrito da expressão, acontece quando esta ruptura da ordem institucional e legal é feita por alguém que faz parte da estrutura do poder de Estado. Se só estivessem presentes o primeiro e terceiro elemento, Golpe poderia ser confundido por Revolução. Por isso os teóricos políticos do século XVII e XVIII aprofundaram o tema e explicitaram o implícito em Nodé: as Revoluções são as transformações da ordem institucional que vem de fora da estrutura do poder estatal. Revoluções acontecem quando pessoas ou grupos que nunca fizeram parte do Estado tomam o poder do Estado. Foi o caso da Revolução Francesa de 1789 onde a burguesia que não fazia parte do aparato estatal subverteu a ordem vigente e tomou o poder. O mesmo aconteceu na Revolução Russa de 1917 e em outras tantas revoluções populares que derrubaram sistemas oligárquicos de poder que excluíam do Estado a classe trabalhadora. O mesmo pode-se dizer da irrupção das mulheres nas democracias ocidentais no séc. XIX.

Voltando aos Golpes de Estado, eles podem dar-se de várias formas. O Golpe clássico, tão conhecido por nós latino-americanos, é aquele em que os militares – um poder do Estado – intervém destituindo a autoridade vigente e instalando em seu lugar outras pessoas ou grupos para exercer o poder. Mas existe também o autogolpe. Nele, o Presidente ou o Rei fecha o Parlamento e o Judiciário e torna-se a única autoridade da Nação. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Peru no ano de 1992, quando o então Presidente Alberto Fujimori, com o apoio das Forças Armadas, dissolveu o Parlamento e interveio no Judiciário. Existe também o Golpe Parlamentar quando o Legislativo, à margem da Constituição, utiliza sua força para depor um Presidente legitimamente eleito. É o que vem ocorrendo nos últimos tempos na América Latina com a deposição do Presidente Lugo no Paraguai em 2012 e com a Presidenta Dilma em 2016 no Brasil. E existe ainda o Golpe Judiciário quando este poder do Estado em sua máxima expressão, o Supremo Tribunal Federal, utiliza a interpretação da Constituição para destituir ou impedir alguém de assumir o poder. É o que aconteceu no Equador com o ex-Presidente Rafael Correa em 2016; com o ex-Presidente de El Salvador, Mauricio Funes, também em 2016; no Brasil, com o ex-Presidente Lula neste ano de 2018 e possivelmente, acontecerá com a ex-Presidenta Cristina Kirchner na Argentina. Este último modelo de Golpe é o Golpe 3.0 em que o Judiciário age com o apoio das polícias e dos Meios de Comunicação que, na maioria dos países, também são uma concessão do Estado.

Depois disso tudo, passo a explicitar a minha proposta de “Golpe de democracia”. E no Brasil ele é necessário e, a meu ver, viável. A Constituição de 1988 que rege a atual vida política brasileira, em seu Art. 1º, parágrafo único, afirma: “todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”. No caso das eleições, através do voto, esse instrumento da democracia representativa previsto na Constituição, os eleitores podem alijar do poder, por via pacífica, as elites e seus representantes que se apossaram do Estado – no Executivo, Legislativo e, sobremaneira, no Judiciário – e usam-no para manter a população e as riquezas do país sob o seu controle. Por isso, é preciso votar. Nada de abster-se, anular ou votar em branco. E é preciso votar distinguindo claramente quem faz parte da elite e quem faz, realmente, parte do povo. Analisar quais são os partidos que sempre votaram em defesa dos 1% que detém a maior parte da riqueza nacional e os que sempre votaram a favor da imensa maioria que vive no limite da pobreza e dos miseráveis da nação.

Se não fizermos essa mudança radical pelo “golpe democrático”, talvez em breve tempo tenhamos que fazer não um golpe, mas uma revolução democrática. E as revoluções sempre são muito mais sangrentas e custosas que os golpes. Mas elas se tornam inevitáveis quando os “golpes democráticos” não funcionam.

sábado, 8 de setembro de 2018

Violência, desigualdade e fé.


Os dados são da Organização Mundial da Saúde: o Brasil é o nono país mais violento do mundo. Mata-se no Brasil cinco vezes mais que a média mundial. No cômputo global, a média da taxa de homicídios é 6,4 para cada 100 mil pessoas. Na África, a média é de 10 mortes a cada 100 mil, contra apenas 3,3 na Europa. O continente mais afetado pela violência é a América, com 17,9. O índice brasileiro é de 31,1 pessoas a cada 100 mil habitantes.
No ranking mundial da violência a liderança é ocupada por Honduras. No pequeno país centro-americano, são 55,5 homicídios para cada 100 mil pessoas. Em segundo lugar vem a Venezuela com 49,2 homicídios para cada cem mil venezuelanos. Na sequência vem El Salvador (46 para cada cem mil), Colômbia (42), Trinidad e Tobago (41), Jamaica (39,1). Lesoto (35) e África do Sul (33,1).
No ano de 2016, a OMS contabilizou 477 mil homicídios em todo o mundo. 80% das vítimas foram homens. Nas Américas, o total de mortes violentas chegou a 156 mil.
O espantoso é que, nas Américas, onde não há nenhuma guerra declarada, o número de homicídios é maior do que o daquelas regiões onde há conflitos bélicos. Há menos mortos de forma violenta na Síria, no Iraque e no Afeganistão do que no Brasil!
O que explica isso? Somos os americanos – latino-americanos em particular – mais violentos que os outros povos do mundo? Uma resposta simplista seria a afirmativa: sim, somos mais violentos que africanos, asiáticos e europeus!
Mas, como dissemos, é uma resposta simplista. Se formos a fundo e tomarmos outro dado, o da desigualdade social, podemos constatar que os índices de violência se sobrepõe quase que de forma absoluta sobre os índices de desigualdade. A América Latina é o continente mais desigual e, ao mesmo tempo, o mais violento do mundo. Honduras, o país mais violento da América Latina, é também o país mais desigual. O Brasil, nono no índice de violência, é o 10º em desigualdade social. 1% dos brasileiros mais ricos detém mais de 90% da riqueza brasileira. Os seis brasileiros mais ricos detém mais recuros econômicos que os 100 milhões de brasileiros mais pobres. Não há como não relacionar um dado com o outro. Só não querendo ver...
Mas há outro dado a colocar nesta análise. E ele é preocupante: a América Latina é o Continente com o maior percentual de cristãos e, particularmente, com o maior percentual de católicos. 50% dos católicos do mundo estão concentrados na América Latina. E com isso vem a pergunta que não pode ser evitada: há uma relação entre este dado e os dois anteriores? São os cristãos – e os católicos em particular – mais violentos e mais tolerantes com a desigualdade social? Ou, dita em outras formas: a fé declarada de cristãos e católicos tem alguma influência sobre o convívio social? Ou é o cristianismo apenas uma expressão religiosa que não tem nada a ver com o dia a dia das pessoas que a professam e com a sociedade em que elas vivem?
Questões a se por, especialmente nestes tempos em que a motivação religiosa é embaraçosamente misturada com as opções políticas de candidatos e eleitores. Pensemos nisso antes de ler o próximo trecho da Bíblia, de ir ao culto ou à Missa. E pensemos nisso, sobretudo, antes de ir às urnas. E que Deus nos proteja dos cristãos violentos!

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O Oráculo de Delfos contra o voto feminino

Diferentemente do que alguns pensadores de viés positivista querem passar por verdade, os mitos não são uma forma primitiva de tentar explicar a realidade. Pelo contrário, os mitos são, talvez, a forma mais profunda de conhecer o ser humano. E não o ser humano passado dos tempos primitivos em que os mitos parecem situar-se. Mais do que explicar o passado, os mitos explicam o presente daqueles que os criam e recontam. Se quisermos conhecer uma sociedade, nada melhor que conhecer os mitos que lhe dão fundamento.

Além da mitologia do Oriente Próximo presente nas narrativas bíblicas, são muito conhecidas entre nós as mitologias gregas e romanas. Cada uma, a seu modo, ajudam-nos a entender a realidade das respectivas culturas em que foram fornadas. E, na medida em que as recontamos, elas se tornam significativas para explicar nossa própria cultura.

Pensando nisso, trago presente um mito grego pouco conhecido e que ajuda a explicar a exclusão das mulheres da vida política no berço da democracia ocidental. Exclusão que, como vemos no processo eleitoral atual, mesmo que legalmente superada, ainda é factualmente persistente.

Conta a mitologia grega que Atenas, o berço da democracia ocidental, nem sempre se chamou assim. Na origem, ela não tinha nome. Todos a chamavam de Cecrópia pelo fato de ela ter sido fundada pelo rei Cécropes. Filho de Hefesto e Gaia, o fundador tinha dupla natureza: era metade humano e metade réptil.

Cécropes era um rei cuidadoso e diligente e buscava com todo esforço e dedicação o bem estar de seus cidadãos. Além de edificar a cidade e construir muros para defendê-la, estimulou ele a navegação – a cidade era cercada por mares –, a agricultura e as artes.Preocupado em ter a proteção divina, Cécropes foi o primeiro a cultuar a Zeus, o soberano de todos os deuses. Quis também ele que a cidade tivesse um deus protetor em especial. Mas, temendo, ao escolher um, desagradar os outros deuses, não sabia qual escolher.

Posseidon, o deus dos mares, desejoso de ter uma cidade pujante como aquela sob sua proteção, logo se apresentou como candidato. Para ganhar o favor dos habitantes da cidade, jogou seu tridente contra o rochedo sob o qual estava situada a cidade e da rocha brotou uma fonte de água. A cidade se alegrou, pois a água era escassa naquele local.

Sabendo da competição, Atenas, a deusa da sabedoria, também se apresentou. Sua relação com a cidade era próxima por um outro fator. Com efeito, Hefesto tentara estuprar Atenas. Esta fugiu e o sêmem de Hefesto caiu sobre Gaia e dela surgiu Cécropres. Desse modo, mesmo a contragosto, Atenas tinha algo a ver com a origem de Cécropes e da cidade. Para mostrar seu interesse em tornar-se protetora, Atenas fez surgir do rochedo da cidade um pé de oliveira. Diante do presente que lhe fornecei comida, óleo, madeira e sombra, a cidade exultou e tendeu a escolhê-la como sua protetora. Sem saber como resolver o impasse, Cécrope chamou todos os cidadãos de Atenas para a praça para consultá-los e assim não assumir sozinho tão grande responsabilidade.

Ora, naquele tempos primordiais da democracia, tanto homens como mulheres votavam. E todos, homens e mulheres, votaram. Os homens, unanimemente elegeram Posseidon como protetor da cidade. As mulheres, por sua vez, votaram em Atenas. E esta venceu, porque na cidade  havia uma mulher a mais que o total dos homens. E Atena foi instalada como protetora da cidade que recebeu, então, o nome de Atenas.

Poseidon, derrotado, não se conformou. Furioso, agitou as águas dos mares e a navegação tornou-se impossível. Não contente com isso, jogou suas ondas sobre as terras circundantes da cidade que se tornaram incultiváveis. Levados pelo terror, os habitantes de Atenas apelaram para o Oráculo de Delfos. Este, após muitas oferendas e rituais, proclamou sua sentença: Posseidon só cessaria sua fúria quando as mulheres que haviam eleito Atena como sua protetora fossem castigadas. E era um triplo castigo o que tinha que ser imposto a elas. Primeiramente, elas perderiam o mátrio poder, ou seja, os filhos que elas gerassem, daquele momento em diante, já não seriam delas, mas de seus maridos dos quais herdariam o nome. Em segundo lugar, elas deveriam ser destituídas do título de cidadãs de Atenas. E, em terceiro lugar, e consequência do anterior, elas não mais poderiam votar nas decisões a serem tomadas relativas à cidade.

Satisfeitas as exigências de Posseidon, sua violência cessou e Atena pôde reinar sobre a cidade. Quanto às mulheres, a partir daquele momento, não mais puderam participar das atividades democráticas da cidade.

Como disse anteriormente, por sorte esse mito é um dos menos conhecidos entre nós. Mas não faltam os Posseidon que, furiosos por verem-se preteridos na escolha das cidadãs, ameaçam-nas com sua violência a cidade e seus cidadãos e propõem a supressão dos direitos cidadãos das mulheres. E, pior hoje do que nos tempos míticos, às vezes com o voto das próprias mulheres.