terça-feira, 29 de maio de 2018

A banalidade da violência

Para os que se aventuram pelos campos da Filosofia, da Literatura ou do Cinema, certamente não lhes soa estranho o título deste despretensioso texto. Como já intuíram, inspiro-me abertamente na obra da filósofa Hannah Arendt. Entre suas obras, a mais conhecida é, sem dúvida, “A banalidade do mal”. Publicada como livro em 1963, ela reúne a série de reportagens por ela produzidas para o “The New Yorker” por ocasião do julgamento do oficial do exército alemão Adolf Eichmann. A obra ganhou como título “Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal”. Tal foi o impacto da obra que foi versada em filme pelo menos dez vezes. A última e mais contundente – pelo menos do meu ponto de vista – foi a lançada em 2012 por Margarethe von Trotta.
O impactante da obra é que, Hannah, ao relatar o julgamento de Eichmann, apresenta-o de uma forma diferente do esperado pelos leitores do “The New Yorquer” e, de modo especial, pela comunidade judaica. Todos esperavam uma descrição de um oficial alemão irascível, violento, sanguinário e monstruoso assim como monstruosa tinha sido a Segunda Guerra Mundial e, nela, o extermínio de judeus, comunistas, ciganos, homossexuais e deficientes físicos e mentais protagonizado pelo regime nazista e seus aliados. O Eichmann descrito – e tão bem representado no filme de Margarethe von Trotta – é uma pessoa normal, calma, tranquila e que responde com toda serenidade às perguntas que lhe são feitas e se sente inocente de todas as atrocidades cometidas. Na sua consciência, ele apenas obedecera ordens recebidas de seus superiores hierarquicamente estabelecidos na esperança de ser recompensado e assim poder galgar os degraus da burocracia e garantir os recursos econômicos que permitissem à sua família viver uma vida de segurança e tranquilidade.
Diante do fato, a filósofa se pergunta: como é possível tal consciência diante da brutalidade dos crimes cometidos? Fugindo da resposta fácil que responsabiliza um indivíduo em particular pelos males da humanidade, ela compreende o mal não como uma entidade metafísica em si mesma ou um dado natural inerente à condição humana e muito menos como uma perversão individual da condição humana de per si boa. Para Hannah Arendt, o mal tem uma natureza política e histórica. Ele é produzido pelos seres humanos e encontra guarida e se expande a partir de opções coletivas conscientes e deliberadas. Assim, o nazismo, por exemplo, não é fruto da mente perversa de Adolf Hitler ou de seus sequazes mais próximos, mas é resultado das condições históricas vividas na Alemanha no pós-guerra e da opção política da maioria dos alemães que a ele aderiram.
Tal análise que foge da obviedade de culpar um indivíduo pelo mal existente chocou a comunidade judaica norte-americana e a filósofa amargou o ostracismo que lhe foi imposto. E isso não foi sem razão. De fato, o argumento por ela desenvolvido deixava um sério questionamento no ar: não podemos nós, que ontem fomos vítimas, nos tornarmos amanhã vitimários e produzir atrocidades que se comparem às que hoje denunciamos? A história da relação entre o Estado de Israel e os árabes-palestinos mostra que há razões de sobra para se pensar nisso...
Mas meu objetivo era outro ao iniciar esta crônica. Como veem, meu propósito não era falar da banalidade do mal, mas da banalidade da violência. Afinal, o Brasil é um dos países mais violentos do mundo. Sem que aqui haja guerra alguma, somos o 10º país com o maior número de mortes por armas de fogo. Dentre as 50 cidades mais violentas do mundo, 17 estão no Brasil. E a violência é seletiva. O maior índice de mortes acontece entre jovens, jovens negros, jovens negros com baixa escolaridade, mulheres, pessoas LGBT e indígenas.
É aqui que entra Hannah Arendt. Se seguimos sua argumentação, estas mortes não são casuais. Elas têm uma natureza política e histórica. O assassinato da vereadora Marielle Franco – ainda não elucidado, diga-se de passagem – mostrou isso de forma gritante. Por que ela? Mulher, pobre, negra, favelada, lésbica, defensora dos direitos humanos... Havia alvo melhor que ela para demonstrar a opção política e histórica da violência?
Meu temor é que, como sociedade, tornemos a violência banal e persigamos apenas atingir o índice de violência tolerável segundo os indicadores da Organização Mundial da Saúde: 10 mortos a cada 100 mil pessoas! E a partir deste índice básico passemos a tolerar outras formas de violência socialmente produzidas, seja por grupos sociais marginais, seja pelo Estado enquanto representante dos grupos sociais dominantes. E há indícios preocupantes! Pelo lado dos marginais, temos os verdadeiros “estados paralelos” criados pelas associações de traficantes nos presídios e nas periferias das grandes cidades. Com eles competem as milícias formadas por policiais na ativa ou já afastados das corporações militares. E não é só no Rio de Janeiro. Em todas as capitais e nas cidades médias do interior isto é notório.
Mas temos também os insistentes pedidos de intervenção militar nas manifestações políticas que iniciaram em 2013 e se prolongam até hoje. Depois ressurgiram os militares pronunciando-se publicamente sobre questões políticas sem que as autoridades desautorizassem tais pronunciamentos. E a escalada da normalização da violência galgou degraus com a intervenção militar no Rio de Janeiro que, ao invés de diminuir, aumento a violência nos bairros pobres e favelas. E hoje, enquanto escrevo estas linhas, o Presidente em exercício enviando os militares para reprimir a manifestação. Será que não nos estamos acostumando muito facilmente com a banalização da violência e já não somos capazes de reagir à sua normalização como forma de regular a convivência social?
Os monstros não caem do céus nem surgem do nada. Como nos ensinou Hannah Arendt, os monstros são frutos de construção histórica e política. E a política, a arte de conviver com o diferente, é a única forma de combatê-los.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Um Deus metamórfico


Acabamos de celebrar a Festa de Pentecostes. Nela proclamamos a divindade do Espírito Santo que com o Pai e o Filho merece a mesma honra e louvação. É o cerne da fé cristã. A afirmação de que Deus é Pai, Deus é Filho e Deus é Espírito Santo. É a Santíssima Trindade. Algo tão óbvio que os cristãos muitas vezes nos dispensamos de nela pensar. E, no entanto, é uma afirmação ousada a de dizer que há três realidades divinas que são, ao mesmo tempo, um só e mesmo Deus. Afinal, como um mesmo Deus pode ser três realidades distintas ou, visto desde outro ângulo, três realidades distintas – Pai, Filho e Espírito Santo – serem um só e mesmo Deus?
Dentro da lógica que rege o nosso pensamento ocidental, ou se é uma coisa ou se é outra e duas coisas não podem ser a mesma ao mesmo tempo. Com Parmênides de Eleia aprendemos que “o ser é e o não ser não é” e Aristóteles no capítulo VI de sua Metafísica nos ensinou que a proximidade ou distância do “ser” cria hierarquias. Quanto mais próximo do “ser” mais real, nobre e verdadeiro e quanto mais longe do “ser” mais aparente, vil e falso.
Dentro dessa lógica, se o Pai é Deus, o Filho não pode ser Deus e muito menos o Espírito Santo. Lógico. Ou Deus é uma coisa ou é outra. Dentro desta lógica, o máximo que o Filho e o Espírito Santo poderiam ser é “deuses” inferiores e submissos ao Pai. Esse modo de pensar fez surgir, nos inícios da Igreja, uma série de heresias conhecidas como subordinacionistas. Como o nome o diz, o Filho e o Espírito não seriam Deus igual ao Pai, mas seus subordinados. A mais famosa destas heresias foi o arianismo que, no final do século IV e início do século V, praticamente ganhou a unanimidade entre os doutros da Igreja no Ocidente. Mas não foi aceito pela fé popular e, com o tempo, rejeitado como herético.
Quem conseguiu fugir do aparentemente insuperável princípio da não contradição parmenídico e aristotélico foram os padres capadócios: São Basílio, São Gregório de Nissa e São Gregório de Nazianzo. Nascidos na atual Turquia, eles buscaram guardar o princípio original da experiência cristã e, nela, a afirmação da Trindade. Segundo o pensador francês Jean-Yves Leloup, eles são os “verdadeiros filósofos”, um “continente esquecido no pensamento ocidental”. E isso por duas razões. Primeira, porque pagaram com a vida o seu arraigo à experiência originante da fé cristã: a de que Jesus é Deus com o Pai e o Espírito. Segundo, porque colocaram os fundamentos de um nova forma de pensar não mais baseada na lógica parmenídico-aristotélica, mas no princípio da relacionalidade.
Segundo os padres capadócios, o que faz o “ser” das diversas realidades, não é a sua identidade e a contradição que ela possa estabelecer com as outras identidades. O que faz algo ser o que é, segundo os capadócios, é a sua relação com os outros seres. Assim, na Trindade, o que faz o Pai ser Pai é sua relação com o Filho e o Espírito Santo. E o que faz o Filho ser Filho é a sua relação como Pai e o Espírito e o que faz o Espírito ser Espírito é sua relação com o Pai e o Filho. É o princípio da relacionalidade que os capadócios chamaram, usando a língua grega na qual pensavam, de “pericoresis”. Em outras palavras, para que uma pessoa da Trindade seja o que Ela é, é necessário a sua relação com as outras. E essa relação, nos ensinam os padres do Oriente, é sempre dupla: ao mesmo tempo em que na relação cada um dos membros da Trindade é constituído em sua identidade, Ele também constrói a identidade do outro num jogo dinâmico de Amor entre os três.
E, como em Deus não há mentira, mas Ele age conforme é, Deus, em sua trinitariedade relacional, não poderia ficar sozinho. Para continuar expandindo sua relação de Amor, ele criou o mundo e a humanidade e nelas deixou a marca do seu ser, o princípio da relacionalidade. O mundo e, nele os humanos, somos feitos à imagem e semelhança de Deus-Trindade. Somos seres de relações. Ninguém “é” sozinho e nem encontra sua identidade na contradição com o outro. Nós somos o que somos na medida de nossas relações. O ser sozinho, a autonomia, a competição, a meritocracia... e outras tantas formas de isolacionismo e hierarquização social são o princípio da morte, do não-ser, do nada, tanto de si mesmo como do outro.
A ecologia integral tão bem apresentada pelo Papa Francisco na Laudato Sì já incorporou este conceito ao tratar dos seres da criação, entre eles o ser humano, que só existirá enquanto existirem os outros seres que tanto teimamos em destruir. A sabedoria popular também há muito tempo já acolheu esta realidade através do ditado “dize-me com quem andas e eu direi quem tu és”. Nós somos as nossas relações! Para o bem ou para o mal. E mudamos o nosso ser não apenas a partir de decisões interiores, mas no concreto da mudança das pessoas com quem convivemos, deixando que elas nos mudem e atuando para mudá-las.
Na linguagem parmenídico-aristotélica, nós não somos nem formados e nem amorfos. Somos seres capazes de transformação, ou seja, de ir além da forma que recebemos e caminharmos sempre em novas e inovadoras formas de ser. Assim como o Deus-Trindade o é: um Deus para além de todas as formas. Um Deus de relações. Um Deus meta-mórfico que nos faz sempre e cada vez novos em nosso ser.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Sozinhos, mas não abandonados!


As celebrações pascais são o centro da vida litúrgica cristã. Nelas, celebramos a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Através deste Mistério, presentificamos a salvação com a qual Deus agraciou toda a humanidade de uma vez por todas. Tal certeza nos permite viver a leveza e a responsabilidade daqueles e daquelas que se sabem livres em Jesus Cristo, pois, como diz o apóstolo, foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Para a nossa liberdade e para libertar os que vivem o peso da escravidão, seja ela qual for.
No último domingo celebramos a Festa da Ascensão. No próximo, será a de Pentecostes. Cada uma tem sua importância, é verdade, mas elas são intrinsecamente ligadas uma à outra e me suscitam uma breve meditação que quero partilhar com vocês, pois me parece muito consoladora.
Comecemos pela Festa da Ascensão. Em uma aproximação não atenta, ela pode parecer estranha dentro da lógica litúrgica. Afinal, no início de toda Celebração Eucarística, se estabelece o diálogo entre o Presidente e a Assembleia. O Presidente diz à Assembleia: “O Senhor esteja convosco!” A Assembleia responde: “Ele está no meio de nós”. Como dizemos que “Ele está no meio de nós” e, ao mesmo tempo, festejamos que Ele subiu aos céus? A resposta não é tão complicada se nos reportamos ao imaginário da época em que os Evangelhos foram escritos. Naquele tempo, afirmar que Jesus “foi levado para o céu” e acrescentar, como o faz o Evangelho, que “Ele agora está sentado à direita de Deus Pai”, significava afirmar a vitória de Deus sobre a morte e o reconhecimento da condição divina daquele que fora crucificado pelos romanos. Tanto no imaginário judaico como no helenístico, o céu é o lugar dos deuses e quem para lá é levado tem em si a condição divina. Ou seja, é uma outra linguagem para afirmar a ressurreição de Jesus e, nele, a vitória definitiva da vida sobre a morte.
Mas deixando de lado esta abordagem estritamente teológica, quero ater-me a outra mais vivencial e que nasce da minha imaginação. Tomando em sentido literal a figura da subida aos céus de Jesus, podemos interpretá-la como um afastamento daquele que, durante os três anos de caminhada com os discípulos e discípulas, fora o protagonista do grupo de homens e mulheres da Galileia que, na ânsia da chegada do Reino de Deus, tomaram o caminho de Jerusalém. Em todos os momentos do percurso, Jesus caminhara à cabeça do grupo, ensinando e mostrando como era o Reino que Ele estava inaugurando. Os discípulos seguiam Jesus e espelhavam-se nEle para aprender o novo jeito de viver e como anunciá-lo a todas as gentes.
Agora, nas Ascenção, Jesus sai de cena. Ele se afasta porque quer que os discípulos assumam o protagonismo da missão. É como o pai ou a mãe que, durante os primeiros meses, vão tomando o filho pelas mãos e ajudando-o a que se ponha de pé, ensaie os primeiros passos. O objetivo é que o filho aprenda a caminhar sozinho e não mais precise de ajuda de seus genitores. Durante o aprendizado, auando o filho cai, o pai ou a mãe o tomam pela mão, levantam-no outra vez, estimulam-no, vão na frente e pouco a pouco soltam a mão até que o filho caminhe sozinho.
Agora Jesus se foi. Ele não está mais aí para guiar os discípulos e discípulas. Mas como o pai e a mãe que, mesmo quando o filho começa a caminhar sozinho, sempre estão presentes para apoiá-lo e orientá-lo a fim de que faça o seu caminho, Jesus não deixa os seus discípulos abandonados a sua própria sorte. No mesmo momento em que se afasta deles, Ele lhes promete o envio de Seu Espírito a fim de que ele caminhem sozinhos, sim, mas permaneçam sob Sua orientação e direção.
Na Ascenção Deus nos diz: vocês são adultos na fé. Receberam, pelo batismo, a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e agora cabe-lhes fazer o caminho com suas próprias pernas. Mas Deus não nos deixa sozinhos. Pelo contrário, estamos bem acompanhados pela força do Espírito que nunca nos abandona e sempre nos incentiva a pró-seguir o caminho iniciado por Jesus. Se o Filho conduziu os discípulos da Galileia até Jerusalém, o Espírito conduzirá os agora apóstolos de Jerusalém até os confins de toda a terra.
E, se da beira do mar de Tiberíades até Jerusalém os discípulos aprenderam a fazer o que Jesus fazia, agora, de Jerusalém em diante, eles terão que inovar e fazer coisas novas que o Espírito lhes suscitará. A tradição do Filho lembra o passado. A novidade do Espírito inspira o futuro. Sabemos de onde viemos, mas para onde vamos, só o Espírito sabe. O consolo é que, mesmo estando sozinhos, não estamos abandonados!

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Padres casados. Por que não?


Um dado quase que praticamente desconhecido, inclusive entre os católicos, é que um em cada cinco sacerdotes da Igreja Católica Romana é casado! É isso mesmo. No mundo inteiro, hoje, há aproximadamente 500.000 homens ordenados ao ministério presbiteral na Igreja Católica Romana. Destes, aproximadamente 100.000 são casados. Em outros termos, 20%! Uma alta proporção que se mantém mais ou menos constante nas diversas áreas geográficas em que a Igreja Católica Romana está presente.
O único detalhe é que, na quase totalidade dos casos, esses padres estão “dispensados” da obrigação de prestar serviço às comunidades para as quais foram ordenados. Confuso? Não, se considerarmos a teologia da Igreja Católica Romana em relação ao ministério ordenado. Na compreensão católico-romana, a ordenação é um sacramento que confere um caráter indelével ao que o recebe. Em outras palavras, mesmo que alguém deixe de exercer o serviço à comunidade, ele não deixa de ser padre. Desse modo, não existem “ex-padres”. Existem apenas padres que não mais realizam aquelas atividades inerentes ao ministério ordenado como, por exemplo, administrar os sacramentos de forma ordinária.
Mas, perguntar-se-á alguém, por que tantos padres que um dia juraram ajoelhados em frente do bispo dedicar toda a sua vida à Igreja, deixam esse ministério e, na maioria dos casos, fazem-no para viver um relacionamento amoroso que se encaminha, muitas vezes, para o casamento?
Ensaio uma resposta que pode parecer simplória. Isso acontece porque ninguém é obrigado a ser padre! Na Igreja Católica, o ministério sacerdotal é assumido de livre e espontânea vontade pela pessoa. Geralmente os que o assumem são jovens que, no idealismo típico da idade, sentindo-se chamados por Deus, decidem dedicar-se integralmente ao serviço da Igreja. Para tornar isso possível, obedecendo a uma orientação do Segundo Concílio de Latrão (1139) e referendada pelo Concílio de Trento (1545-1563), o candidato renuncia a um relacionamento afetivo e esponsal com uma mulher e à constituição de uma família.
Com o passar dos anos, estes jovens que a cada ano vão tornando-se cada vez menos jovens e menos idealistas, começam a vergar sob o peso e as exigências do ministério ordenado. Exigências não só de ordem laboral, mas especialmente de ordem afetiva. A solidão não é fácil! Estar todos os dias atendendo, da manhã à noite, uma infinidade de pessoas que procuram o padre geralmente em situações de conflito e stress emocional e exigem uma atenção que o padre nem sempre tem condições de dar. Problemas econômicos de paróquias que não conseguem sustentar um padre. Conflitos com o bispo que nem sempre entende a situação do padre e exige dele mais do que pode dar. Falta de entendimento com os colegas padres que vivem a mesma situação, mas fazem de conta que o problema do colega não é o mesmo que ele está vivendo... E outros tantos problemas que levam o padre a perguntar-se se aquela opção juvenil era mesmo o melhor caminho para a sua vida.
Os números que acima referimos mostram que uma quantidade significativa decide, em situações como esta, dar novos rumos à sua vida. Renunciam ao exercício do ministério presbiteral e retomam sua vida buscando uma nova atividade profissional e construindo um relacionamento que já vinha se gestando durante o exercício do ministério ou que nasce das novas circunstâncias.
Quem tem ocasião de conviver com padres que deixaram o ministério – eu o faço quotidianamente e certamente muitos dos que estão a ler este texto agora o fazem – conhecem casos de padres casados que gostariam imensamente de continuar a entregar parte de sua vida no serviço da comunidade cristã. Em outras palavras, sentem-se chamados por Deus ao ministério ordenado, mas não conseguem vivê-lo conforme a lei da Igreja que condiciona o exercício do ministério presbiteral ao celibato.
E essa realidade é ainda mais dolorosa quando sabemos que tantas comunidades católicas, por falta de ministros ordenados, vivem sem ter acesso ao sacramentos a que tem direito, especialmente à Eucaristia dominical. No Brasil, estima-se que 70% das comunidades católicas não tem a missa dominical como deveriam tê-la.
Que fazer nesses casos? A norma geral até hoje, por parte das autoridades eclesiásticas, é manter-se insensível a essa situação. Tanto a dos padres que, tendo casado, gostariam de continuar a servir à comunidade como a situação das comunidades que gostariam de ter um padre para celebrar os sacramentos e de bom grado aceitariam um padre casado.
Minha humilde sugestão é simples. Para estas situações especiais, a Igreja deveria abrir exceções. Para tal, bastaria seguir a prática instaurada pelo Papa São João Paulo II. Em 2009, para acolher um grupo de padres católicos anglicanos que desejava integrar-se à Igreja Católica Romana, São João Paulo II permitiu que eles passassem a exercer seu ministério presbiteral na Igreja Católica e continuassem convivendo com suas esposas e seus filhos. Um não cumprimento da lei que se justificava pela circunstância especial que se colocava.
Por que, então, não usar o mesmo princípio para a realidade de comunidades que não tem – e provavelmente nunca terão – ministros ordenados e desejam ter alguém para administrar os sacramentos, mesmo que esse alguém seja um padre que viva com sua esposa e filhos? E ainda com a vantagem de que esse padre não vem de outra Igreja, mas foi criado, educado e ordenado na própria Igreja Católica?
Nesse caso, creio eu na minha humilde opinião, deveria valer o princípio ensinado por um antigo Mestre que um dia começou um movimento do qual mais tarde viria a nascer o cristianismo e a Igreja Católica, de que “a lei foi feita para o homem e não o homem para a lei”.