segunda-feira, 30 de julho de 2018

RECUERDOS DE UMA EX-REVOLUÇÃO

Na medida em que os anos que contamos em cada aniversário vão aumentando em número, a vida vai nos cumulando com lastros de memórias que são despertadas por fatos do presente e nos provocam a pensar em nossos futuros. Nos últimos três meses, são os eventos na Nicarágua que vieram provocar alvoroços nos meus recuerdos dos anos 1990 quando tive a graça de viver naquele então e atualmente convulsionado e belo país.

Em março de 1991, em um seco verão com calor de quarenta graus, juntamente com o já falecido Frei Vitor Poloni, chegava eu na cidade de El Rama, no Caribe Nicaraguense, para ajudar os frades norte-americanos e nicaraguenses no cuidado pastoral do então Vicariato Apostólico de Bluefields. Eram tempos pós-revolucionários. Em 1990, a Frente Sandinista de Libertação Nacional que governava o país desde a revolução de 1979, foi derrotada nas eleições presidenciais e, num gesto democrático, abandonou o poder e passou para a oposição.

No segundo semestre de 1991, o FSLN realizou seu primeiro congresso nacional. Cada região elegeu seus delegados. Tratava-se de reorganizar o partido na oposição e preparar-se para os embates não mais com as armas, como no tempo do combate à ditadura de Somoza ou da resistência à agressão imperialista norte-americana, mas no campo da disputa política e eleitoral. Boa parte dos sandinistas desejava a renovação do partido e a eleição de uma nova direção nacional. Outros, aglutinados ao redor de Daniel Ortega e seu irmão Humberto, comandante do Exército, desejavam a manutenção da antiga direção sob o comando de Daniel. Os delegados ao congresso da Quinta Região onde se situava a cidade de Rama eram em sua grande maioria pela renovação. No dia em que se deslocavam para Manágua, homens armados, a mando de Daniel e Humberto, impediram que chegassem à capital e participassem do Congresso.

Em outras regiões aconteceu o mesmo com outros delegados que também desejavam a renovação do FSLN. Resultado: Daniel continuou no comando e os que com ele tinham a coragem de dissentir publicamente foram pouco a pouco sendo excluídos dos espaços de decisão do partido e, finalmente, em 1995, fundaram o Movimento de Renovação Sandinista. Entre eles estavam comandantes históricos como Dora Maria Tellez, Monica Baltodono, Henry Ruiz, Hugo Torres, Victor Hugo Tinoco, Herty Lewites, o popular cantautor Carlos Mejia Godoy e o ex-presidente Sergio Ramirez. Mais tarde a eles se juntaram, entre tantos outros, figuras como o monge e poeta Ernesto Cardenal, o jesuíta Fernando Cardenal que coordenara a épica Cruzada de Alfabetização e a escritora Gioconda Belli. Quando Ernesto Cardenal oficializou seu desligamento do FSLN, Daniel apenas afirmou: “Ninguém pediu para ele entrar, ninguém vai pedir para ele ficar. Se quiser sair, que saia.”

Para mim, estrangeiro que sempre simpatizara com a Revolução Popular Sandinista, estava naquela frase selada a morte do antigo caráter revolucionário do FSLN. Daniel Ortega deixava de ser um líder revolucionário popular e se tornava incurável de uma das mais nefastas tradições da esquerda latino-americana: o autoritarismo.

Nas eleições de 2006, Herty Lewites, que administrara com lisura e efetividade a cidade de Manágua, candidatou-se a presidente pelo MRS. Misteriosamente, às vésperas da eleição, quando era franco favorito para vencer, enfermou-se e faleceu. No vácuo deixado pela morte de Lewites, Daniel, utilizando o capital simbólico da bandeira rojinegra, elegeu-se presidente do país. Para manter-se no poder, tomou duas medidas: colocou um parente informal do Cardenal Obando y Bravo, seu conterrâneo e antigo opositor, na presidência do Conselho Superior Eleitoral e este, em troca, colocou na clandestinidade o Movimento de Renovação Sandinista.

Neste segundo período do poder a estrela do novo governo do FSLN passou a ser Rosário Murillo, esposa de Daniel Ortega. Ela tornou-se a figura central da simbólica sandinista e a grande articuladora política. Abandonando as tradicionais demandas revolucionários por democracia, o novo governo de Daniel aproximou-se cada vez mais das figuras da direita nicaraguense e dos fundamentalistas católicos representados por Obando y Bravo. Para agradá-los, derrogou todos os avanços no campo da educação e da saúde.

Em compensação, Daniel impulsionou programas de assistência social que tiraram da miséria parte significativa da sociedade nicaraguense, principalmente no campo. Para financiar tais projetos, contou com generosa ajuda da Venezuela e da China que projetava construir no país um novo canal interoceânico. Em 2016, Daniel reelegeu-se Presidente com 70% dos votos válidos. A oposição, incapaz de articular-se politicamente e apresentar um projeto democraticamente viável, passou, com o nada secreto apoio da embaixada dos Estados Unidos, a buscar outros meios para tirar Daniel do poder. A ocasião surgiu há três meses quando o governo nicaraguense, sob orientação do Fundo Monetário Internacional, anunciou o aumento das alíquotas patronais e dos trabalhadores para a Previdência Social e uma simultânea diminuição do valor das aposentadorias. A ocasião estava formada para que toda forma de insatisfação contra Daniel explodisse nas ruas e chegasse aos mais de 300 mortos que até hoje tivemos.

Alguns bispos da Igreja Católica que tradicionalmente se opunham a qualquer coisa que levasse o nome de sandinista, agora livres do lastro do Cardeal Obando y Bravo que faleceu em 3 de junho e teve seus funerais ignorados até por seus colegas, passaram da função de mediadores para a de parte no conflito exigindo a renúncia de Daniel e a convocação de novas eleições. Mas Daniel tem a seu lado a sutil estrategista Rosário Murillo – que de louca, como dizem alguns, não tem nada – e tem a força do Exército e da Polícia. E, diga-se de passagem, tem a seu favor o apoio da maioria pobre da população que, nos 13 últimas anos de seu governo, viu as condições de vida melhorar significativamente.

O xadrez é complicado. A dinâmica política da Nicarágua não é para principiantes e para comentaristas da Band News que afirmam que Daniel está dando um “golpe de esquerda”. Não há saída fácil e talvez ainda muito sangue seja derramado porque a maioria das partes, desde Daniel até seus opositores eclesiásticos, não trabalham com a possibilidade de uma transição democrática. O objetivo de cada parte é destruir – política, simbólica e até mesmo fisicamente – a outra parte. Para Daniel e o grupo político e econômico que gira a seu redor, o risco é de perder o poder e parar na cadeia, coisa que não lhe aconteceu nem no tempo de guerrilheiro. Para a Igreja Católica, o dano já provocado é de ser utilizada para um interesse político contrário à vontade da maioria dos pobres do país. Quando a crise passar, será uma Igreja ainda mais enfraquecida numérica e moralmente.

Qual o futuro de Nicarágua? Difícil de imaginar... Desde a distância no tempo e no espaço que Nicarágua significou na minha vida, só posso desejar que o realismo fantástico de Gioconda Belli no provocador “Waslala” não se torne uma profecia realizada: Nicarágua não pode voltar a ser o depósito de lixo do Império Americano. Que Dirianguén e Sandino, desde as montanhas do norte, intercedam pelo país de lagos e vulcões e seu povo valente e sempre disposto a lutar por liberdade!

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Sobre pneus queimados, plásticos e telhados.

O domingo amanheceu tenso em Abacou. A falta de notícias fiáveis sobre o que estava acontecendo no país fazia com que os boatos corressem soltos e construíssem uma realidade ao gosto das afinidades políticas de cada grupo. A incipiente democracia, a tradição autoritária e as fake news potencializadas pela omnipresença da telefonia digital, fazia com que as mais absurdas e contraditórias informações fossem tomadas como verdade factual. Havia os que diziam que tudo estava normal e os que afirmavam que o Presidente já havia encaminhado sua renúncia. As barricadas nas estradas, os pneus queimados, as pedras nas mãos, os olhares tensos e as conversas acirradas do dia e da noite anterior me faziam crer que todas as informações poderiam ser simultaneamente verossímeis.

Para mim, havia uma situação pessoal: como voltar a Porto Príncipe e tentar, terça-feira, partir para o Brasil? Problema minúsculo diante da caótica situação do país. Mas problema real a ser resolvido. Primeira alternativa: ir a Les Cayes ver se os ônibus estavam funcionando. Fomos. Negativo. Nenhum transporte público. Segunda alternativa: ir até a cidade de Aquin onde moram Inês e Eugênia, brasileiras, Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora. Frei Sérgio falara com elas. Aí estava hospedado Pe. Rogério, jesuíta brasileiro, com seus cinco noviços. Partimos. Entre pedras na estrada e pneus ainda queimando chegamos a Aquin. Nenhum manifestação na rua. Até aqui tudo tranquilo. As irmãs Franciscanas de Nossa Senhora mantém na cidadezinha encravada na encosta de uma montanha um serviço básico de saúde para a população. Com as duas brasileiras, está uma irmã malgaxe. É a solidariedade sul-sul.

Depois do almoço e das informações que continuam desencontradas, a decisão é ir adiante até onde for possível. Se não der para avançar muito, voltamos. Se for possível ir um pouco mais, mas não se puder entrar em Porto Príncipe, em Léogane há hospedagem com as Irmãs de Cristo Rei. Foi o que aconteceu. Na medida em que nos aproximávamos de Porto Príncipe as manifestações aumentavam e em Léogane foi impossível avançar. As irmãs nos acolheram e aí passamos a noite esperando o que aconteceria no dia seguinte.

Perto do meio dia os jovens noviços jesuítas, em contato com seus amigos de Porto Príncipe, afirmam que é possível chegar à cidade. Almoçamos e partimos com a possibilidade de ter que voltar... À medida que avançávamos em direção à capital, os sinais das manifestações dos dias anteriores se faziam mais fortes. Galhos, troncos, pedras, lixo, pneus queimados, carros velhos... tudo tinha sido usado par obstruir os caminhos. Em Porto Príncipe ainda havia grupos nos entroncamentos e esquinas sinalizando que nem tudo estava terminado no protesto. Do habitual trânsito caótico, nada. Poucas pessoas nas ruas. Muito medo no ar. A qualquer momento paus e pedras poderiam surgir no caminho. Polícia? Formalmente existe, mas está há dois anos sem receber salários... O que se poderia esperar dela? Nenhum sinal de sua presença nas ruas. Seguimos espreitando em cada esquina e, depois de contornar várias ruas obstruídas, finalmente Pe. Rogério e seus noviços me deixaram em casa.

Resultado final das manifestações? Alguns mortos – não se sabe exatamente quantos -, feridos, saques em lojas, bancos, nas companhias telefônicas e de internet, o país inteiro dois dias parado e muito trabalho para desobstruir ruas e estradas. Mas quem vai fazê-lo, já que não há funcionalismo público? Os que acreditam no “estado mínimo” tem que reconhecer que este também tem seus problemas... De prático, o resultado mesmo foi que o governo voltou atrás e revogou o aumento dos combustíveis. Mas os postos estão todos fechados e a oposição pede a renúncia do Presidente. Este oferece a cabeça do Primeiro Ministro. O jogo político continua!

Depois de um banho, duas mangas e vários copos de água, parto com frei Aldir para ver o local onde será instalada a futura fábrica de reciclagem de plásticos. É um projeto espetacular sob todos os pontos de vista. Matéria prima há em abundância em Porto Príncipe. Montanhas e rios de plástico por todos os lados. Sim, rios... As valas por onde correm as águas na temporada de chuva, quando estão secas, são preenchidas com quantidades enormes de plástico que, com o correr das primeiras chuvas, formam rios em direção ao mar. Às vezes ocorre de algum desavisado tocar fogo nesta corrente de plástico e temos um rio de fogo! São os restos do capitalismo predatório que se manifestam na ponta mais frágil do sistema.

Além de recolher o plástico e evitar que chegue ao mar, o projeto tem ainda a vantagem de gerar uma fonte de renda para a população mais pobre que recolherá a matéria prima e a venderá para a fábrica onde haverá um grupo de trabalhadores assalariados. Tudo será pago com a venda das telhas e blocos de plástico usados na construção de casas. Além de ecológico e barato, o material tem uma durabilidade superior ao zinco e aos blocos de cimento hoje usados e também é menos danoso em caso de terremoto ou furacão, duas coisas frequentes por aqui.

O sonho é grande. Financiamento, felizmente, há. Um jovem frade haitiano foi ao Brasil para fazer um estágio na empresa onde o maquinário é fabricado. Outros dois frades haitianos estão se preparando para administrar o projeto. Só falta a esperada assinatura do Presidente e do Tesoureiro da Conferência Episcopal Haitiana para o contrato de aluguel do terreno. Há quase um ano frei Aldir vem tentando conseguir esta assinatura e nada... Mas ele tem paciência e perseverança. Se todas as peças se encaixarem, em pouco tempo mais um sinal de vida e esperança será posto pelos missionários brasileiros no Haiti. Do que hoje é tratado lixo, poderá surgir muita vida nova. Há esperança!

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Pétalas de solidariedade

Seis horas da manhã. A brisa suave que vem do mar quase já não tem mais o cheiro ácido da varrèche. A claridade começa a se espalhar por sobre as águas calmas em frente ao vilarejo de Abacou. Vozes de homens, mulheres e crianças avisam que o dia já começou.

Um bom banho prá tirar o calor da noite do corpo e um café prá acordar de vez marcam o início do dia. Com Frei Ademar e Frei Sérgio tomamos o mate na varanda e as conversas se alongam até oito horas. Frei Sérgio está aqui em Abacou há quase oito anos. Além do cuidado na construção da casa dos frades, do Dispensário e da Igreja Paroquial, sua dedicação principal foi com a educação. Além do colégio que atende atualmente 400 crianças, a escola de informática Frère Soleil é a grande inovação para as crianças e jovens que terão que enfrentar o mundo digital. E manter uma escola de informática em lugar tão isolado não é desafio pequeno. Para a energia, os painéis solares foram a solução. Os computadores foram doados por várias instituições internacionais. Quanto ao sinal de internet, esse não foi o problema. A telefonia digital é uma das poucas coisas que funcionam no país. O desafio maior foi superar a pedagogia da palmatória ainda vigente na cultura local. Hoje, tanto a escola de informática como o colégio são dirigidos por um frade haitiano, frei Abel. As palmatórias, por um tempo aposentadas, voltaram a funcionar...

Depois do café, uma visita à comunidade das Irmãs de Santa Catarina, há uns cinquenta metros da casa dos freis. Irmã Rute e Irmã Nazaré nos acolhem com alegria e carinho. Irmã Liane que aqui também vive, está no Brasil cuidando da saúde. A atividade principal das irmãs aqui é o Dispensário. Trata-se, na prática, de algo similar a uma unidade de saúde que faz a atenção básica. Irmã Rute é enfermeira e faz tudo o que em outros lugares muitos médicos não sabem ou não querem fazer. Desde o atendimento de partos inacabados até suturas de ferimentos de machado ou facão, dois acidentes de trabalho muito frequentes. Solène, a enfermeira francesa, ajuda na parte da farmácia. As condições são precárias, mas a ajuda dada à população é impar.

Às dez horas, com o calor já batendo nos quarenta graus, partimos para Belab. Aí está a construção da casa que servirá para a formação dos novos frades haitianos. Frei Ademar aqui é o “boss”. Ele supervisiona o trabalho das diferentes equipes que já colocaram os fundamentos e as vigas e se preparam agora para começar a fazer a construção sair do chão. Além de supervisionar este trabalho, Frei Ademar também cuida da construção da futura casa das Irmãs de Santa Catarina aqui em Belab. Por enquanto, numa casa alugada, estão irmã Claudete e duas postulantes haitianas.

Depois do almoço partimos para o lado norte da península. Vamos a Corail. Irmã Claudete vai conosco. Lá vivem as irmãs Sueli e Deusa, duas Irmãs de Santa Catarina. Lá também vive um capuchinho francês, frei Jean Pierre. Ele trabalhou toda sua vida de frade na República Centro Africana. Ao voltar à França, não pôde se adaptar ao estilo de vida europeu e optou por integrar-se à missão no Haiti. Irmão leigo, ele é um faz-tudo, desde a mecânica de motores até o telhado da casa. Desde que um furacão, há dois anos, destruiu esta região do país, ele, com toda calma e tenacidade, entre um cigarro e outro, ocupa seu tempo a reconstruir a infraestrutura da missão.

As irmãs, Sueli e Deusa, mantém um Dispensário no centro da cidade. Com esta atividade, elas complementam o trabalho que os médicos cubanos fazem no hospital público. Irmã Deusa tem formação em Enfermagem. Irmã Sueli foi minha aluna de Teologia e aprendeu na prática como cuidar da saúde das pessoas que chegam ao dispensário precisando de remédios e, sobretudo, de compreensão e carinho.

A viagem de Les Cayes a Corail nos poupou o trabalho de assistir a derrota da Seleção Verde-amarela para a seleção da Bélgica. Enquanto Neymar caía e levantava no terreno russo, nós subíamos e descíamos as montanhas pedregosas que deram a este país o nome de Haiti. Na língua dos povos nativos que aqui habitavam e foram exterminados pelos espanhóis e franceses, “Haiti” quer dizer “país das altas montanhas”. A estrada é a única a fazer a ligação entre o leste e o oeste do país, da capital Porto Príncipe a Jéremie, a segunda cidade do país. Sua reconstrução foi iniciada por uma empreiteira brasileira logo após o terremoto de 2010. Com a destruição das empreiteiras brasileiras pela Lava Jata, os trabalhos foram assumidos por uma empresa dominicana. A falta de recursos e as dificuldades da geografia fazem com que o avanço seja muito lento.

Os últimos dezesseis quilômetros, depois do entroncamento que dá a Jéremie ou a Corail, estão ainda em estado muito precário. Mas já estiveram bem piores, nota irmã Claudete que aqui viveu seus dois primeiros anos no país. Para percorrê-los, foi necessário quase uma hora. Em fim, ao chegar, depois de um total de quatro horas de caminho, deparamos com as coloridas águas do Caribe e o salpicado de pequenas ilhas que pontilham a pequena baía em que está localizada a cidade. Corail remonta à primeira ocupação francesa da região. A paróquia local tem mais de duzentos anos. Espremida entre a borda do mar e a íngreme montanha, a população vive amontoada nas poucas quadras que se formam entre as duas ruas que se alongam no sentido leste-oeste. A densidade populacional em tão pequeno espaço, a ausência de saneamento e a escassez de água doce faz com que as doenças ligadas às difíceis condições de higiene sejam uma constante no local. Muito trabalho para as irmãs e para os médicos cubanos.

O fim de tarde e a noite foram de muita conversa franco-brasileira. Depois de uma boa noite de sono, levantei às quatro e meia da manhã para do alto, onde está localizada a casa das irmãs e do frei, contemplar o avanço da luz e das cores sobre a cidade, as águas e a ilhas. Uma verdadeira ode ao Criador de todas as coisas.

Depois do café e de outra sessão de conversa acompanhada de um bom chimarrão, hora de fazer o caminho de volta, subir a íngreme encosta, passar por entre as montanhas e descer do outro lado. Quando nos aproximamos de Camp-Perrin, já quase na planície, a notícia: a estrada a Les Cayes está trancada! O governo, sob pressão do Fundo Monetário Internacional, deixou de subsidiar o preço dos combustíveis. O tarifaço resultante levou ao bloqueio de todas as rodovias do país e ao caos na capital. Depois de quatro horas de espera e mais duas tensas horas por estradas vicinais em condições peníveis, o valoroso Toyota com tração nas quatro rodas e o fluente créole de Frei Sérgio lograram conduzir-nos até Béraud onde deixamos irmã Claudete e retornamos a Abacou. As peripécias do dia impediram que pudéssemos visitar  comunidade das Irmãs do Imaculado Coração de Jesus em Béraud. Fica para a próxima... Às dez e meia da noite, depois de um breve lanche, um banho e a cama para descansar da longa jornada.

Enquanto o sono avançava sobre os membros aturdidos do corpo, o cérebro buscava processar as muitas imagens e as muitas conversas destes dois dias de convivência com religiosos e religiosas brasileiras que, nas difíceis condições da realidade haitiana, tentam ser um sinal de fé e esperança. São pequenos sinais, mas são pétalas de solidariedade que colorem e perfumam a esperança de uma vida melhor para o povo haitiano e esperança de que o Reino de Deus que tanto esperamos se torne realidade viva e palpável no meio de nós.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Vers le Grand Sud


São duas da tarde. Um calor tremendo. Quase quarenta graus. Ar seco e um vento quente que faz balançar os galhos das árvores ao redor da casa. Depois de cinco dias de retiro com os freis capuchinhos da Delegação do Haiti, nos preparamos para descer o morro e tomar o caminho do Sul em direção a Les Cayes e de lá a Abacou onde residem Frei Sérgio e Frei Ademar. Digo “descer” porque a Casa de Retiros das Irmãs da Caridade de São Luiz onde estivemos nesses dias está na parte alta da cidade de Porto Príncipe.

Como todas as cidades, a capital do Haiti também tem suas particularidades geográficas. Uma das que mais chamam a atenção é a sua organização, digamos, vertical. A Pérola do Caribe, como foi e ainda é chamada, está situada na Golfo de Gonâves, no Caribe Ocidental. A parte rente ao mar é plana e, por isso, conhecida como “La Plaine”. É uma área residencial, a maior da capital talvez, que se prolonga ao longo da costa até as primeiras elevações. Além do porto e dos mercados ao seu redor, há bairros que vão desde a miserável Cité Soleil até áreas de classe média baixa com seus pequenos comércios, escolas, igrejas e produção artesanal em torno à construção civil: blocos de cimento, esquadrias, portas, janelas, portões... Quase tudo é feito à beira das ruas, sob toldos abertos cobertos de zinco.

Depois da “La Plaine”, nas primeiras elevações do terreno, está o Centro Histórico da Capital com as principais edificações públicas e a sede de bancos, empresas internacionais e lojas de marcas tradicionais que podem ser encontradas em qualquer grande cidade do mundo. Chama a atenção a iluminação pública que tem sua energia gerada por um sistema fotovoltaico. Não se passa despercebido também pela antiga sede do governo haitiano imitando o Capitólio de Washington. O terremoto de 2010 deixou-a em ruínas e até hoje, por decisão governamental, nada foi feito para reconstruí-la. Há outras urgências a sanar. Do mesmo modo a antiga catedral em estilo barroco. Aí está ostentando suas ruínas a espera de tempos melhores para ser reerguida. Sábia decisão, por alguns criticada, mas firmemente mantida, não se sabe se por falta de dinheiro ou por opção pastoral, pelo novo Arcebispo de Porto Príncipe.

Passando o “Centre Ville” sobe-se por estreitas avenidas buscando os pequenos platôs na encosta da montanha que do alto guarda, qual fortaleza, a Pérola do Caribe. Depois de 20 ou 30 minutos de íngreme subida chega-se a Pétionville. Essa região da capital é constituída por uma série de pequenos espaços planos separados uns dos outros por ravinas que o tempo, as chuvas e os terremotos foram rasgando e que, de tempos em tempos, se ampliam e fecham ao sabor dos aleatórios fenômenos cósmicos e telúricos e da pressão demográfica sobre a já superpovoada encosta da montanha. Estes pequenos platôs da cidade são ocupados pela população mais rica da cidade. Aí estão os colégios particulares, restaurantes, shoppings, clubes, hotéis... tudo o que essa pequena parcela da população pode pagar. Entre um platô e outro, tanto acima como abaixo, milhares e milhares de casas que se mantem suspensas sobre os abismos por forças que talvez nem a física possa explicar.

Desde a Casa de Retiros onde nos encontramos pode-se avistar, durante o dia, todas estas diferentes camadas verticais da cidade. De noite, apenas avistam-se algumas luzes dos platôs de Pétionville. As ravinas e encostas com suas milhares de casas feitas com blocos de cimento, ficam quase que completamente às escuras. Nessa região da cidade, não há luz nem água. A partir do entardecer, aqui e ali, algumas fogueiras mancham de vermelho a escuridão que cai lentamente sobre a capital. Pouco a pouco elas se se apagam e o breu toma conta de toda a encosta da montanha, salvo o seu alto. Lá em cima, acima de tudo, no alto da montanha, as luzes das mansões dos mais ricos entre os ricos parecem assinalar que, acima da cidade de Porto Príncipe, há o céu dos príncipes que, de vez em quando, para se livrar do caos do trânsito provocado pela falta de energia que torna inúteis as sinaleiras colocadas em cada entroncamento, dão-se ao luxo de subir até suas mansões em helicópteros alugados por empresas estrangeiras. São as várias camadas da cidade, qual torta recheada, a demonstrar, quase que geograficamente, a estrutura dessa sociedade que leva à exacerbação a iniquidade tão característica das sociedades latino-americanas.

Como dizia no início, é hora de partir. Frei Sérgio vai ao volante da camionete. Frei Ademar e Frei Fanfan, um jovem frade haitiano recém-regressado do Brasil, seguem atrás. As tortuosas ruas vão deixando para trás Pétionville, seus platôs, suas ravinas e suas casas penduradas sobre o abismo. Depois de alguns engarrafamentos típicos da falta de regras no trânsito, nos dirigimos em direção à saída sul da cidade. Depois do Cafù a cidade começa a ralear. O ritmo do avanço da camionete é ditado pelas paradas das Tap-Tap, dos caminhões de carvão e dos pedestres que cruzam as ruas. Pouco a pouco o cinzento da cidade vai sendo substituído pelo verde das árvores sob as quais estão construídas as pequenas casas agora umas mais espaçadas das outras. À direita o Golfo de Gonâves. À esquerda as elevações da península sul que se estende até Géremie e de lá aponta para Jamaica e Cuba. Na planície à direita que se amplia à medida que avançamos, plantações de cana de açúcar. Fecho os olhos e retrocedo 400 anos no tempo e imagino os invasores franceses estabelecendo suas plantações de cana e seus engenhos para abastecer a Europa com o “ouro branco”.

Aqui no Haiti, em Guadalupe e Martinica foram os franceses. Logo ali adiante, na Jamaica, na Guiana, Belize e Nicarágua os ingleses. Em Arruba, Curaçao e Suriname, os holandeses. Todos eles buscando romper o monopólio da Espanha para a qual só restou Cuba e Puerto Rico. O Mar Caribe que luz azul à minha direita e suas férteis e quentes terras pelas quais andamos, durante três séculos, foi duramente disputado pelas emergentes potências europeias que alimentavam de doces as mesas da decadente nobreza e enchiam os cobres de ouro da emergente burguesia que com a força do trabalho dos milhões de homens e mulheres escravizados trazidos da África acumulava capital para a Revolução Comercial que depois se tornaria Industrial com o famoso triângulo Europa-África-América da primeira globalização capitalista. Em cada rosto de cada homem e de cada mulher que caminham ao longo da estrada que leva de Porto Príncipe a Les Cayes está impressa de forma indelével a história das “veias abertas da América Latina e Caribe” magistralmente descritas pelo inolvidável Galeano.

Depois de três horas de caminho a estrada volteia para a esquerda, cruza as colinas da península sul e se joga sobre a beira do Caribe. O azul das águas típico da região, em alguns pontos, está nesta estação do ano manchado de verde. São algas que, nos últimos anos, proliferam com abundância superior à tradicional. Talvez seja a poluição que altera a composição da água ou o aquecimento das águas do Caribe. Os cientistas e políticos só vão se preocupar com isso quando elas chegarem aos resorts e praias frequentadas pelos norteamericanos e europeus. Aqui as algas se acumulam na praia e apodrecem gerando um cheiro de vinagre e jogando sobre as casas um ar ácido que tudo corrói. É a varrèche que atormenta os habitantes das águas e das terras das ilhas do Caribe.

Mais uns quilômetros e estamos em Les Cayes, a cidade mais importante da região. Deixamos o asfalto e por um caminho de chão seguimos costeando o mar em direção a Saint Jean d’Abacou. Faltando pouco para as nove da noite chegamos na casa onde Solène nos espera com uma gostosa sopa. Solène é uma jovem enfermeira francesa. Ela deixou Paris para, junto com as Irmãs de Santa Catarina que aqui residem, cuidar da saúde dos moradores deste pequeno canto do mundo. Afinal, a solidariedade não tem ponte de partida e nem ponto de chegada. Ela é o carinho dos povos capaz de apagar um pouco da dor provocada por quinhentos anos de colonialismo e mostrar a verdadeira doçura presente em todo o coração humano.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Platão em Cité Soleil

Pela primeira vez na vida sou tentado a concordar com Platão. Aqui, neste lugar pelo menos, pode ser que Platão tenha razão. Esse não é o mundo real. Corrijo: este não pode ser o mundo real. E, no entanto, ele está aqui, bem na minha frente, bem ao meu redor.
São dez horas da manhã. O sol escaldante de quase quarenta graus transforma as úmidas ruas de Porto Príncipe em nuvens de pó que se levantam a cada Tap-Tap que passa repleta de homens e mulheres de todas as idades. O colorido berrante dos 4X4 adaptadas para o transporte público contrasta com o rosto sombrio da maioria de seus passageiros. Na longa e ampla avenida que separa a Zona Portuária do aglomerado de Cité Soleil, a cada cinquenta ou cem metros, um pequeno grupo de pessoas se aglomera em torno a um pastor que chama à conversão e à prosperidade em Jesus. Ao lado dos prédios das igrejas com as denominações as mais chamativas possível, pequenos quiosques que vendem loterias que prometem fazer milionários.
Vou numa camionete com Padre Renato para uma missa na comunidade da Missão Belém. Padre Renato é catarinense. Há quase dez anos deixou sua terra e sua diocese e veio se juntar à missão capuchinha no Haiti. Morou um tempo na região sul da ilha e agora está na capital. Fala perfeitamente o francês e o créole, a língua falada por toda a população. No fim da avenida dobramos à direita por uma estreita rua. À esquerda, uma grande planície de lama, lixo e plástico. Sobre os monturos que se formam pela força da água e do vento, porcos, vacas e crianças. Cada um buscando algo para sobreviver. Cortando a planície, uma grande vala que faz às vezes de rio. Quando chove na parte alta da cidade, a água desce transportando toneladas e toneladas de lixo orgânico e inorgânico de toda espécie. Tudo deságua na Bahia de Porto Príncipe.
Às vezes, no entanto, a combinação de assoreamento, vento e maré alta, faz com que o fluxo se inverta e um mar de lixo transborda sobre Cité Soleil. Ela está à minha direita. Um aglomerado sem fim de pequenas casas em quarteirões geometricamente dispostos. No interior dos quarteirões, pequenas ruelas permitem o acesso às casas que ocupam todos os espaços possíveis. Há casas de blocos de cimento, de lata, de telhas de zinco, de papelão e de tecido. Nas ruas, crianças, crianças e mais crianças... Junto delas, muitas mulheres. Homens, parecem aqui seres invisíveis.
Chegamos à Missão Belém. Ali nos esperam três irmãos e duas irmãs da comunidade de vida que iniciou em São Paulo acolhendo moradores de rua. Em 2010, após o terremoto que destruiu Porto Príncipe e deixou em torno de 300.000 mortos, um grupo desses irmãos e irmãs para aqui se deslocaram e iniciaram seus trabalhos. Além da escola para 1.400 crianças, garantem uma refeição diária – que para a maioria é a única – e assistência médica básica para as crianças e suas mães. Recursos para isso? O trabalho dos cinco voluntários que aqui estão e a colaboração de brasileiros e italianos que, movidos pela fé, tentam fazer algo em favor desta população.
A missa, animada ao som do atabaque, se prolonga por hora e meia. Padre Renato flui belamente em créole. Acompanho adivinhando através da sonoridade as aproximações com a língua francesa. Ao meu lado no banco, três meninos que dividem sua atenção entre as palavras do padre, o som do atabaque e a minha pele branca. No final, a convite do Coordenador da Missão, faço uma pequena saudação em meu esforçado francês.
Ao fim da missa, sem pressa, as mães partem acompanhadas por seus filhos. O galpão vai ficando vazio. Nos despedimos dos irmãos e irmãs da Missão Belém e retomamos o caminho de casa. À direita, a grande planície de lixo, lama e plástico. À esquerda, o mar de casas de Cité Soleil. Será esse o mundo real? Não sei. Tampouco vou perguntar a Platão. Ele nunca esteve aqui...
Mas o que, tenho certeza, é real, são os três meninos que estiveram a meu lado durante a missa, a centena de mulheres e crianças que rezaram e cantaram ao som dos tambores e a presença de Padre Renato e dos irmãos e irmãs da Missão Belém. Tudo isso é muito real num mundo que nos quer fazer crer no irreal.