segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Depois do Carnaval...



Carnaval é festa. É transgressão. É subversão da ordem. É tempo de alegria e de ilusão. É ser por alguns dias aquilo que não se é e, nessa doce sensação, extravasar os desejos reprimidos pelas convenções e normas sociais.

Por isso, o símbolo maior do carnaval é a fantasia. Ela mostra a cara daquilo que não somos mas gostaríamos de ser. As fantasias, por mais exóticas que pareçam, revelam as mazelas e os desejos populares. Como filosofava Joãozinho Trinta, numa sociedade de pobres, a fantasia mais desejada é a que ostenta riqueza. Na mesma direção, podemos dizer que, numa sociedade de corpos reprimidos, a nudez dissimulada é a vitória, mesmo que momentânea, da autenticidade de ser homem e mulher em todas as formas e gêneros. Numa sociedade de repressão, o palavrão, a bebedeira, a transgressão, permitem viver a liberdade negada no dia a dia.

Quando o carnaval, livre das amarras do poder, traduz com músicas, danças, cores e amores os anseios populares, ele deixa de ser fantasia e se transforma em utopia. Que o diga o samba enredo da Estação Primeira da Mangueira: “Favela, pega a visão, não tem futuro sem partilha, nem messias de arma na mão. Favela, pega a visão, eu faço fé na minha gente que é semente do seu chão”.

Mas o carnaval passou. É hora de voltar ao normal. Hora de voltar ao real. Volta que não implica no esquecimento das fantasias que impulsionaram o sonho. Pelo contrário, elas permanecem como critério para as duras escolhas do dia a dia. Afinal, para a fantasia se tornar realidade, é preciso escolher entre o sonho que alimenta a esperança e o fascínio do passado e do presente que nos dão segurança.

Para iniciar a longa marcha da transformação em direção à utopia, é preciso iniciar com uma opção: a quem vamos servir? Àqueles que sufocam nossos sonhos com o discurso do conformismo ou àquele que nos provoca à aventura dos caminhos nunca dantes percorridos?

É o momento da prova, o momento da tentação. Ele sempre marca o início de um novo projeto. Adão e Eva, no paraíso, foram colocados diante de uma escolha. Eles optaram pela satisfação imediata de um desejo que era real. Mas a satisfação no imediato ocultou o sonho do futuro. A fantasia do paraíso aqui e agora tornou-se sofrimento, dor e peso. Querer o céu na terra, aqui e agora, pode tornar-se o pior dos infernos.

Jesus, no início de sua missão, também passou pela tentação de abandonar o sonho do Reino em troca da acomodação aos poderes que tudo lhe ofereciam. Ele não sucumbiu. Preferiu sonhar com a fantasia divina onde a festa é para todos e não apenas para alguns. Na festa de Jesus, entram, cantam e dançam toda classe de pessoas. Pecadores, prostitutas, estrangeiros, judeus descumpridores da lei, doentes, mulheres, velhos, crianças... E aqueles e aquelas que, por medo ou pudor, não querem com eles e elas se misturar, ficarão fora da festa.

Jesus pagou caro por esse seu sonho. A quaresma termina com a cruz e a paixão. Mas ele não deixou de sonhar. Não esqueceu da alegria do encontro com Deus, sem leis e sem repressão. Por isso, o caminho da Quaresma, que segue ao Carnaval, não é apenas tempo de penitência. É tempo de continuar sonhando na ilusão de que a festa da inclusão seja plenificada pela festa da Ressurreição.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Você tem medo de quê?


Pesquisa realizada no segundo semestre de 2019 pelo Instituto Ipsos – um dos mais conceituados do mundo – revela que a violência, a saúde e o desemprego são as três maiores preocupações da população brasileira. Das três, a violência, com 47% de indicações, aparece em primeiro lugar.

Pesquisas, claro, medem sempre percepções. E, percepções, nem sempre refletem o mundo real. Por isso sempre é bom checar esses dados com outros e ver se eles têm uma justificativa plausível ou é fruto de sensações muitas vezes influenciadas pela mídia que busca audiência através da exploração da violência.

Quando fazemos isso, infelizmente, constatamos que a pesquisa tem base real. O Brasil é um dos países do mundo onde mais jovens são mortos de forma violenta. A cada quatro minutos, uma mulher sofre algum tipo de violência física no Brasil. Nos últimos 12 meses, 1,6 milhão de brasileiras foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento, enquanto 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio. A cada duas horas, um feminicídio é cometido. E, o que é pior, boa parte dessa violência contra as mulheres acontece dentro de suas próprias casas e é cometida por um familiar.

Somos campeões mundiais em violência contra pessoas LGBTs. A cada 24 horas, um homicídio é cometido tendo como única razão, a homofobia.

E, para piorar, temos a polícia mais violenta do mundo. E, violenta, de maneira especial, contra os pobres e negros. 73% das vítimas de violência policial são pretos ou pardos.

Poderíamos continuar com números sobre a violência que, desgraçadamente, abundam e dão sustentação aos dados da pesquisa. Mas, duas perguntas devem ser feitas e precisam de respostas. A primeira é sobre a origem da violência e, a segunda, é sobre como superá-la.

À primeira pergunta, todos os estudos indicam na mesma direção: a violência é fruto da desigualdade social. Quanto mais desigual uma sociedade, maior é a violência que nela campeia. Sendo o Brasil uma das sociedades mais desiguais do mundo, é consequência que seja uma das mais violentas. Reprimir a violência fruto da desigualdade só gera mais violência. É o que estamos constatando. Seria muito mais barato e eficaz reduzir a desigualdade social do que aumentar a força policial e o encarceramento da população. Mas isso requer uma mudança de mentalidade e a aceitação, por parte da minoria que tudo tem, de ceder um pouco para aqueles que nada ou quase nada tem.

E aí já há uma indicação para a segunda questão, a de como superar a violência. Para alcançar esse objetivo, é preciso uma mudança cultural. Ela inclui, por um lado, a superação da mentalidade patriarcal escravocrata, ainda profundamente arraigada na sociedade brasileira, de que a desigualdade é natural e de que alguns podem ter tudo enquanto outros não precisam ter nada. E, junto com isso, a mentalidade do dono de escravos e de seus feitores de que violência só se combate com mais violência.

É preciso superar a lei do “olho por olho e dente por dente” e caminhar na direção do indicado pelo Profeta da Paz de que o amor ao inimigo é o único caminho para a superação da violência. Quando amado, o inimigo deixa de ser visto como tal e passa a ser nosso próximo, aquele com quem compartilhamos o caminho, a cidade, a mesa e a comida. E aí toda violência acaba.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Aos inimigos, a lei.


Um dos mais importantes jornais de economia do Brasil publicou no final do passado mês de janeiro uma pesquisa chamada “A cara da democracia”. Realizada anualmente pelo “Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação”, o estudo tem como objetivo aferir a percepção da democracia pela sociedade brasileira.
Um dos resultados que mais chamou a atenção foi sobre o índice de confiança dos brasileiros e brasileiras para com o Poder Judiciário. Os números são assustadores: 38,2% disseram não confiar no Poder Judiciário. Outros 61% afirmam não acreditar na independência do Judiciário. Apenas 26% dos brasileiros acreditam que o Judiciário toma decisões sem ser influenciado por políticos, empresários ou outros interesses.
Comparada com a pesquisa de 2018, o resultado é ainda mais preocupante. A cada ano, o Poder Judiciário aparece como menos confiável.
Qual a causa de tamanha desconfiança da população brasileira para com esta instituição tão necessária para a vida em sociedade?
Suspeito que seja por uma simples razão já apontada há cinco séculos pelo filósofo italiano Nicolau Maquiavel. Dentre as suas famosas frases, uma das mais notáveis se refere à justiça. Segundo ele, no seu tempo, a justiça funcionava a partir do princípio de que “aos amigos, favores; aos inimigos, a lei”.
Parece que pouca coisa mudou de lá para cá. As pessoas que têm amigos na justiça ou tem dinheiro para contratar advogados com boas relações no sistema judiciário, nunca serão condenadas. Já os que não gozam destes privilégios, estes podem se preparar para a aplicação da lei que lhes cairá como um raio na cabeça. Infelizmente, a justiça é para poucos. É o que a maioria da população constata...
Que fazer diante disso? Entrar no jogo e também tentar burlar a lei, refugiar-se na ilegalidade, fugir do sistema judicial? É uma tentação nada desprezível e na qual muitos caem.
A única forma de resistir, é agarrando-se na convicção de que a lei é algo exterior, que vem de fora, e não pode alterar nossas convicções pessoais. Se o sistema judicial torna legal o ilegal e ilegal o justo, não por isso podemos nos sentir livres para praticar o que a consciência nos indica como errado.
A consciência é a norma última de todo comportamento e, para além da lei, está a grande razão que deu origem a todas as leis: a defesa da vida e da dignidade humana. Que a nossa fé no Deus da vida e na vida que tem sua origem em Deus, nos permita resistir nestes tempos de injustiça institucionalizada.
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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O sabor do sal


Os cinco sentidos são indispensáveis para nossa sobrevivência. Eles nos comunicam com o mundo ao nosso redor. Sem eles, nos isolamos e morremos. Ser privado de um deles resulta numa limitação que exige um redobrado esforço dos outros.
Dentre todos, talvez o paladar seja aquele a que damos menos atenção. Mas não por isso é menos importante. Ele nos permite realizar de forma eficaz uma das necessidades elementares do ser humano: comer!
Sem comer, morremos por inanição. Mas também não podemos comer qualquer coisa. Comer sem critério, também pode levar à morte. A função do paladar inclui selecionar aquilo que comemos. Fazemos isso através dos milhares de botões gustativos que recobrem nossa língua e permitem identificar e classificar os alimentos.
Mas, além do gosto, existe também o sabor. O gosto é a reação química do corpo diante do que é colocado na boca. O salgado é um dos cinco gostos básicos que nossas papilas gustativas conseguem identificar. Sabor, é a combinação do gosto com outros sentidos e com toda uma aprendizagem do que é agradável e desagradável.
Em nossa cultura, o sal joga um papel fundamental na composição dos alimentos. Mas ninguém come sal. Se comemos sal puro, sentimos um enorme desprazer. Mas, comida sem sal não tem graça, é insossa, sem sabor, nosso paladar a rejeita. Um dos desafios de todo o cozinheiro, é encontrar o ponto certo do sal de modo que o gosto seja saboroso e agrade.
Talvez por isso, Jesus, ao falar da missão aos seus discípulos, tenha usada a imagem do sal. Ele afirma que seus discípulos são o sal que dá sabor à terra. Sem o sal do anúncio, o mundo fica sem graça. Mas a pregação, assim como o sal, deve ser posto na justa medida. Caso contrário, se torna intragável.
Mas aí vem a pergunta: qual é a justa medida da pregação de modo que ela realmente se torne o sabor do mundo?
O apóstolo Paulo, na Carta aos Coríntios, afirma que o sabor da pregação não é dado pelas palavras bonitas do pregador. O que dá o gosto ao anúncio cristão, segundo Paulo, é o Cristo crucificado que se identifica com os sofredores deste mundo.
Já o profeta Isaías, dá nome ao sal da pregação. Para ele, a pregação só tem o sabor de Boa Nova quando leva a repartir o pão com o faminto, a acolher na própria caso o pobre e o peregrino, vestir o nu, destruir os instrumentos da opressão, abandonar os hábitos autoritários e a linguagem maldosa, acolher de coração aberto o indigente e a prestar socorro a todo tipo de necessitado.
Segundo Isaías, quando prega e pratica este modo de ser, o discípulo compõem o bom prato que satisfaz ao paladar de todos. E mais: além de contemplar o paladar, este bom prato também desperta o sentido da visão. E o cristão, além de ser sal da terra, torna-se também luz do mundo.
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