segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

A economia do dom


Natal e Ano Novo é época de dar e de receber presentes. Quase todo mundo faz isso. Há, no entanto, um pequeno equívoco nisso tudo. A data certa para dar presentes não seria essa. Presentes deveriam ser dados na festa da Epifania. Ou seja, no dia em que celebramos a ida dos reis magos até o lugar onde Jesus nasceu para presenteá-lo com ouro, incenso e mira. O dia do presente é o dia 6 de janeiro.

Mas, enfim, como é difícil mudar costumes, continuaremos dando presentes no dia do Natal e, por extensão, no Ano Novo. Mas, o que significa dar um presente? A resposta é simples: dar um presente é dizer que gostamos de alguém. E que gostamos dele assim como ele é. E, sobretudo, que não queremos nada em troca. Se damos um presente esperando que essa pessoa retribua com outro presente, não estamos presenteando, mas negociando.

E o triste nessa época do ano é que o ato de dar um presente, que deveria ser um gesto que nasce do fundo do coração, tornou-se um grande negócio. A propaganda quer-nos convencer, a todo o custo, a dar mais e mais presentes. Porque, para o comércio, o gesto de amor de presentear, foi convertido no gesto ganancioso de lucrar.
Se olharmos com profundidade, neste tempo de presentes, estão em disputa duas lógicas econômicas. Por um lado, a economia capitalista que pensa todas as relações como uma troca em que sempre temos que ter lucro. Nessa lógica, o presente não é gratuito, mas é um investimento. A pessoa dá um presente não porque ama, mas para fazer-se amado. E, quanto mais caro o presente dado, maior é o amor com que espera ser amado. O amor virou negócio. É comprado e é vendido em intermináveis prestações que pesam no orçamento de cada mês durante o ano todo.

Do outro lado, está a economia do dom. É a economia do Deus que se faz humano sem esperar nada em troca. É dom gratuito, desinteressado, com o único objetivo de ensinar-nos a amar. Maria, José, os pastores e os reis magos entenderam este gesto de amor de Deus. E foram visitar o menino levando seus presentes sem esperar nada em troca.

Na economia do lucro, do capital, da compra e da venda, cada um dá conforme suas possibilidades e recebe em troca conforme a sua contribuição. Quem dá mais, recebe mais. E quem dá menos, recebe menos. Na economia do dom, do amor, da gratuidade, cada um dá conforme as suas possibilidades e recebe conforme suas necessidades. Quem precisa mais, recebe mais. E quem precisa menos, recebe menos.

São duas lógicas econômicas que estão, literalmente, no berço da experiência cristã, no berço do menino Jesus. E elas marcam todas as relações econômicas, as do passado e as do presente.

Que nesta Festa da Epifania, nos deixemos tocar pelo gesto de Deus que se dá a todos nós indistintamente, sem esperar nada em troca. E nos deixemos tocar pelo gesto dos pastores e dos reis magos que, com aquilo que tem – pouco ou muito – vão até Jesus e se colocam na dinâmica do dom, da gratuidade, da fraternidade universal.
______________________________
Siga-nos em nosso canal no YouTube


segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

A família é sagrada!


As festas de Natal e Fim de Ano são festas familiares. É o momento em que as famílias, às vezes espalhadas em diferentes cidades, estados e até países, fazem o esforço para se encontrarem e festejarem a esperança trazida pelo Messias e também pelo Novo Ano que começa.

De onde vem este costume? Talvez do fato de que, no primeiro domingo depois do Natal, a Igreja celebra a festa da Sagrada Família. Mas também pode ser pela prosaica razão de que os feriados de Natal e Fim de Ano – que geralmente combinam um feriadão prolongado – se tornam ocasião para uma viagem e estadia mais longa, propiciando o encontro familiar.

Seja qual for o motivo, o fato é que muitas famílias se reúnem nesta época do ano. Reuniões que, como todos o sabemos, têm um potencial de ambiguidade. Elas podem ser um momento alegre de reencontro de pessoas queridas há muito tempo distantes. Mas às vezes se tornam ocasião para que aflorem as tensões há muito tempo latentes entre os membros da família. Há que ser realista! As festas familiares de Natal e Fim de Ano podem ser um momento de reencontro e união, mas também podem tornar-se uma ocasião de desencontro e separação.

Isso tudo é normal. Afinal, as famílias são compostas por pessoas e se constroem nas relações. Como lembra o Papa Francisco na Exortação Apostólica sobre o Amor na Família, as relações familiares não são apenas ternura e amor. Elas também podem deixar atrás de si “um rastro de sofrimento e sangue”. E não apenas por causa de desentendimentos entre pais e filhos, irmãos e irmãs, tios e sobrinhos, netos e avós, sogras e noras, cunhados e agregados… A família também sofre as pressões do ambiente esterno que muitas vezes lhe é adverso. Na mesma “Amoris Laetitia” o Papa chama atenção para os fatores desagregadores das famílias. Ele cita a cultura do individualismo, a situação de miséria e pobreza na qual são abandonadas muitas famílias, o desemprego, a falta de moradia, a dificuldade no acesso à educação e saúde, a migração forçada de milhões de pessoas de um lado para o outro do mundo, a ausência de políticas governamentais de suporte às famílias em dificuldade e outros tantos males.

Dificuldades estas que não são novas. Elas estavam presentes na Sagrada Família de Nazaré e nas famílias com as quais Jesus conviveu. Basta olhar os evangelhos e veremos o realismo do discurso e da prática de Jesus no que se refere à família. Ele nasceu numa família pobre, que foi obrigada a fugir para uma terra estrangeira. Entrou na casa de Pedro, onde a sua sogra estava doente. Deixou-se tocar pela dor da morte da filha de Jairo e de seu amigo Lázaro. Ouviu o pranto da viúva de Naim pelo filho morto. Atendeu o grito do pai do menino epiléptico que não sabia mais o que fazer diante da doença do filho. Foi jantar na casa dos publicanos Mateus e Zaqueu e na casa de pecadores e doentes. Falou do pai que deixou seu filho partir e depois o acolheu de volta. E dos filhos que nem sempre obedecem às ordens do pai. Teve compaixão do jovem casa de Caná que ficou sem vinho para celebrar o casamento. Contou a história do pai que casou o filho e ninguém veio para a festa. E da mulher que só tinha uma moeda para sustentar a casa e a perdeu.

Histórias reais de famílias reais. Jesus não proclamou um dogma e nem se ateve a doutrinas. Ele falou de famílias reais, concretas que viviam situações muito similares às que hoje nossas famílias vivem.
Ele é uma luz para que, neste período de festas familiares, nós também possamos, a partir das luzes e sombras de cada uma de nossas famílias, derrubar os muros e construir pontes para o encontro de pais, filhos, irmãos, avós, tios, sobrinhos, sogros, cunhados e agregados, para que as famílias sejam, cada vez mais, amplas e acolhedoras numa sociedade aberta e inclusiva.
______________________________
Inscreva-se em nossa página no YouTube



segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O tempo dos homens e o tempo de Deus



Aproximam-se as festas de Natal e Ano Novo e, com elas, a tradicional sensação de que “o ano passou muito rápido”. E de que, a cada ano, o tempo passa mais rápido… Minha primeira reação é dizer que a sensação não é verdadeira. Afinal, todos sabemos que todos os anos, salvo os bissextos, têm 365 dias, os meses, salvo fevereiro, têm trinta ou trinta e um dias, as semanas têm sete dias, os dias têm vinte e quatro horas, as horas têm sessenta minutos, e os minutos sessenta segundos… Matematicamente, a duração dos anos e de suas porções é sempre a mesma. É verdade. Mas não é toda a verdade.

Acontece que, no tempo, há um fator fundamental. No tempo, há o fator humano. Não é o tempo cósmico o que muda. A mudança, e ela é muito real, se dá nas pessoas que vivemos no tempo. O problema não é o tempo. O problema é a sensação humana do tempo. Nós humanos sentimos a rapidez do tempo a partir daquilo que acontece ao nosso redor. Quanto menores as mudanças, mais lento o tempo. Quanto mais rápidas as mudanças, mais rápido o tempo.

E as últimas décadas da humanidade foram marcadas por extremas mudanças. Em todos os âmbitos da existência. Economia, política, cultura, religião, ecologia, esportes, ciência, tecnologia… Mudanças rápidas, bruscas, improváveis, imprevisíveis. Algumas nos surpreendem por jogar-nos para frente, para um tempo que pensávamos ainda distante. Outras mudanças nos dão a sensação de voltar a viver num passado que pensávamos superado para sempre. Dois breves exemplos. Quem, há vinte anos, poderia imaginar que a China seria hoje a locomotiva econômica do mundo? Quem, há vinte anos, poderia imaginar que o fascismo voltaria a ser uma força política viável na sociedade pós moderna?

Nesse tempo de mudanças radicas, nasce uma pergunta: de onde vêm as mudanças? Afinal, muitas vezes temos a sensação de sermos ultrapassados em nossa capacidade, pessoal e coletiva, de produzir ou administrar as mudanças que ocorrem ao nosso redor. Gostaríamos que fosse desse ou daquele jeito. Mas, na real, as coisas não acontecem como planejamos ou nos atropelam e levam de roldão por caminhos que não podemos imaginar.

A maioria das mudanças, é certo, tem suas causas na ação humana. É um desafio para nós compreender como agem os humanos e também a forma como podemos intervir para que as mudanças tomem os rumos e ritmos que desejamos. Outras, no entanto, estão para além das nossas capacidades. Para os que baseiam sua vida numa perspectiva de fé cristã, cremos que há mudanças que vêm de Deus. Cremos que, para além das capacidades e limites humanos, está a Graça de Deus, está a Sua Divina Providência.

Não fosse assim, como acreditar que o Messias poderia nascer na casa do carpinteiro José de Nazaré e do ventre da camponesa Maria? Impossível. Fora do cálculo humano. Maria ficou assustada e duvidou. José pensou em fugir. Tanto ele como ela precisaram da intervenção do Anjo para acreditar que Aquele que viria mudar a história da humanidade sairia, não do Templo de Jerusalém nem dos palácios dos governantes, mas que nasceria na periferia de Belém, num abrigo de animais, entre pastores e gente do povo. E foi isso que aconteceu e que celebramos no Natal. É Deus agindo no tempo e surpreendendo a humanidade com sua temporalidade benfazeja que nos atropela e assegura que o tempo de Deus não é o tempo dos homens.

Que as festas do Natal nos ajudem a compreender os mistérios do tempo de Deus e seu agir que nos surpreende a cada dia.
____________________________
Inscreva-se em nosso canal no YouTube


domingo, 15 de dezembro de 2019

Jesus e a porta dos fundos

Não assisti o tal Especial de Natal do Porta dos Fundos. A essas alturas, não sei se vou assistir. Há muito tempo desisti da televisão. E não tenho assinatura da Netflix. E de nenhum outro serviço de streaming. A vida real já é, de por si mesma, trágica, cômica e sórdida para que passemos o pouco tempo que temos nesta terra diante de uma tela quadrada. Em ambos os sentidos da palavra quadrada.

Mas o que ouço falar já me permite dizer algumas coisas sobre Jesus e a porta dos fundos. Não o Porta dos Fundos. Desse eu não vou falar porque, como já disse anteriormente, não assisti.
Mas, com certeza, posso dizer que:

a) quando o nome de Deus é usado para desprezar as outras culturas, principalmente as mais fragilizadas, como as culturas dos povos indígenas e afro-descendentes, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

b) quando o nome de Deus é utilizado para atacar as outras religiões, com a destruição de seus centros de culto, como tem sido feito com as Casas de Pajé no Mato Grosso e os Terreiros de Candomblé no Rio de Janeiro, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

c) quando o nome de Deus é usado para justificar o assassinato de jovens negros nas periferias de nossas cidades - o massacre de Paraisóplis é, infelizmente, apenas mais um caso entre tantos outros que passam no anonimato -, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

d) quando o nome de Deus é usado para dar legitimidade à violência, estupro e morte das mulheres, pelo simples fato de serem mulheres, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

e) quando o nome Deus é usado para estimular o assassinato de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneres, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

f) quando o nome de Deus é usado para sacralizar a destruição da Amazônia e dos demais biomas, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

g) quando o nome de Deus é usado para retirar verbas do Sistema Único de Saúde que atende os mais pobres do país, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

h) quando o nome de Deus é usado para criminalizar professores e professoras das escolas públicas a fim de que o capital privado tome conta da educação, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

i) quando o nome de Deus é usado para criminalizar os moviimentos sociais que tentam defender o pouco de direitos que ainda restam, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

j) quando o nome de Deus é usado para destruir com a Previdência Pública que garante uma vida quase decente para os idosos e idosas de nossa país, Jesus já sai pela porta dos fundos;

k) quando o nome de Deus é usado para arrancar dinheiro dos pobres na forma de dízimos, doações, coletas e outras aberrações pseudo-bíblicas, Jesus já está saindo pela porta dos fundos;

l) quando o nome de Deus é usado...

A lista seria bem maior. Cada um pode completá-la a partir do lugar onde seus pés pisam. E chorar de vergonha não pela Primeira Tentação de Cristo do Porta dos Fundos. Mas pela tentação de muitos cristãos - indivíduos e instituições - de calar-se diante de tanta dor e sofrimento de nosso povo.
Como dizia o Mestre de Nazaré, o Verbo que veio fazer sua casa entre os pobres da Galileia, se calarem a voz dos profetas, até as pedras clamarão. Se os cristãs e as igrejas cristãs se calam, talvez os artistas ateus tenham que emprestar sua voz para que Jesus fale. De uma forma que, talvez, não nos goste ouvir. Mas que nos interpela duramente.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A pós-verdade e o verdadeiro Messias


Todos os anos, o Dicionário Oxford escolhe “a palavra do ano”. Em 2016, a premiada foi “pós-verdade” (post-truth, em inglês). Não é uma palavra nova. Ela foi utilizada pela primeira vez no ano de 1992. Ao comentar a Guerra do Golfo para o The Nation, o jornalista Stive Tsich dizia que “nós britânicos, como povo livre, decidimos livremente que queremos viver em uma espécie de mundo da pós-verdade”.

Como os mais velhos lembramos, o fator decisivo para que os Estados Unidos, secundado primeiramente pelo Reino Unido e, em menor escala mas não com menos importância, pela União Europeia, invadissem e destruíssem o Iraque, foi a suposta posse, por parte de Saddam Hussein, de armas nucleares e químicas.

Membros de corpos diplomáticos de diversos países, especialistas em informações militares, jornalistas e o próprio governo iraquiano sabiam que tais armas não existiam. Mas a guerra foi feita, Saddam Hussein foi deposto, caçado e morto, o Iraque destruído e até hoje a região continua sendo um foco de instabilidade mundial.

Não foi a primeira vez que uma mentira foi usada para justificar uma guerra. Quase todas o são... Mas foi a cobertura dos jornalistas da CNN incorporados (embedded) às tropas americanas que garantiu o suporte de verdade informativa àquilo que nada mais era que uma mentira seletiva.
De lá para cá e com o advento das redes sociais, o fenômeno se ampliou em proporções gigantescas. Vivemos um mundo em que a verdade não é mais importante. O mundo da política é onde esta característica aflora de modo mais gritante. A capacidade de produzir mentiras na medida do gosto do público-alvo tornou-se a principal ferramenta para vitórias eleitorais. Não importa se algo é verdadeiro. Importa que afirme o que eu gostaria que fosse a verdade.

A expressão mais popular do fenômeno são as fake news que, infelizmente, ultrapassam o âmbito da política e chegam à ciência, à religião e ao cotidiano. No mundo da pós-verdade há pessoas que afirmam que a terra é plana, que não existe o aquecimento global, que as ONGs incendiaram a Amazônia, que o Papa Francisco é o anti-cristo, que as universidades públicas cultivam maconha em grande quantidade e que as vacinas fazem parte do plano comunista para dominar o mundo. A lista é infinita e absurda. Mas está aí!

Como evitar tudo isso? Na própria internet encontramos dicas úteis para identificar as fake news. Vale a pena conferir. É uma questão de saúde mental e social.

De nossa parte, queremos apenas recomendar uma dica dada por Jesus. Ele recém havia começado sua missão. João Batista estava preso. E o falatório sobre os dois percorria a Judeia e a Galileia. João, ouvindo falar de Jesus, ficou preocupado. Era verdade ou mentira aquilo que falavam a respeito dele? Jesus havia sido seu discípulo. Era seu conhecido. Mas, em tempos de fake news, não se pode confiar em ninguém! E João mandou perguntar a Jesus: “És tu o Messias que há de vir ou devemos esperar outro?”

Jesus respondeu remetendo à sua prática: “os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados.” O critério é claro: para ser verdadeiro, não basta ser dito. O que valia para Jesus, vale para o mundo da pós-verdade. É preciso voltar ao critério da prática, da ação, da transformação da dor e do sofrimento dos doentes e dos pobres em alegria pela chegada do Reino de Deus.

Na sua ação está a verdade do Messias nascido de Maria na manjedoura de Belém em meio aos pastores do campo. Ele não foi notícia porque sua verdade não interessava aos poderosos de seu tempo. Mas ele foi e continua sendo Vida e Esperança para os sofredores deste mundo.
___________________________________

Inscreva-se em nosso canal no YouTube:



segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Qual é o plano?


- Qual é o plano, pai?

- Melhor não ter nenhum plano, filho. Porque, se você tiver um plano e não der certo, ficará frustrado...

O diálogo entre pai e filho marca a sequência final do filme “Parasitas” dirigido por Boong Joo-hon. Um dramático e divertido filme que retrata as contradições da sociedade coreana. De um lado, uma família de quatro pessoas que mora numa mansão e goza de todas as benesses do progresso econômico vivido por aquele país do oriente nas últimas décadas. Por outro lado, outra família, também de quatro pessoas, que mora num subsolo imundo e tenta sobreviver das sobras da riqueza desta mesma sociedade. As duas famílias se encontram e, nos desencontros entre a extrema riqueza e a extrema pobreza, humor e tragédia se instalam.

Enquanto a família rica vive o sem sentido da abundância sem limite, na família pobre, o drama é pela sobrevivência do dia-a-dia. O pai, conformado com a situação, tenta sobreviver convencido de que não há como mudar as coisas. Para ele, não adianta sonhar. As coisas nunca vão mudar. O máximo que se pode alcançar é aproveitar o pouco que sobra da mesa dos ricos. Não há sonhos. Não há utopias. O filho, apesar dos constantes fracassos, continua a sonhar, a construir planos para tirar a família, incluído o pai, de sua situação de miséria.

O drama de “Parasitas”, tão bem narrado com a linguagem e a estética oriental, é similar ao vivido em muitas partes do nosso mundo tão desigual e onde somos convencidos a não sonhar. Vivemos o fim das grandes narrativas, o fim das grandes utopias. A ideologia que alimenta a sociedade desigual quer nos convencer de que a única satisfação possível é a de consumir. Para os ricos, o consumo abundante e sem limite. Para os pobres, o consumo das sobras e das imitações.

As frustrações do consumismo sem fim que levam ao desalento, à desesperança e, no limite, à morte, clamam pela redescoberta da capacidade de sonhar e de ter planos. E de não ter medo da frustração que o fracasso dos planos pode gerar em nós. É preciso aprender a conviver com a frustração e superá-las para continuar a sonhar, para continuar a ser humanos.

Para o cristão, isso faz parte do núcleo central da fé e se inspira no próprio ser de Deus. Ele criou a humanidade em um plano de amor e de convivência harmoniosa. Mas a humanidade lhe disse “não” e tomou outro caminho. Adão e Eva, instigados pelo tentador, rejeitaram o sonho de Deus. Mas Deus não desistiu de seu sonho para a humanidade, refez o seu plano para que o fim almejado fosse alcançado.

E, quando tudo parecia perdido, Deus, mantendo a fidelidade a Seu plano, se fez carne e veio habitar no meio de Deus. E o fez da forma mais surpreendente: encarnou-se no ventre de uma humilde camponesa de Nazaré. Ela, que se havia mantido fiel ao plano e ao sonho de Deus, é preparada para ser a habitação de Deus no meio de nós.

Algo inacreditável para os que habitavam “a casa de cima” da religião e da sociedade judaica. Mas crível sim, para Maria e por todos aqueles e aquelas que, como ela, não se contentavam com as sobras e queriam algo mais: queriam o encontro com Deus de forma plena e a realização da humanidade sem limite.

Que a festa da Imaculada Conceição nos ajude a redescobrir que Deus tem um plano para a humanidade. E que os eventuais fracassos não podem nos tirar a capacidade de sonhar com a plena realização de todos os seres humanos.
________________________________________
Siga-nos em nosso canal no YouTube



A economia do dom


Natal e Ano Novo é época de dar e de receber presentes. Quase todo mundo faz isso. Há, no entanto, um pequeno equívoco nisso tudo. A data certa para dar presentes não seria essa. Presentes deveriam ser dados na festa da Epifania. Ou seja, no dia em que celebramos a ida dos reis magos até o lugar onde Jesus nasceu para presenteá-lo com ouro, incenso e mira. O dia do presente é o dia 6 de janeiro.

Mas, enfim, como é difícil mudar costumes, continuaremos dando presentes no dia do Natal e, por extensão, no Ano Novo. Mas, o que significa dar um presente? A resposta é simples: dar um presente é dizer que gostamos de alguém. E que gostamos dele assim como ele é. E, sobretudo, que não queremos nada em troca. Se damos um presente esperando que essa pessoa retribua com outro presente, não estamos presenteando, mas negociando.

E o triste nessa época do ano é que o ato de dar um presente, que deveria ser um gesto que nasce do fundo do coração, tornou-se um grande negócio. A propaganda quer-nos convencer, a todo o custo, a dar mais e mais presentes. Porque, para o comércio, o gesto de amor de presentear, foi convertido no gesto ganancioso de lucrar.

Se olharmos com profundidade, neste tempo de presentes, estão em disputa duas lógicas econômicas. Por um lado, a economia capitalista que pensa todas as relações como uma troca em que sempre temos que ter lucro. Nessa lógica, o presente não é gratuito, mas é um investimento. A pessoa dá um presente não porque ama, mas para fazer-se amado. E, quanto mais caro o presente dado, maior é o amor com que espera ser amado. O amor virou negócio. É comprado e é vendido em intermináveis prestações que pesam no orçamento de cada mês durante o ano todo.

Do outro lado, está a economia do dom. É a economia do Deus que se faz humano sem esperar nada em troca. É dom gratuito, desinteressado, com o único objetivo de ensinar-nos a amar. Maria, José, os pastores e os reis magos entenderam este gesto de amor de Deus. E foram visitar o menino levando seus presentes sem esperar nada em troca.

Na economia do lucro, do capital, da compra e da venda, cada um dá conforme suas possibilidades e recebe em troca conforme a sua contribuição. Quem dá mais, recebe mais. E quem dá menos, recebe menos. Na economia do dom, do amor, da gratuidade, cada um dá conforme as suas possibilidades e recebe conforme suas necessidades. Quem precisa mais, recebe mais. E quem precisa menos, recebe menos.

São duas lógicas econômicas que estão, literalmente, no berço da experiência cristã, no berço do menino Jesus. E elas marcam todas as relações econômicas, as do passado e as do presente.

Que nesta Festa da Epifania, nos deixemos tocar pelo gesto de Deus que se dá a todos nós indistintamente, sem esperar nada em troca. E nos deixemos tocar pelo gesto dos pastores e dos reis magos que, com aquilo que tem – pouco ou muito – vão até Jesus e se colocam na dinâmica do dom, da gratuidade, da fraternidade universal.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O PRÍNCIPE DA PAZ E OS FALSOS MESSIAS


Em sua recente viagem ao Japão, o Papa Francisco visitou o Epicentro da Bomba Atômica lançada pelos Estados Unidos sobre a cidade de Nagasaki no dia 9 de agosto de 1945. O fato não teria nada de extraordinário. Ir a Hiroshima ou Nagasaki e oferecer flores pelos mortos em consequência das duas únicas bombas atômicas até hoje utilizadas numa guerra, é um ato que quase todos os Chefes de Estado em viagem ao Japão o fazem.

São raros, para não dizer raríssimos, os chefes de Estado que, em viagem ao único país que sofreu um bombardeio nuclear, não visitam uma das duas cidades para prestar sua homenagem aos mortos e a todo o povo japonês. Não fazê-lo, é uma amostra de insensibilidade e de espírito bélico. Não ir a Hiroshisma ou Nagasaki, para um Chefe de Estado, é a afirmação de que os conflitos só podem ser resolvidos pela força das armas. É ser contra a paz. É ser a favor da morte.

Mas, voltando ao Papa Francisco, em sua visita à cidade de Nagasaki, ele foi além da simples visita protocolar. Ele não só condenou o uso de armas nucleares. O Papa Francisco condenou a posse de armas nucleares. Afinal, ninguém tem uma arma inutilmente. Tê-la, pelo simples fato de tê-la sem a intenção de usá-la, não tem sentido. Se alguém tem uma arma, é porque pensa em um dia usá-la. Ou seja, tem a intenção de matar. E isso é o trágico na posse de armas. E não apenas da bomba atômica, mas de toda e qualquer arma.

O Papa foi mais fundo na questão. Em seu discurso, afirmou que o armamentismo nasce da desconfiança para com o outro. É o medo e a desconfiança em relação às outras pessoas, aos outros grupos sociais ou nações que faz nascer o desejo de possuir armas. Disse o Papa: “O nosso mundo vive a dicotomia perversa de querer defender e garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança, que acaba por envenenar as relações entre os povos e impedir a possibilidade de qualquer diálogo.

É o medo e a desconfiança que fazem ver fantasmas de inimigos em todo o canto e toda esquina. E desse medo e dessa desconfiança nasce o desejo de proteção que, para alguns, se sente satisfeito com a presença de armas ou de pessoas poderosas e armadas que nos protejam dos pretensos inimigos.
Restabelecer a amizade e a confiança é o único caminho para construir uma sociedade de paz e convivência harmoniosa entre todos.

Neste tempo de Advento, os cristãos celebram a chegada do Príncipe da Paz. No Evangelho de Mateus, Jesus adverte que, em tempos difíceis e de turbulência, é possível que apareçam muitos que se apresentem como aqueles que vêm trazer a paz para a sociedade. É preciso estar atento e saber discernir para não sermos levados por falsos messias. Estes, normalmente, chegam com muito barulho e se apresentam como príncipes da guerra. O verdadeiro Messias, o Príncipe da Paz, chega sem fazer alarde e se encarna na manjedoura de Belém.

O critério de discernimento, para Jesus, é claro. Ele o busca no profeta Isaías. Verdadeiro Messias, não é aquele que se apresenta com o poder das armas. Pelo contrário, o verdadeiro Messias é aquele capaz de transformar “espadas em arados e suas lanças em foices”. Na nova sociedade construída sobre a paz da justiça, os homens “não pegarão em armas uns contra os outros e não mais travarão combate”.

Que o espírito do Advento nos conduza pelos caminhos da superação do medo, da desconfiança e da violência. Que a amizade e a confiança sejam os condutores de nossos passos no caminho da paz.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Jesus não crucificou a Pôncio Pilatos!


Há duas afirmações do senso comum que precisam ser postas em questão. A primeira, a de que religião e política não se discutem. E muito menos em família ou com os amigos. Afinal, muitos de nós rompemos relações com familiares e nos afastamos de pessoas com as quais tínhamos amizade por causa de diferenças religiosas e políticas. Segundo esse pensar comum, que nasce de experiências às vezes dolorosas, cada um tem sua opção política e sua escolha religiosa e ninguém tem o direito de nela interferir.

O argumento pode ter até uma razão prática. Mas não se sustenta. E isso pela natureza dos dois temas em questão. Tanto a religião como a política são realidades sociais. E as opções que cada indivíduo faz têm consequências não só para ele, mas para toda a sociedade.

A religião, por definição, é a fé vivida de maneira comunitária. Não existe religião de uma só pessoa. A religião – e todas as religiões sem exceção! – são sistemas de sentido compartilhados que visam dar razões à existência e à coexistência. Os valores e comportamentos religiosos, queira o indivíduo ou não, têm incidência social. Por isso podem e precisam ser discutidos.

Da mesma forma a política. Ela é o arranjo consensuado e legitimado de regular as relações sociais. Portanto, toda opção política pode e deve ser discutida, pois a opção de cada um afeta a existência de todos os demais membros da sociedade.

O que podemos questionar é o modo como fazemos estas discussões. Muitas vezes, prevalece a vontade de impor a própria opção religiosa ou política sobre as outras pessoas e a indisposição para ouvir o argumento do outro. Nesse caso, o entrave não está no objeto de discussão, mas no modo como ela é conduzida.

A outra afirmação do senso comum que precisa ser superada é a de que religião e política não se misturam. Primeiro, por um dado prático. Se olharmos a vida política do Brasil e da América Latina nas últimas décadas, veremos que religião e política se entrelaçam cada vez mais intimamente. Para o bem ou para o mal. Mas é um fato que não pode ser negado.

Segundo, religião e política se mesclam também por uma questão conceitual. Com olhares e objetivos diferentes, estes dois âmbitos da existência tratam, como dissemos acima, da mesma realidade: a convivência social. A religião dá o sentido. A política organiza esse sentido na convivência prática. Inevitável que os dois universos se toquem e precisem dialogar. Não fazê-lo, acaba criando uma sobreposição às vezes esquizofrênica.

Para os cristãos, esse diálogo não é apenas um dado prático ou teórico. É uma questão de fé. Afinal, Jesus, a fonte e referência do cristianismo, foi morto em consequência de um julgamento político. Ele foi crucificado por ter-se afirmado como Rei dos Judeus em contraposição ao Imperador Romano. Por isso morreu na cruz e, todos os anos, a Igreja o celebra como Rei do Universo.

Mas atenção! É bom lembrar a muitos cristãos que Jesus não foi o agente crucificador. Ele foi o crucificado. Quem o mandou torturar e matar foi um general romano. Rezamos no creio que Ele “padeceu sob Pôncio Pilatos” e não que Ele “crucificou a Pôncio Pilatos”. Sempre é bom lembrar isso! Principalmente nestes tempos sombrios em que pessoas, em nome de Deus, ostentam instrumentos de tortura e morte chegando à aberração de chamá-lo de “General Jesus Cristo”.

Jesus é Rei, sim. Mas é o rei que entrou em Jerusalém montado num jumento e não num tanque de guerra. Sua única arma foi o perdão e a misericórdia. E seu trono é a cruz. Apresentar Jesus Cristo como um Rei guerreiro, rodeado de soldados sedentos de sangue e armados até os dentes, prontos para matar, não é apenas um desconhecimento da pessoa de Jesus. É pecado, é blasfêmia.

Que deixemos reinar sobre nós a imagem de Jesus, o Rei da Paz que nasce da Justiça.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Que venha o meteorito!





Que venha o meteorito! É uma expressão cunhada e repetida por um colega meu diante da irresponsabilidade humana para com o meio ambiente. Sem pudor e muito menos responsabilidade, utilizamos e abusamos dos recursos naturais e estamos conduzindo o Planeta Terra a uma catástrofe ecológica sem precedentes. E, com insana estupidez, agindo assim, a humanidade está programando a sua própria extinção. E essa catástrofe, antes que chegue à culminância, causará muita dor e sofrimento à espécie humana. Então, para evitar mais sofrimento, que venha logo o meteorito!
Tomando o mote do colega e vendo a deterioração não só do meio ambiente, mas das relações humanas como um todo, também tenho a tentação de desejar que esse fim chegue logo. Ao invés de aprendermos com as gerações que nos precederam, parece que queremos repetir os piores erros do passado…
Com efeito, a humanidade caminha em direção a uma concentração de riqueza nas mãos de poucas pessoas e empresas. Enquanto isso ou, por causa disso, bilhões de seres humanos têm suas vidas ceifadas ou reduzidas drasticamente pela falta do básico: água, comida, saneamento, casa, de atendimento à saúde. E ainda empilhamos milhares e milhares de mortos de forma absurda em guerras que têm como única justificativa a acumulação de mais e mais riqueza por parte de poucos. Que venha logo o meteorito!
Depois de tanto esforço de gerações e gerações para construir sociedades democráticas onde as pessoas, mesmo sendo diferentes e pensando diversamente, possam conviver em paz respeitando-se mutuamente, renascem vozes que exaltam o fascismo, o nazismo, o racismo, a misoginia, os torturadores e assassinos que mancham a história da humanidade e de nossas nações. Que venha logo o meteorito!
Quando olhava a realidade de seu tempo, Jesus teve a mesma tentação. É o que nos atestam os Evangelhos. Ele também desejou que a dor e o sofrimento de seu povo terminassem logo. Era demais aguentar tudo aquilo. Mas há um detalhe importante. A diferença bem declarada por Jesus no seu discurso apocalíptico, é a de que a catástrofe não é o fim último. O desastre provocado pelos humanos e que tem consequências cósmicas, é passageiro. Ele não é um fim em si mesmo e nem dura para sempre. Para além da catástrofe está a justiça de Deus já proclamada pelos profetas, entre eles Malaquias, quando afirma que “virá o dia, abrasador como fornalha, em que todos os soberbos e ímpios serão como palha; e esse dia vindouro haverá de queimá-los”. Para aqueles que, como lembra Jesus, permaneceram fiéis e foram perseguidos por causa da justiça de Deus que é a defesa dos empobrecidos e da criação, “nascerá o sol da justiça, trazendo salvação em suas asas”.
Que esse dia chegue logo! De preferência, antes que venha o meteorito!

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O boom religioso e a falta de fé


Para quem circula em meios eclesiásticos, é muito comum ouvir-se o discurso de que o grande problema da sociedade é a falta de religião. E que este afastamento da prática religiosa seria a fonte de todos os males que hoje afligem a sociedade brasileira, desde o desemprego até o aborto e a calvície!

Ledo engano provocado por uma falta de atenção – ingênua ou proposital – em relação ao que está acontecendo na sociedade. No Censo 2010, apenas 8% dos brasileiros se declararam “sem religião”. Mas a maior parte destes 8% afirma alguma forma de crença religiosa fazendo com que o índice dos que se declaram ateus, no estrito senso da palavra, seja ínfimo.

Olhando por outro lado, vemos que o discurso religioso invade todos os âmbitos de nossa convivência. Basta ligar a televisão para ver dezenas de canais transmitindo, 24 horas por dia, programação religiosa. Na internet, então, é o conteúdo que mais abunda. As escolas se tornaram palco de disputa entre igrejas e religiões. Hospitais e praças servem de palco a consoladores e aliciadores das mais variadas crenças e denominações. Música e cinema garantem sucesso e lucro falando de Deus. No mundo político, temos os que querem colocar “Deus acima de tudo” com a força das armas e de fake news.

Isso que ainda não falamos de igrejas. Se algumas, como as tradicionais paróquias católicas estão esvaziadas, outras, tanto católicas como pentecostais, regurgitam de fieis. Isso sem falar dos centros espíritas e africanistas por onde circulam cada vez mais pessoas de todos os estratos sociais e religiosos. E as novas formas de religião que surgem a cada dia fazendo com que o registro de religiões cresça a um ritmo superior ao das outras formas de comércio e à indústria que patinam em meio à crise.

Diante destes fatos, nossa opinião é de que o problema não é a falta de religião. O problema é a falta de fé. Religião é um rito externo. A fé, uma disposição interior que impulsiona a vida em direção a Deus. A maioria das religiões que hoje vemos por aí preocupam-se apenas com o bem estar afetivo ou financeiro de seus frequentadores ou com a sobrevivência da instituição e de seus pastores. Mas tem muita dificuldade em dar um sentido à vida das pessoas e da sociedade como um todo.

Florescem, como afirmou o Papa Francisco na missa de encerramento do Sínodo para a Amazônia,a ‘religião do eu’ hipócrita com os seus ritos e as suas ‘orações’: muitos dos seus praticantes são católicos, confessam-se católicos, mas esqueceram-se de ser cristãos e humanos, esqueceram-se do verdadeiro culto a Deus, que passa sempre pelo amor ao próximo”.

Diagnóstico do Papa Francisco que segue fielmente a reação de Jesus diante dos sacerdotes do templo de Jerusalém, os saduceus, que, ao invés de alimentar as esperanças do povo na luta pela libertação, assim como o haviam feito no passado os irmãos Macabeus, preocupam-se apenas com as leis e os ritos de seu sistema religioso. Diante da abundância de religiões que ocultam e abafam a ânsia de vida dos pobres e sofredores, é preciso ouvir a voz de Jesus que lembra que a verdadeira fé é a do Deus da vida que quer a vida para todos e todas.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Ser feliz é tudo o que se quer!


Ser feliz é o que todo ser humano deseja. Desde o nascimento até a morte. De manhã, de tarde, de noite. No trabalho, no descanso e no lazer. Na vida pessoal, familiar e social. No comer, no vestir, no namorar.

Da busca pela felicidade nascem religiões, filosofias e ideologias. Ela faz nascer sonhos, compromissos e desilusões. Dela brotam as entregas, as guerras e as paixões, a indiferença, a santidade e a solidão.

Mas, o que é felicidade? Difícil de definir. A começar pelas imagens de felicidade com as quais somos bombardeados diariamente. Existe a felicidade da família reunida ao redor da mesa saboreando um pote de margarina ou um iogurte. Ou a do carro novo comprado em 60 vezes sem entrada. A felicidade do crediário das Casas Bahia! A da cerveja feita de cereais não maltados que atrai todas as mulheres da praia. E, a mais recente e tecnológica, a do smartphone de última geração que é tão rápido e tem tantas funções que dispensam o seu feliz comprador de agir e pensar.

Mas como a inteligência do celular, todas essas felicidades são artificiais, imprevisíveis e efêmeras. Prova disso é o consumismo que rege a economia e a cultura do nosso tempo. Ele ao mesmo tempo é gerado e se nutre do círculo vicioso de compra-insatisfação-compra que só termina quando o dinheiro disponível e as possibilidades de financiamento se esgotam. E da falta de recursos para financiar a felicidade artificial surge a depressão e o suicídio, dois males endêmicos de nossos dias.

Há alternativa para isso? Sim. E ela é bem antiga. Já foi pregada há dois mil anos por Jesus e retomada recentemente pelo Papa Francisco na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate Sobre a Santidade no Mundo Atual. Trata-se das “bem aventuranças” ou, mais propriamente traduzindo, das “felicidades”. Elas nada mais são do que uma receita para alcançar a felicidade no quotidiano e o caminho da vida plena.

A dificuldade para acolher e praticar tal receita reside tanto nos seus ingredientes como na forma de preparação. Afinal, num mundo que apresenta a riqueza como elemento fundamental para alcançar a felicidade, como acreditar que felizes são os pobres? Num mundo que exalta a força e o poder, como dizer que é a mansidão que faz as pessoas felizes? Numa cultura que apresenta como herói aos senhores-de-guerra ou os que fazem “arminha”, como dizer que a felicidade pertence aos pacíficos. Justiça, misericórdia, pureza de coração, não fazem parte do receituário da felicidade de nosso tempo e de nossa cultura. Mas o são da pregação de Jesus. E ele não era cego para a realidade de seu tempo.

Sabendo da dificuldade de sua proposta ser aceita, Jesus coloca como último sinal de felicidade o fato de alguém ser perseguido, injuriado e caluniado por causa dessa sua contracultural receita de como construir uma vida e um mundo feliz. Esse é, como lembra o Papa Francisco, o caminho para a santidade. E ele não é extraordinário, mas ordinário e pode ser realizado por qualquer pessoa.

Talvez para pensarmos o nosso caminho rumo a uma vida feliz, a Igreja coloca juntas a festa de todos os santos e a festa dos mortos. Diante da realidade inelutável da finitude, cabe-nos perguntar: estou sendo feliz nesta vida que estou levando? A margarina de tal marca, o carro com tantos itens de conforto, a cerveja com este ou aquele sabor, o celular desta ou daquela marca, estão me dando a felicidade ou é melhor buscá-la na proposta de Jesus?

Que nesta festa de Todos os Santos e dos Finados, nos demos a possibilidade de repensar os nossos sonhos e os respectivos caminhos para alcançar a felicidade à qual todos e todas somos chamados.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Os pecados dos padres sinodais


Nesta semana a Igreja Católica Romana está encerrando o Sínodo para a Amazônia. Depois de um longo processo de escuta das várias realidades daquela região, bispos, delegados, consultores e convidados foram reunidos, durante três semanas, em Roma, sob a coordenação do Papa Francisco, para pensar “novos caminhos para a Igreja e por uma ecologia integral”. Ainda não conhecemos as decisões que serão expressas no documento final. Oxalá sejam esperançadoras para a Igreja e para os povos que vivem naquela região e para todo o bioma amazônico, tão fundamental para a vida no planeta Terra.

Com o Papa Francisco cremos que “o tempo é mais importante que o espaço” e que, por isso, o processo é mais importante que o resultado. E o grande ganho do caminho que levou a Roma foi, sem sombra de dúvidas, a prática da sinodalidade. Ou seja, de uma Igreja que, desde as mais remotas comunidades da selva amazônica até a Basílica de São Pedro, foi capaz de pôr-se a caminho para ir ao encontro de todas as pessoas e sentar-se em círculo para conversar e tomar decisões em conjunto. Foi um exercício de uma Igreja em saída e de uma igreja toda ela sinodal.

Além disso, foi um exercício de encarar de frente os problemas internos da comunidade católica e os desafios que a realidade socioambiental apresenta para os homens e mulheres de fé. E essa coragem de não escamotear o real fez com que o sínodo, além de despertar paixões no interno da comunidade católica, também alcançasse repercussões em toda a comunidade cristã e para além dela. É sabida de todos a reação do governo brasileiro e dos setores da sociedade que lucram com a destruição da Amazônica diante do Sínodo. Neste sentido, foi um sínodo eminentemente ecumênico e resgatou o objetivo dos sínodos tradicionais da Igreja: colocar a fé cristã em diálogo com os grandes problemas da realidade.

Dentro da Igreja, duas posturas desenharam os extremos diante do Sínodo. De um lado, aqueles e aquelas que, cientes dos erros cometidos no passado, pedem perdão e buscam novos rumos para o agir eclesial. De outro lado, aqueles e aquelas que, aferrados a uma compreensão da verdade e convencidos de que seu modo de agir é o único possível, mais do que preocupar-se com a evangelização, preocupam-se com a possibilidade de ter que mudar. E, ao invés de combater os males que afetam a igreja, o povo e o bioma amazônico, juntam pedras e paus para atirá-los contra seus irmãos de Igreja e de fé.

São duas atitudes clássicas dentro do cristianismo. E, não por coincidência, estão retratadas no evangelho da liturgia deste fim de semana. De um lado, o fariseu que se orgulha de sua ortodoxia e de sua ortopraxia, mas não tem fé, pois acha que pode se salvar por si mesmo. Do outro, o publicado que, sabendo-se pecador, confia na misericórdia de Deus.

O Sínodo para Amazônia e os debates por ele suscitados nos fazem lembrar que, dentro de cada um de nós, pode existir o publicano e pode existir o fariseu. Que saibamos reconhecer nossos erros e começar tudo de novo, pois, como nos dizia São Francisco, até agora, pouco ou nada fizemos.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A justiça dos homens e a justiça de Deus


A história é bastante conhecida. Mas precisa ser lembrada, pois é a história da justiça. Quando ele nasceu no pequeno vilarejo de Mvezo, em 18 de julho de 1918, recebeu o nome de Nelson Rolihalahla Mandela. Seu pai, analfabeto como a grande maioria da população sul-africana da época, era um líder tribal tradicional. Dentro do sistema de governo imposto na região pelo Império Britânico, seu papel era o de fazer a mediação entre o governo colonial e a população nativa. Era uma mediação tensa, pois os brancos, que contavam com aproximadamente 10% da população, dominavam 90% das terras e toda a produção mineral, a grande riqueza do país.

O destino de Nelson era o de casar-se com uma jovem indicada por seu pai e sucedê-lo na chefia tribal que, em comparação com a grande maioria da população negra, tinha uma vida relativamente confortável. Mas Nelson era um jovem atento à realidade de seu país e com seu olhar observador percebeu que aquele modo de organizar a sociedade não era justo. Em busca de melhores horizontes, mudou-se para a capital do país, ingressou na Universidade – a única para negros na África do Sul  - onde conheceu outros jovens que, como ele, sonhavam com um país livre da dominação colonial e do apartheid que, naquele momento, deixava de ser uma realidade vivida para ser fundamentada em leis.
Sua insurgência contra a discriminação dos negros levou-o a ser expulso da Universidade. Depois de muita luta logrou formar-se advogado e continuou, agora em outros parâmetros e com outros instrumentos, na batalha por melhores condições de vida para seu povo. Sua obstinação custou-lhe caro. Teve que fugir do país e, retornando, viver na clandestinidade até que, em 1963, foi preso e condenado à prisão por traição à Pátria.

De 1964 a 1990, Nelson Mandela foi prisioneiro do Estado sul-africano. Primeiro em Roden Island, depois em Pollsmor e, finalmente, em Victor Verster. Mesmo sem perspectivas de recuperar a liberdade, nunca renunciou a seu sonho de ver seu povo africano livre em seu próprio país.

Com o tempo, a luta da população africana organizada no Congresso Nacional Africano e a pressão internacional, o regime do Apartheid tornou-se insustentável. No final de 1999, o governo sul-africano legalizou os partidos políticos, inclusive o Congresso Nacional Africano e, no dia 11 de fevereiro de 2000, Nelson Mandela deixou a prisão. Em 1993, recebeu o Nobel da Paz. Comprometido com a paz, foi candidato a Presidência do país. Eleito, conduziu a refundação do país num processo de reconciliação nunca antes vivido em nenhum lugar do mundo.

Lembrar a história de Nelson Mandela, é perguntar-se pelo que entendemos por justiça. O sistema legal da África do Sul condenou-o à prisão. Mas era um sistema legal baseado na justiça dos homens brancos detentores da riqueza construída à custa da vida de milhões de negros africanos. Foi essa justiça que condenou Mandela.

Mas houve uma justiça que absolveu Mandela. Foi a justiça da humanidade que crê que toda pessoa tem direitos inalienáveis por ser uma pessoa humana. Essa é a justiça de Deus. A justiça que não esmorece ante os juízes poderosos que arrogantemente querem calar a voz da viúva que clama pelos seus direitos. Essa é a justiça que Jesus nos aponta no Evangelho. Que tenhamos os ouvidos atentos ao seu clamor que é o clamor de Deus.
______________________________

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Mobilidade, gratidão e salvação


A mobilidade faz parte da condição humana. Mais: poderíamos dizer que o que nos tornou humanos foi o fato de querer ir mais longe. Afinal, o que impulsou nossos ancestrais a deixar de andar de quatro patas para tornarem-se bípedes? Facilitar o deslocamento, com certeza, foi um dos fatores. De pé se vê mais longe e o andar se torna mais ágil e rápido para buscar comida, localizar um melhor lugar para viver, fugir dos inimigos, encontrar-se com os outros... Todas necessidades básicas que moveram os primeiros home sapiens e a humanidade durante trezentos mil anos de história e continuam a impulsionar, hoje, milhões e milhões de pessoas a saírem de seus locais de origem e buscar outros espaços de vida.

De uma forma ou de outra, todos somos migrantes ou descendentes de migrantes. De primeira, segunda, terceira ou mais gerações. É só olhar para trás na história dos antepassados. Às vezes, basta pronunciar o sobrenome para saber que somos migrantes ou descendentes de migrantes. O sotaque e a cor da pele nos denunciam. Por que, então, tanta dificuldade em aceitar os migrantes em nossa comunidade, em nossa cidade, em nosso país?

A palavra técnica para isso é xenofobia. Originada do grego, ela significa, literalmente, o medo ao diferente. De fato, o migrante que nos mete medo é sempre o estranho ao nosso mundo. Se é igual a nós, nem é considerado imigrante, mesmo que tenha vindo de muito longe. Mas se a sua cor de pele, sua língua, sua religião, sua cultura, seus costumes, são diferentes dos nossos, as reações xenofóbicas não tardam a manifestar-se.

O que nos mete medo, não é a mobilidade, mas a presença entre nós do diferente. Parece que isso faz parte da condição humana. Já no tempo de Jesus era assim. Os judeus tinham muita dificuldade em aceitar quem não pertencesse ao seu povo. O ódio aos romanos era óbvio. Roma era o Império estrangeiro que invadiu, espoliou e mantinha sob ferrenha dominação o povo judeu. O medo aos cananeus também, já que Israel havia se apossado de suas terras. Já o medo aos samaritanos era menos explicável. Judeus e samaritanos faziam parte do mesmo povo. E cultuavam o mesmo Deus. O que os diferenciava era a presumida pureza de sangue dos judeus e o lugar de culto e alguns costumes particulares.

Várias vezes nos evangelhos Jesus apresenta um samaritano como modelo de fé. A passagem mais conhecida é a do chamado “bom samaritano”. Mas existe também a passagem do leproso samaritano que, junto com outros nove leprosos judeus, foi curado por Jesus. Dos dez, apenas o samaritano voltou para agradecer. Só ele reconheceu em Jesus a presença salvadora de Deus. Bem diferente dos leprosos judeus que, também curados por Jesus, continuaram encerrados em sua convicção nacionalista e xenofóbica de que os privilégios de Deus são exclusivamente para eles.

Curados, os nove judeus nacionalistas, ortodoxos e xenófobos foram ao templo. Mas Deus não estava no templo. Deus estava em Jesus. E foi só o samaritano estrangeiro, herético e longe de sua terra que o encontrou e foi salvo por sua fé.
_______________________
Inscreva-se em nosso canal no YouTube e acesse esse e outros vídeos

domingo, 29 de setembro de 2019

A fé remove montanhas


Como diagnosticado argutamente no final dos anos sessenta pelo pensador francês Guy Debord, vivemos numa “sociedade do espetáculo” onde, o importante, não é ser, mas aparecer.

Nos anos oitenta, no auge do poder da comunicação televisiva, o objetivo de toda a pessoa que ansiava por êxito era, como afirmava Andy Warrol, alcançar os “quinze minutos de fama”. Com o surgimento dos reality shows, esse desejo parecia tornar-se acessível, se não a todos, como profetizara o astro da arte pop, pelo menos a todo aquele e aquela que estivesse disposto a expor a sua vida pessoal até a mais recôndita intimidade ao voyeurismo de um público que projeta na fama efêmera de pessoas alçadas do anonimato ao estrelato, o seu desejo inconsciente de parecer aquilo que nunca alcançará ser.

Com a aceleração da comunicação e a necessidade, impulsionada pelo capitalismo, de transformar o espetáculo em produto, os iniciais “quinze minutos de fama” foram reduzidos a “cinco minutos” onde, no dizer de Menito Ramos, cada um atropela o outro para alcançar os aplausos no final. Mas, no capitalismo, onde time is money, cinco minutos é muito tempo e, para alcançar a fama, as pessoas tem que “se virar nos trinta” que decidem do seu êxito ou fracasso.

As novas tecnologias da comunicação e, nelas, as redes sociais, reduziram ainda mais o tempo. Um bom viral, meme ou gif, tem a duração de, no máximo, sete segundos dos quais pode resultar a piada engraçada que consagra ou desgraça a vida dos personagens.

A religião, como parte desta cultura, também entrou na lógica do espetáculo. Seguindo o padrão do televangelismo norte-americano, por todo o mundo e em todos os espectros religiosos surgiram personalidades religiosas midiáticas. E a religião, seguindo a lógica do capitalismo, se tornou um grande espetáculo onde não importa a fé, mas a fama que se transforma em grana justificada pela teologia da prosperidade ou pelo neopelagianismo. Cultos, pregações, shows, curas, exorcismos, testemunhos... tudo passou a ser tratado como um produto a ser vendido a um expectador ávido do extraordinário como forma de superar a sua real insignificância quotidiana. A parresia se transformou em capacidade de convencer incautos dos poderes do pregador sobre Deus e a fé em ignorância que aceita o espetáculo como realidade concretizando a profecia de Guy Debord de que “no mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso”.

A fé é capaz de transplantar árvores de um lugar para outro. E também de remover montanhas. Já o dizia Jesus. Hoje, na sociedade do espetáculo, uma falsa compreensão de fé está removendo montanhas de dinheiro do bolso dos pobres para o bolso de espertalhões que manipulam o desejo de fama e sucesso inoculado pelo capitalismo.

É preciso voltar à fé de Jesus que a descreve como a entrega total a Deus sem esperar em troca nenhuma recompensa, nem material e nem moral. É preciso atuar de modo que, no final de nosso percurso de vida, depois de termos feito tudo o que está a nosso alcance, só nos caiba dizer diante de Deus: “Somos servos inúteis, fizemos apenas o que devíamos fazer”. E aí nossa fé alcançará a sua plenitude.
_________________________
Inscreva-se em nosso canal no YouTube e acesse a todos os vídeos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Eles têm Moisés e os profetas.


Há poucos dias o Brasil assistiu com espanto as declarações de um Procurador do Ministério Público de Minas Gerais afirmando ser impossível viver com um salário “miserê” de 24 mil reais. Segundo ele, “todo mundo já verificou que é um salário relativamente baixo. Sobretudo para quem tem mulher e filho.” Em sua fala, ele expressa que, além de reduzir os gastos, se sentia ameaçado em sua saúde: “Estou deixando de gastar R$ 20 mil de cartão de crédito e estou gastando R$ 8 mil. Pra poder viver com os R$ 24 mil. Eu e vários outros já estamos vivendo à base de comprimido, à base de antidepressivo. Estou falando assim com dois comprimidos de sertralina por dia, e ainda estou falando deste jeito.”

Mas o incrível da fala do Procurador é a justificativa para a sua demanda de aumento salarial: “Eu, infelizmente, não tenho origem humilde. Eu não sou acostumado com tanta limitação. Talvez eu seja até mal visto porque aqui tá cheio de gente que diz que nós somos perdulários. Tá cheio de gente aqui dizendo que nós ganhamos muito, que temos de economizar. Mas é gente que não gasta um centavo, só vive economizando.”

Para o Procurador, na sociedade brasileira existem dois tipos de pessoas com naturezas diferentes. Os de origem humilde, acostumados a viver com pouco, e os de origem aquinhoada, acostumados a viver com muito. Estes necessitam continuar recebendo mais ainda, pois não podem viver com menos. E os que ganham menos, não precisam receber mais, pois estão acostumados a viver com pouco. É natural que seja assim...

Na real, o Procurador em questão recebeu, nos últimos meses, em média, 60 mil reais por mês. Ou seja, mais de sessenta vezes o salário mínimo nacional. Pergunto-me: o que leva à naturalização de uma situação tão desigual?

Há várias hipóteses... A primeira, a herança feudal de um mundo desigual onde os servos serão sempre servos e os nobres sempre nobres. Ou a cultura escravagista ainda encravada na sociedade brasileira de que o filho do ventre escravo será escravo até a sua morte. Cultura que nem a Lei Áurea declinou de abolir ao negar dar condições dignas para os escravizados e seus descendentes. A geografia de nossas cidades atesta a divisão social que perdura de geração em geração.
O que diz a nossa fé sobre isso? O Evangelho é claro: o rico esbanjador que nega partilhar a sua comida com o pobre que bate à sua porta irá arder para sempre no fogo do inferno. E não há remédio para tal pecado. É duro. Mas é a palavra do próprio Jesus afirmando que esta é a decisão de Deus. E a razão é simples: “Eles têm a Moisés e os profetas, que os escutem”. Através deles, o caminho da salvação, que consiste em cuidar daquele que está caído por terra, já foi pronunciado e disposto para todos.

Mas o mais duro da parábola de Jesus é o final, quando Ele afirma, pela boca de Abraão, que, para aqueles que não socorrem os famintos, não adiante nem enviar alguém ressuscitado dos mortos. Ora, quem é que ressuscitou dos mortos? Jesus, é claro. Então, afirmar que se crê em Jesus ressuscitado e não se atende às necessidades dos pobres, é uma contradição insuperável. Sem atenção ao faminto, ao sedente, ao nu, ao prisioneiro, ao doente..., não há verdadeira fé em Jesus Cristo, mesmo que se proclamem aos céus centenas de profissões de fé e milhares de Aleluia. O fosso é intransponível. Mas há Moisés e os profetas. Felizmente.
______________________________
Inscreva-se em nosso canal no YouTube e receba antecipadamente nossos vídeos