quinta-feira, 28 de março de 2019

Vamos celebrar o Golpe?


Diferente de meus amigos democratas que se escalofriaram com a proposta do Presidente de plantão em mandar os quartéis celebrarem o Golpe de 1964, eu, decididamente, oPTtei por seguir a ordem do dia e me agregar à nova velha política da morte da democracia. Vou celebrar, sim, o 31 de março. E o faço com o texto de um poeta que, se vivo, ontem, 27 de março, estaria comemorando 59 anos. Como todos os da minha geração já adivinharam, trata-se de Renato Russo. A poesia, musicada e lançada no álbum “O Descobrimento do Brasil” de 1993, chama-se “Perfeição”. E é tão perfeita a letra que não pode ser em nada emendada na medida em que desvela o caráter profundo deste Brasil tão esquizofrenicamente injusto que, por isso, nunca chega a construir-se como nação pois isso implicaria abolir o caráter escravista de nossa sociedade. Mas, como diz o poeta, mesmo se “a esperança está dispersa”, sabemos que “só a verdade nos liberta”, e, como temos a certeza de que “o amor tem sempre a porta aberta, e vem chegando a primavera, nosso futuro recomeça”.
Com a palavra, o poeta:

PERFEIÇÃO (Renato Russo, 1993)
Vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações, o meu país e sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões.
Vamos celebrar a estupidez do povo, nossa polícia e televisão.
Vamos celebrar nosso governo e nosso Estado que não é nação.
Celebrar a juventude sem escola, as crianças mortas.
Celebrar nossa desunião.
Vamos celebrar Eros e Thanatos, Persephone e Hades.
Vamos celebrar nossa tristeza.
Vamos celebrar nossa vaidade.
Vamos comemorar como idiotas, a cada fevereiro e feriado, todos os mortos nas estradas, os mortos por falta de hospitais.
Vamos celebrar nossa justiça, a ganância e a difamação.
Vamos celebrar os preconceitos por volta dos analfabetos.
Comemorar a água podre e todos os impostos, queimadas, mentiras e sequestros, nosso castelo de cartas marcadas, o trabalho escravo, nosso pequeno universo, toda hipocrisia e toda ostentação, todo roubo e toda a indiferença.
Vamos celebrar epidemias, e a festa da torcida campeã,
Vamos celebrar a fome, não ter a quem ouvir, não se ter a quem amar.
Vamos alimentar o que é maldade, amos machucar um coração.
Vamos celebrar nossa bandeira, nosso passado de absurdos gloriosos, tudo o que é gratuito e feio, tudo que é normal.
Vamos cantar juntos o Hino Nacional (A lágrima é verdadeira).
Vamos celebrar nossa saudade e comemorar a nossa solidão.
Vamos festejar a inveja, a intolerância e a incompreensão.
Vamos festejar a violência e esquecer a nossa gente que trabalhou honestamente a vida inteira e agora não tem mais direito a nada.
Vamos celebrar a aberração ee toda a nossa falta de bom senso, nosso descaso por educação.
Vamos celebrar o horror de tudo isso com festa, velório e caixão.
Está tudo morto e enterrado agora, já que também podemos celebrar a estupidez de quem cantou esta canção.
Venha, meu coração está com pressa, quando a esperança está dispersa, só a verdade me liberta.
Chega de maldade e ilusão.
Venha, o amor tem sempre a porta aberta, e vem chegando a primavera. Nosso futuro recomeça.
Venha, que o que vem é perfeição!

quinta-feira, 21 de março de 2019

São Patrício X Antônio Conselheiro?


A modernidade é a era da “colonialidade”. O neologismo difundido pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, quer expressar as relações políticas e suas consequências econômicas, culturais, pedagógicas, étnicas, de gênero... que foram construídas no Ocidente a partir do séc. XIV e resultaram no euro-centrismo típico da modernidade. Eurocentrismo que teria sua expressão maior no atual processo de globalização capitaneado pelo capital transnacional.

A colonialidade se expressou de forma brutal no modo como as potências europeias – Portugal, Espanha, Inglaterra, França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Itália, Rússia – invadiram, cada uma a seu turno, territórios na América, África, Ásia e Oceania subjugaram militarmente os povos nativos destes continentes, provocaram genocídios, exploraram as riquezas naturais e impuseram sua cultura. É uma história que todos conhecemos e muitos sofremos as consequências ainda hoje. A colonialidade não é algo do passado. Ela se instalou de tal modo nas mentes e corações das pessoas – tanto dos colonizadores como dos colonizados – que, muita vezes, parece ser difícil superar suas expressões tanto no macro das relações internacionais como no micro das suas manifestações culturais.

Dentro do histórico da expansão colonial europeia há um fato muito particular que poucos conhecem. A Inglaterra foi a nação que conseguiu manter pelo tempo mais prolongado uma colônia dentro da própria Europa. Trata-se da Irlanda. A partir do séc. XX, a dominação inglesa sobre a Irlanda sendo imposta de forma cada vez mais rígida. A propriedade das terras passou a ser um direito exclusivo dos ingleses e só eles tinham representação política. A língua nativa – o gaeilge – foi substituído pelo inglês e as profissões liberais foram proibidas aos nativos.

Dominados por todos os lados, os irlandeses encontraram na religião o refúgio pra manter a identidade cultural. Por oposição aos ingleses anglicanos, ser irlandês tornou-se sinônimo de ser católico romano. E, dentro do catolicismo, a figura de São Patrício – o escravo do séc. V que evangelizou a ilha verde – a grande referência de vida para os que resistiam ao colonialismo.
A grande fome do séc. XIX – provocada pela exploração inglesa e por um fungo importado do México – provocou a morte de mais de um milhão de irlandeses e fez com que mais de outros dois milhões deixassem a ilha em busca da sobrevivência. A maioria cruzou o Atlântico e se instalou na então conflituosa e próspera nação dos Estados Unidos da América. Antes do afluxo de latinos aos Estados Unidos, ser católico nos Estados Unidos equivalia quase que normalmente a ser descendente de irlandeses.

Junto com a fome e os poucos pertences, levaram para lá a tradição católica e a devoção a São Patrício expressa no nome de incontáveis paróquias, instituições religiosas e sociais. Para um descendente irlandês nos Estados Unidos, festejar São Patrícia é fazer memória do passado de dominação colonial da Inglaterra sobre a Irlanda e, ao mesmo tempo, afirmar a identidade cultural e a resistência de tantos homens e mulheres que deram a vida para que, no início do séc. XX, a pequena ilha pudesse proclamar sua independência e afastar definitivamente o sombrio passado colonialista inglês.

Há alguns anos, em Porto Alegre, assim como em outras cidades brasileiras, começaram a pipocar, especialmente nos bairros nobres, as “Saint Patrick’s Day”. Neste ano, em Porto Alegre, a Prefeitura autorizou a realização de onze eventos ao ar livre com ocupação de praças e interrupção de ruas. Todos eles acontecem nos bairros nobres de Porto Alegre. Decoração verde, trevos, cerveja verde, música típica... fazem parte do menu disponibilizado.

Enquanto dirijo lentamente ao som de uma música tradicional irlandesa à base de foles e violinos, pergunto às palhetas de meu Peugeot 208 que bailam de um lado para outro em um ritmo que não combina com a música se os organizadores da festa sabem quem foi São Patrício e a história colonial da Irlanda e sua luta pela afirmação da independência econômica, política e cultura. Como bom francês, meu Peugeot 208 responde um suave “penso que não”. Concordo com ele. Lembro do Halloween, do Black Friday e da gravata do Pelé na final do Copa de 1994. “Yes, nós temos banana, banana prá dar e vender”, como dizia o samba de antigamente. E junto vai a Petrobrás, a Embraer e a Base de Alcântara.

Enquanto deixo a Avenida Goethe e começo a descer a Doutor Timóteo, a sanfona, acompanhada da zabumba, do triângulo e da inigualável voz de Luiz Gonzaga me lembra que “Minha vida é andar por este país, pra ver se um dia descanso feliz, guardando as recordações, das terras onde passei, andando pelos sertões, e dos amigos que lá deixei...” Sigo meu caminhando esperando encontrar, na esquina com a Cristóvão Colombo, uma festa em homenagem a Antônio Conselheiro. Não custa sonhar!

segunda-feira, 18 de março de 2019

NA QUARTA-FEIRA DE CINZAS, O CARNAVAL ACABAVA...

“Cadê as marchas bonitas dos tempos de antigamente? Dos carnavais que passaram, que pena, hoje é tão diferente.” Com um início assim de saudosista, iniciava o agauchado e melancólico samba cantado por Teixeirinha sob o título de “A saudade que ficou”.

Segundo o autor do samba – não consegui informações exatas se era do próprio Teixeirinha ou de outra pessoa – duas razões há para que os carnavais de hoje não sejam mais como os de antigamente. A primeira é a da relação entre o fim do carnaval e a permanência, na memória das pessoas, das marchinhas nele cantadas. Segundo o autor, antigamente, o carnaval terminava na Quarta-feira de Cinzas, mas as marchinhas seguiam sendo cantadas o ano inteiro. Hoje, o carnaval continua terminando na Quarta-feira de Cinzas, mas as marchinhas “morrem ao baixar a poeira”. Isso se deve, sempre segundo o autor do samba, a que os compositores de hoje não são mais como os de antigamente: “O Noel Rosa morreu, Francisco Alves também. A velha guarda inteirinha partiu, subiu o céu e não vem. Oh! Velha guarda querida dos carnavais que passou, pra cantar e compor como eles, meu bem, nenhum herdeiro ficou.”

Não sei em que ano este samba foi composto. Na minha memória musical ele está presente deste a minha longínqua infância quando lá, no interior de Vila Flores, sintonizávamos, num rádio de pilha, as emissoras de Porto Alegre, e a Rádio Tupi de São Paulo e a Rádio Globo do Rio de Janeiro. É um samba antigo e que grudou no meu ouvido. Lembrando dele, perguntei-me: será que ele continua atual? Não! Definitivamente, não. Se a letra do samba fosse recomposta, hoje, ela teria que ser mudada. Em primeiro lugar, porque, hoje, o carnaval não termina na Quarta-feira de Cinzas. Movido pela lei do mercado que explora ao máximo um produto, até o limite da possibilidade de produzir lucro, o “produto carnaval” não respeita mais os princípios cristãos da Quaresma e, cruzando a Quarta-feira de Cinzas, se estende, no mínimo, até o fim de semana seguinte. E isso não só apenas um Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Mesmo em Porto Alegre e cidades do interior gaúcho, o carnaval vai se aproximando cada vez mais da Semana Santa. Não me admira se, daqui a alguns anos, não acabaremos tendo um Carnaval de Semana Santa. Se der lucro, o deus-mercado vai justificar...

Uma outra razão pela qual podemos discordar da letra do samba cantado por Teixeirinha, é de que as letras das marchinhas sejam esquecidas imediatamente após a Quarta-feira de Cinzas. Isso aconteceu até recentemente. Mas, nos últimos anos, há letras de sambas que vão ficar para sempre na memória das pessoas. Como esquecer, por exemplo, do Samba Enredo da Mangueira, campeã do Carnaval carioca de 2019 que teve a coragem de “contar histórias que a história não conta” e concluir com a desafiadora memória de tantos heróis do povo que não cabem nas molduras oficiais?

É uma “história para ninar gente grande” e que permanecerá, muito depois da Quarta-feira de Cinzas, lembrando ao Brasil que “teu nome é Dandara e a tua cara é de cariri. Não veio do céu, nem das mãos de Isabel, a liberdade é um dragão no mar de Aracati. Salve os caboclos de julho, quem foi de aço nos anos de chumbo. Brasil, chegou a vez, de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. Sambas como este, ultrapassam não apenas a Quarta-feira de Cinzas, mas cruzam o ano todo e certamente continuarão na memória do povo brasileiro por muito tempo, passando pela cruz da Sexta-feira Santa até chegar no Domingo da Eterna Ressurreição.

segunda-feira, 11 de março de 2019

DA “TORMENTA NO DESERTO” À “TORMENTA NO CARIBE”

Os fatos que lembramos e aos quais fazemos referência em nossos discursos revelam a idade que temos. Saber o que foi a “Tormenta no Deserto” revela que a pessoa – fora os apaixonados por história – tem mais de cinquenta anos... É o meu caso. Estou iniciando a segunda parte daquilo que espera seja o século que me cabe viver e por isso lembro o que foi a “Tormenta no Deserto”.

A “Tormenta no Deserto” também marca um tempo na minha vida e ganha com isso um significado especial. No dia 24 de fevereiro de 1991 eu deixava o Brasil para iniciar um período de trabalho na Nicarágua pós-sandinista. Naquele exato dia, enquanto juntamente com o agora falecido Vitor Poloni, deixava Porto Alegre nas asas da Varig e, depois de uma escala no Equador e outra na Costa Rica, chegávamos em Manágua, as areias do deserto do Golfo Pérsico e os céus do Oriente Médio sacudiam sob o peso da maior operação militar desencadeada depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Em uma única noite, as forças de uma coalização internacional liderada pelos Estados Unidos despejaram sobre o Kuwait e o Iraque, apenas através de bombardeios aéreos, nada mais nada menos que oitenta e oito mil e quinhentas toneladas de explosivos.

Foi a primeira guerra televisionada ao vivo. A CNN, então uma emergente cadeia de televisão, foi encarregada de divulgar ao mundo o espetáculo do bombardeio. A Tormenta no Deserto foi transformada em espetáculo e videogame. Os soldados, nos aviões ou nos bunkers de comando, apertavam botões e os céus e cidades do Iraque explodiam num espetáculo de cores que ocultava a morte de em torno de um milhão de pessoas.

No dia seguinte, 25 de fevereiro, por terra, a coalização militar ocidental entrou no Kuwait e, em menos de 24 horas, já fazia as tropas iraquianas comandadas por Saddam Hussein recuarem ao norte da fronteira. No dia 26 o Iraque é invadido e no dia 27 um armistício é assinado. Na retirada, as forças iraquianas incendiaram os poços de petróleo que não haviam sido destruídos pelo bombardeio norte-americano.

Qual a causa dessa guerra? Muitas podem ser elencadas... Cada historiador escolhe as suas e dá destaque a esta ou aquela. Mas a causa imediata é clara: o preço do petróleo. Para poder manter a dinâmica de sua economia, os Estados Unidos obrigavam a Arábia Saudita, os Emirados Árabes e o Kuwait a uma superprodução para além dos limites estabelecidos pela OPEP. Com isso, o preço do petróleo baixou de dezesseis a dez dólares o barril. O Iraque, maior produtor da época e necessitado de divisas para reconstruir o país após a guerra contra o Irã – guerra patrocinada do lado iraquiano pelos norte-americanos, há de se lembrar – era o maior prejudicado com essa política. Impossibilitado de resolver diplomaticamente seu problema, invadiu o Kuwait como uma forma de regular o mercado petroleiro.

O Iraque pagou e continua pagando até hoje um alto preço por essa aventura. Em 2003 sofreu outra invasão por parte dos Estados Unidos que, desta vez, depôs Saddam Hussein sob o pretexto de armas químicas e nucleares nunca encontradas. O território do país do Tigre e do Eufrates foi dividido em três zonas e hoje é um dos abrigos do chamado “Estado Islâmico” que continua a convulsionar aquela região.

Quase trinta anos depois, o mapa do petróleo mudou. As maiores reservas conhecidas não estão mais no Oriente Médio. Novas descobertas revelaram que o maior volume de ouro negro ainda disponível é o que se esconde no Golfo de Maracaibo. E é o tipo de petróleo – o “petróleo pesado” – que mais faz falta à indústria americana. E que com o embargo dos Estados Unidos ao Irã, este petróleo, no mercado internacional, tornou-se extremamente caro. E o disponível na Venezuela está a apenas três dias de viagem das refinarias do Texas. Enquanto que, o importado do Oriente Médio leva quase três meses para fazer o percurso.

O único problema é que os venezuelanos não estão mais dispostos – como o estiveram no passado – a entregar o petróleo de graça. A solução: uma Tormenta no Caribe. É o que talvez se aproxime. Outra vez, o problema é o petróleo.

A Tormenta no Deserto custou mais de um milhão de vidas e aproximadamente 150 bilhões de dólares. Um investimento humano e monetário fantástico que certamente deve ter dado um significativo retorno para os que o sustentaram. Quanto custará – em vidas humanas e em recursos materiais - uma invasão à Venezuela? A indústria petroleira e a de armamentos devem estar fazendo seus cálculos. Se a opção bélica for vantajosa, certamente acontecerá. A diferença é que não será mais transmitida pela CNN, via televisão a cabo. Ela será transmitida pela internet e um megaespectáculo de luzes, cores e sons que, mais uma vez, abafarão o sofrimento humano que ela comporta. É difícil ser humano num mundo dominado pela máquina do petróleo. É doloroso pensar...