domingo, 29 de setembro de 2019

A fé remove montanhas


Como diagnosticado argutamente no final dos anos sessenta pelo pensador francês Guy Debord, vivemos numa “sociedade do espetáculo” onde, o importante, não é ser, mas aparecer.

Nos anos oitenta, no auge do poder da comunicação televisiva, o objetivo de toda a pessoa que ansiava por êxito era, como afirmava Andy Warrol, alcançar os “quinze minutos de fama”. Com o surgimento dos reality shows, esse desejo parecia tornar-se acessível, se não a todos, como profetizara o astro da arte pop, pelo menos a todo aquele e aquela que estivesse disposto a expor a sua vida pessoal até a mais recôndita intimidade ao voyeurismo de um público que projeta na fama efêmera de pessoas alçadas do anonimato ao estrelato, o seu desejo inconsciente de parecer aquilo que nunca alcançará ser.

Com a aceleração da comunicação e a necessidade, impulsionada pelo capitalismo, de transformar o espetáculo em produto, os iniciais “quinze minutos de fama” foram reduzidos a “cinco minutos” onde, no dizer de Menito Ramos, cada um atropela o outro para alcançar os aplausos no final. Mas, no capitalismo, onde time is money, cinco minutos é muito tempo e, para alcançar a fama, as pessoas tem que “se virar nos trinta” que decidem do seu êxito ou fracasso.

As novas tecnologias da comunicação e, nelas, as redes sociais, reduziram ainda mais o tempo. Um bom viral, meme ou gif, tem a duração de, no máximo, sete segundos dos quais pode resultar a piada engraçada que consagra ou desgraça a vida dos personagens.

A religião, como parte desta cultura, também entrou na lógica do espetáculo. Seguindo o padrão do televangelismo norte-americano, por todo o mundo e em todos os espectros religiosos surgiram personalidades religiosas midiáticas. E a religião, seguindo a lógica do capitalismo, se tornou um grande espetáculo onde não importa a fé, mas a fama que se transforma em grana justificada pela teologia da prosperidade ou pelo neopelagianismo. Cultos, pregações, shows, curas, exorcismos, testemunhos... tudo passou a ser tratado como um produto a ser vendido a um expectador ávido do extraordinário como forma de superar a sua real insignificância quotidiana. A parresia se transformou em capacidade de convencer incautos dos poderes do pregador sobre Deus e a fé em ignorância que aceita o espetáculo como realidade concretizando a profecia de Guy Debord de que “no mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso”.

A fé é capaz de transplantar árvores de um lugar para outro. E também de remover montanhas. Já o dizia Jesus. Hoje, na sociedade do espetáculo, uma falsa compreensão de fé está removendo montanhas de dinheiro do bolso dos pobres para o bolso de espertalhões que manipulam o desejo de fama e sucesso inoculado pelo capitalismo.

É preciso voltar à fé de Jesus que a descreve como a entrega total a Deus sem esperar em troca nenhuma recompensa, nem material e nem moral. É preciso atuar de modo que, no final de nosso percurso de vida, depois de termos feito tudo o que está a nosso alcance, só nos caiba dizer diante de Deus: “Somos servos inúteis, fizemos apenas o que devíamos fazer”. E aí nossa fé alcançará a sua plenitude.
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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Eles têm Moisés e os profetas.


Há poucos dias o Brasil assistiu com espanto as declarações de um Procurador do Ministério Público de Minas Gerais afirmando ser impossível viver com um salário “miserê” de 24 mil reais. Segundo ele, “todo mundo já verificou que é um salário relativamente baixo. Sobretudo para quem tem mulher e filho.” Em sua fala, ele expressa que, além de reduzir os gastos, se sentia ameaçado em sua saúde: “Estou deixando de gastar R$ 20 mil de cartão de crédito e estou gastando R$ 8 mil. Pra poder viver com os R$ 24 mil. Eu e vários outros já estamos vivendo à base de comprimido, à base de antidepressivo. Estou falando assim com dois comprimidos de sertralina por dia, e ainda estou falando deste jeito.”

Mas o incrível da fala do Procurador é a justificativa para a sua demanda de aumento salarial: “Eu, infelizmente, não tenho origem humilde. Eu não sou acostumado com tanta limitação. Talvez eu seja até mal visto porque aqui tá cheio de gente que diz que nós somos perdulários. Tá cheio de gente aqui dizendo que nós ganhamos muito, que temos de economizar. Mas é gente que não gasta um centavo, só vive economizando.”

Para o Procurador, na sociedade brasileira existem dois tipos de pessoas com naturezas diferentes. Os de origem humilde, acostumados a viver com pouco, e os de origem aquinhoada, acostumados a viver com muito. Estes necessitam continuar recebendo mais ainda, pois não podem viver com menos. E os que ganham menos, não precisam receber mais, pois estão acostumados a viver com pouco. É natural que seja assim...

Na real, o Procurador em questão recebeu, nos últimos meses, em média, 60 mil reais por mês. Ou seja, mais de sessenta vezes o salário mínimo nacional. Pergunto-me: o que leva à naturalização de uma situação tão desigual?

Há várias hipóteses... A primeira, a herança feudal de um mundo desigual onde os servos serão sempre servos e os nobres sempre nobres. Ou a cultura escravagista ainda encravada na sociedade brasileira de que o filho do ventre escravo será escravo até a sua morte. Cultura que nem a Lei Áurea declinou de abolir ao negar dar condições dignas para os escravizados e seus descendentes. A geografia de nossas cidades atesta a divisão social que perdura de geração em geração.
O que diz a nossa fé sobre isso? O Evangelho é claro: o rico esbanjador que nega partilhar a sua comida com o pobre que bate à sua porta irá arder para sempre no fogo do inferno. E não há remédio para tal pecado. É duro. Mas é a palavra do próprio Jesus afirmando que esta é a decisão de Deus. E a razão é simples: “Eles têm a Moisés e os profetas, que os escutem”. Através deles, o caminho da salvação, que consiste em cuidar daquele que está caído por terra, já foi pronunciado e disposto para todos.

Mas o mais duro da parábola de Jesus é o final, quando Ele afirma, pela boca de Abraão, que, para aqueles que não socorrem os famintos, não adiante nem enviar alguém ressuscitado dos mortos. Ora, quem é que ressuscitou dos mortos? Jesus, é claro. Então, afirmar que se crê em Jesus ressuscitado e não se atende às necessidades dos pobres, é uma contradição insuperável. Sem atenção ao faminto, ao sedente, ao nu, ao prisioneiro, ao doente..., não há verdadeira fé em Jesus Cristo, mesmo que se proclamem aos céus centenas de profissões de fé e milhares de Aleluia. O fosso é intransponível. Mas há Moisés e os profetas. Felizmente.
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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

A Lei de Gérson


O nome completo é Gérson de Oliveira Nunes. Nasceu em 11 de janeiro de 1941, em Niterói, RJ. Jogou pelo Flamengo, Botafogo, São Paulo e Fluminense conquistando, em todos eles, vários campeonatos. Com a seleção nacional de futebol foi tricampeão no México em 1970. Sua especialidade eram os dribles curtos e os lançamentos longos, precisos, milimétricos, utilizando sempre o pé esquerdo. Era o “canhotinha de ouro”. Gerson está, sem dúvida, entre os mais importantes jogadores da história do futebol brasileiro.

Mas Gerson é lembrado também por uma expressão que ficou colada ao seu nome: a Lei de Gérson. Ela tem origem numa propaganda de cigarro veiculada em 1976. Nela, o jogador aparecida dando uma entrevista a um jornalista e, nela, fumava determinada marca de cigarro e justificava sua escolha dizendo: “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!”

No saber popular, a fala do personagem passou a ser entendida como um estímulo a levar vantagem em tudo, independente dos meios utilizados para tal. Associada ao “jeitinho brasileiro”, ela se tornou símbolo da propensão à desonestidade, à corrupção e ao mau-caratismo assumido como algo positivo na cultura brasileira. Ser brasileiro é ser malandro, é levar vantagem em tudo.

A onda de moralismo e de caça aos corruptos que teve sua primeira irrupção no fim da década de 1980 com a “caça aos marajás” pelo Marajá da Alagoas, hibernou nos anos neoliberais do FHC e renasceu como instrumento de desestabilização dos governos petistas no início do século XXI, parecia desmentir a Lei de Gérson. Nas duas últimas décadas, o combate à corrupção se manteve como principal tema dos noticiários e  principal mote de candidatos e partidos que almejavam o poder. E não se queria apenas tirar o país a limpo. Era precisa fazê-lo com a força de um lava-jato: jogar o lodo e a sujeira para o ralo da história como o mostravam os cenários do noticiário noturno de maior audiência da televisão brasileira.

Os dias passaram e os que queriam acabar com a Lei de Gérson chegaram ao poder. E, mais breve do que se desejaria, damo-nos conta de que todo aquele discurso anticorrupção era apenas mais uma expressão da famosa Lei de Gerson. Era apenas um jeito de levar vantagem em tudo. Para uns, era um estribo para alçar-se no lombo do poder para beneficiar os próprios filhos, os familiares, amigos e parceiros de negócios. Para os investigadores e juízes da Lava Jato, um modo de ganhar fama e vender palestras e assessorias milionárias. Para outros ainda, uma forma de esconder e potencializar a bandidagem miliciana na qual sempre chafurdaram.

Gérson tinha razão? O brasileiro só quer levar vantagem em tudo? Às vezes sou tentado a pensar que sim. Esperançosamente, no entanto, afirmo que não. Talvez as elites brasileiras sofram da Síndrome de Gérson. O povo, na sua maioria, é honesto. Até porque o povo sofre as consequências da Lei de Gérson praticada pelas elites.

Como cristão, fico com o chamado de Jesus. Em meio a tantas pessoas que tentam tirar proveito do dinheiro mal havido, há um princípio fundamental: “Não se pode servir a Deus e ao dinheiro”. Ou, como dizia Deus através do profeta Amós àqueles que maltratavam os humildes e pisavam sobre os pobres da terra: “Nunca mais esquecerei o que vocês fizeram.
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segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Jogo ou competição


Gosto muito de futebol. Muito corri atrás da bola em minha vida. Desde criança, junto com meus irmãos, primos e vizinhos. No pátio da casa, na rua, na escola. Todos os lugares eram adequados para a bola. Na adolescência e juventude, então, era quase um vício. Futebol de campo e de salão. Não era um craque. Mas garantia a titularidade, às vezes na ponta direita e às vezes de centroavante. Duas funções que no futebol atual não existem mais. Valdomiro e Dario eram os craques a imitar. Lamento que os jovens amantes de futebol não os tenham conhecido.

Há alguns anos, por problemas físicos, fui obrigado a deixar os gramados e a quadra. Mesmo sem me identificar com nenhum – a cada campeonato escolho um time para torcer naquele ano! – continuo apreciando o esporte bretão que virou brasileiro e hoje é alemão.

Das muitas memórias da carreira amadora, uma me é especial. É antiga... Há uns vinte e cinco anos, estava eu jogando futebol com um grupo de amigos oriundos de vários países. Um pouco por habilidade e um pouco por sorte, fiz um “gol de placa”. Bola cruzada na área e, de voleio, acertei um petardo no ângulo. Golaço! Todos os jogadores africanos, tanto os de meu time como os do time adversário, vieram comemorar comigo! Na hora não entendi. Mas depois pensei: eu estava competindo; eles estavam jogando. Para mim o importante era ganhar o jogo. Para eles, ver um gol bonito. São dois modos de pensar que tem sua origem em duas culturas diferentes. A minha, a ocidental, do individualismo, da competição, da vitória sobre o adversário. A deles, a africana, da coletividade, da colaboração, de não deixar ninguém para trás.

São dois paradigmas dos quais me dei conta no futebol. Mas eles estão presentes na sociedade. E em todos os seus âmbitos. A lógica do capitalismo é “cada um por si” e “que vença o mais forte”. Os que caem, os que ficam para trás, são vistos como competidores a menos. Dentro desta lógica, quanto menos gente na competição, melhor.

O mundo da religião também pode se deixar guiar por esta lógica. Para alguns religiosos, as pessoas que discordam de algum ponto da moral ou da doutrina são taxadas de hereges a expulsar da Igreja. Os que pecaram, devem ser impedidos da participação nos sacramentos. É a lógica da exclusão pregada por elites sectárias que se pretendem donas de Deus e da salvação.

Jesus pensa diferente. Para ele, o bom pastor é aquele que deixa as noventa e nove ovelhas e vai em busca daquela que está perdida. Deus é a mulher que varre toda a casa em busca da moedinha que se perdeu e, quando a encontra, faz a festa com as amigas. O verdadeiro Pai é aquele que se alegra mais com o filho mais novo que errou e voltou para casa do que com o filho mais velho que sempre fez tudo certinho.

A vida em sociedade não é competição, mas jogo que constrói o espaço para a convivência inclusiva de todas as pessoas. Religião não é corrida aonde só os santos chegam aos céus, mas comunhão onde cada um cuida das feridas dos outros para que todos possam comemoram juntos a vitória da vida.
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segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Ruinas de um futuro que nunca existiu


Uma das coisas que mais incomoda os cidadãos contribuintes são as obras inacabadas ou inúteis. É algo endêmico em nosso país. Tanto em nível federal, como estadual e municipal. Usinas nucleares em construção há mais de cinquenta anos; estradas que foram engolidas pela floresta ou pelos lamaçais antes de serem concluídas; pontes em lugares onde não há rios; sistemas de transporte urbano que não respondem às demandas da população; hospitais sem equipamentos; escolas gigantescas onde há poucas crianças ou salas de aula sem professores onde são muitos os que desejam estudar; estádios faraônicos onde não há times de futebol; aeroportos onde sequer cidades existem... E a lista poderia continuar ad infinitum.

Vendo tais situações, logo uma resposta nos vem à mente: corrupção! É verdade. Em tudo isso há muito de corrupção. Obras que foram iniciadas sem necessidade, apenas para satisfazer o apetite dos empresários financiadores de campanha. Ou obras que se prolongam para justificar aditivos orçamentários que perfazem uma soma maior que o plano original. E com o conveniente de que os aditivos não precisam passar por licitação. Basta uma decisão da Bic do governante de plantão para estufar as bolsas dos amigos e amigas.

Mas há algo mais profundo e grave nisso tudo. A falta de planejamento. Obras inacabadas são sintoma da falta de um projeto de nação. Tudo é feito a esmo, sem preocupação com o que queremos para o amanhã de nossos municípios, estados e nação. E como não há um sonho de futuro que nos una, cada governo vende para a população um pseudoprojeto que promete começar tudo do zero como se nada antes houvesse sido feito. E como, de fato, não há projeto de governo, cada administrador faz o que lhe dá na cabeça ou aquilo que lhe demandam seus financiadores ou o grupo econômico ou social que ao qual está vinculado. E os recursos públicos se vão pelo ralo sem que perspectivas de esperança se abram para o povo.

Tal modo de fazer chega ao seu paroxismo quando governantes assumem com o confessado propósito de destruir tudo o que foi feito antes. “Antes de mim o caos” parece ser o que anima pseudomitos a se apresentarem como salvadores da nação. Desmantelar empresas exitosas, anular os projetos em andamento, sucatear o serviço público governando de improviso conforme as emoções do momento que traduzem pulsões de ódio e destruição. O resultado para esse modus operandi é o de um país em chamas. Tanto físicas como sociais. As físicas já estão ardendo na Amazônia. As sociais, já ardem há muito tempo, tanto no campo como na cidade e nas periferias. E, infelizmente, tendem a aumentar. E podem se tornar incontroláveis.

Basta trocar os governantes? A mentalidade mágica na qual muitos ainda vivem, diz que sim: “se não dá certo a gente tira!” Mas não é assim. O que carecemos é de planejamento. E planejamento a longo prazo. O próprio Jesus já dizia isso. Não se começa uma obra sem saber se se tem recursos para ir até o fim. E não se começa uma disputa se não temos certeza de ter mais forças que nosso adversário. Se não temos certeza disso, é melhor não arriscar.

E tudo tem que estar sustentado por uma experiência de fé. É ela que nos dá a coragem de empreender e ir até o fim. Tudo o mais é improviso. E caminho para o desgaste e fracasso. Que tenhamos fé, coragem e cálculo para desenhar e construir uma nação onde não haja mais ruínas de um futuro que nunca existiu.