domingo, 16 de dezembro de 2018

Sobre suicídios e suicidas: uma velha história sempre atual

Meu pai era um ótimo contador de histórias. Sabia por onde começar, dar os volteios, fazer o suspense, apresentar as diversas alternativas de sequência e aí arrematar com um bom final. E, mesmo tendo por língua materna e habitual o vêneto, as histórias eram sempre contadas em bom português. Até hoje eu me pergunto o por quê de seu Avelino escolher a segunda língua para contar as  melhores histórias. Claro que, no meio de cada conto, sempre deslizava sorrateiramente palavras e expressões em vêneto que davam à história um colorido todo especial. 
Algumas destas histórias as tenho até hoje na memória. Uma das mais interessantes era a do rapaz que queria se suicidar. O tema era difícil, pois o suicídio, no meio dos descendentes de italianos, tinha muito de tabu. Quem se suicidava, entre outras coisas, além de não ter velório público, era enterrado fora do cemitério. Na Linha Aimoré, lá onde eu me criei, no interior de Vila Flores, antes que se fizesse a atual ampliação do cemitério, havia um "anexo" em que eram sepultadas as crianças que morriam antes de serem batizadas, os que não eram católicos e os que se suicidavam. Ainda hoje lembro das três cruzes que havia naquele cercadinho ao lado do Campo Santo e da certeza que todos tinham de que as almas daquelas três pessoas estavam condenadas eternamente ao fogo do inferno. Era assim que se pensava... por isso, fazer piada de suicida, exigia uma boa dose de arte.
Sem a arte de meu pai e por ter que fazê-lo por escrito, reproduzo apenas o script da história do rapaz que, por razões que seu Avelino sempre deixava no entredito, queria se suicidar. A decisão dele era definitiva: não queria mais morrer e, sabendo de outros que haviam intentado tal desdita e haviam fracassado e se amostravam como mais confiáveis: um tiro na cabeça, o enforcamento em uma alta árvore e uma boa dose de veneno. Para não fracassar, o rapaz resolveu combinar as três possibilidades: corrependido de não terem morrido, buscava um meio seguro de alcançar seu objetivo. Depois de muito pesquisar e eliminar métodos de suicídio que não lhe pareciam seguros, chegou a três que se lhe nseguiu clandestinamente uma boa dose de estricnina, comprou um revólver novo carregadinho com sete balas para que não pudesse haver erro e uma corda soga novinha.
Tudo meticulosamente planejado, colocou a estricnina numa garrafa de água meticulosamente armazenada no bolso, fez a forca com a corda e molhou-a para dar-lhe mais resistência. Com a ajuda de uma escada, subiu em uma árvore, sentou-se no galho, empurrou a escada para o chão para não haver nenhuma tentação de retorno. Com todo cuidado, prendeu a corda firmemente ao galho e passou a forca no pescoço. Tudo pronto como no
passo-a-passo planejado. Agora, só faltava o ato final que envolvia os três componentes: a estricnina, a forca e revólver. Sorveu a garrafa de água envenenada em rápidos goles, deslizou do galho até a corda esticar e começar a apertar violentamente o pescoço e, antes que a falta de ar o impedisse de movimentos, sacou o revólver e desferiu um tiro contra a cabeça. E aí entrou em cena a fatalidade: A mão trêmula pelo sufocamento fez com que o tiro, ao invés de atingir a cabeça como o planejado, desviou para cima e acertou a corda soga que, esticada pelo peso do corpo, se rompesse fazendo com que o pobre infeliz tombasse rotundamente no chão e, com o golpe, vomitasse o veneno que ainda estava se acomodando no estômago. Resultado: o rapaz fracassou em seu intento de deixar esta vida de forma voluntária e, como a grande maioria dos suicidas, arrependeu-se e nunca mais tentou se matar.
Lembro desta história neste final de ano em que começamos a olhar para trás e tentar compreender a tentativa de suicídio que, como nação brasileira ensaiamos neste último ano utilizando os três métodos mais confiáveis para se acabar com uma democracia: a deslegitimação da representatividade política, a eleição de pessoas assumidamente autoritárias e a reabilitação dos militares como condutores da vida pública. Oxalá tenhamos a mesma sorte que o rapaz e a combinação dos três fatores leva a que um anule o outro.
Ah! A árvore da história que meu pai contava não era uma goiabeira. Lá na serra não havia goiabeiras. A árvores da história era uma araucária. E Jesus não subia nela...

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Os Budas de Bamiyan e o Cristo Redentor

Bamiyan é um vale como outros tantos vales no centro do distante Afganistão. No ceu centro, uma pequena vilazinha à beira da estrada que liga Herat, na fronteira com Iraque, à capital Kabul. Seguindo em direção ao Oriente, depois de Kabul, a rota segue, para o sul, em direção a Islamabad, já no Paquistão e mais adiante, para a Índia. Ou então, de Kabul, outra alternativa é pender para o Norte e,  transitando entre os vales que separam o Tibet de Xingiang, chegar até a China, o Império do Centro. É a Rota da Seda que, durante milênios, fez a conexão entre o Oriente e o Ocidente. Marco Polo, no final do séc. XIII e início do séc. XIV, fez o percurso e tornou-o conhecido no mundo mediterrâneo. Hoje, a China, em seu anseio de firmar-se como liderança econômica mundial, está reconstruindo a Rota da Sede não mais com camelas, mulas e cavalos mas com modernos sistemas de transporte ferroviário, rodoviário e naval.

Voltando a Bamiyan... O que torna este vilarejo tão importante e tema deste nosso texto é que, nas encostas dos vales que a circundam, estavam as famosas estátuas dos Budas gigantes de Bamiyan. A maior das duas tinha 54 metros de altura. A outra, 36 metros. Escavadas dentro das cavernas, sua construção teve início no séc. VI quando a região era ocupada por dezenas de mosteiros budistas. No ano de 630, um chinês budista que passou pelo local descreveu-as como “decoradas com ouro e pedras preciosas”. Com o passar do tempo e a destruição dos mosteiros pela invasão árabe do séc. VIII, o ouro e as pedras preciosas foram levadas para o tesouro de alguma corte da região e só resistiram os Budas de pedra impávidos em suas cavernas dominando a região habitada pelos pashtuns e alternadamente dominada pelos impérios persa, árabe, turco e, finalmente, de 1830 a 1919, pelo Império Britânico. Com a saída dos britânicos, a região viveu décadas de instabilidade até que, em 1978, um golpe militar, apoiado pela então União Soviética, instalou uma república socialista no Afganistão.

Em plena Guerra Fria, o novo governo foi visto pelos Estados Unidos como uma ameaça para seus interesses na região. Com o apoio do Paquistão e da Arábia Saudita, o serviço secreto norte-americano começou a arregimentar, treinar e municiar grupos de opositores ao novo governo pró-soviético. Para dar-lhe coesão ideológica, fez recurso ao fundamentalista islâmico sunita. Nasceram assim os talibãs ou mujahidin. Traduzidas, estas duas palavras significam estudante ou guerreiro santo. Professando uma interpretação literal do Al Corão, financiados, armados e assessorados pelos Estados Unidos, lançaram-se à luta para expulsar os invasores soviéticos e seu regime ateu e construir um Emirato Islâmico na região. A operação foi a mais cara da Guerra Fria norte-americana e concluiu com a derrocada, em 1997, do governo pró-soviético e a instauração do Emirado Islâmico do Afeganistão. Nele, os estudantes do livro impuseram a sharia como legislação reguladora de todas as instâncias da vida do país. E, como manda a sharia, toda representação humana ou divina, deveria ser destruída. Entre estas representações, a mais simbólica, os Budas gigantes de Bamyian, tornaram-se alvo dos talibãs.

Os apelos da UNESCO e a pressão diplomática dos países ocidentais não foram suficientes para demover os guerreiros. Pelo contrário, tal ato tornou-se, para eles, simbólico do seu poder e de sua autonomia ante os antigos mestres. Para financiar a compra de armas não mais necessitavam de ajuda americana. O comércio do ópio lhes fornece os recursos de que precisam. Em março de 2001 as duas gigantescas estátuas foram transformadas em disformes blocos de pedra pela explosão de centenas de quilos de dinamite. Tudo filmado e disponibilizado na internet. Era o fim das estátuas dos Budas gigantes de Bamyian. O governo norte-americano lamentou o episódio mas foi incapaz de reconhecer que aquela barbárie só se tornou realidade porque, na década anterior, havia colocado armas na mão de fundamentalistas religiosos que, ao darem-se conta de seu poder, não mais obedeciam às ordens de seus antigos patrões e resolveram continuar o seu percurso fundamentalista independentes de seus antigos tutores.

O governo japonês se dispôs a reconstruir as estátuas assim que a guerra na região terminar. Talvez demore... mas será uma reconstrução importante. Afinal, aquelas duas estátuas talvez só sejam comparáveis, em seu poder simbólico, á estátua da Liberdade na entrada do porto de Nova Iorque e à do Cristo Redentor do alto do Morro do Corcovado, no Rio de Janeiro. A estátua da Liberdade está bem protegida pelos serviços de segurança norte-americanos. Já a do Cristo Redentor, talvez tenha que ser protegida antes que seja dinamitada pelas milícias fundamentalistas que começam a ser formadas no Brasil. Oxalá que não..., mas é bom precaver-se!

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O Evangelho de Satanás


A cada ano, geralmente no tempo da Quaresma ou do Natal, quando os sentimentos religiosos estão mais à flor da pele, a mídia sensacionalista mancheteia a descoberta de um novo Evangelho que durante milênios teria sido ocultado pela Igreja. Com o aval de um “cientista” de um instituto de pesquisa que ninguém sabe onde se localiza, sites sensacionalistas, jornais precisando chamar a atenção de leitores, emissoras de televisão em crise de audiência e rádios de duvidável credibilidade vão passando a informação adiante sem se perguntar da confiabilidade das fontes e da fiabilidade da informação. As redes sociais se encarregam de fazer o resto e logo uma multidão de pessoas está convicta de que descobriram uma namorada, a esposa ou um filho de Jesus.

Uma pesquisa mais atenta sobre o tema leva à conclusão de que se trata, na maioria dos casos, senão todos, da exploração requentada de uma cópia falsificada de um suposto fragmento de um texto apócrifo do séc. V que foi descoberto numa biblioteca do séc. XII!... Mas muita gente acredita e passa a escrever textos e textos sobre a hipocrisia da Igreja que tenta ocultar a verdade sobre Jesus e os youtubers do sensacionalismo produzem vídeos e mais vídeos que incautos assistem e compartilham em suas redes sociais na ânsia de convencer a mais e mais pessoas de que aquilo é verdade.

Por que tudo isso acontece? Por um lado, como já dissemos, pela necessidade da mídia em produzir conteúdos que chamem a atenção do público. E, conteúdos religiosos, principalmente quando tem um viés sensacionalista e mexem com a imaginação, sempre vendem bem. Por outro lado, o dos consumidores deste tipo de informação, está o desejo do novo, do extraordinário, do inaudito, do nunca visto que possa talvez preencher de uma vez por todas o vazio das pessoas carentes de sentido em meio a um mundo individualista e sensacionalista. Na verdade, este tipo de informação, nada diz a respeito de Jesus. Mas diz muito a respeito das pessoas que as buscam e nelas projetam seu eu e suas próprias necessidades, reais ou imaginárias.

Lembrei destes fatos ao ler nesta segunda-feira o texto da Liturgia Diária da Carta de Paulo aos Gálatas onde diz: Admiro-me de terdes abandonado tão depressa aquele que vos chamou, na graça de Cristo, e de terdes passado para um outro evangelho. Não que haja outro evangelho, mas algumas pessoas vos estão perturbando e querendo mudar o evangelho de Cristo. Pois bem, mesmo que nós ou um anjo vindo do céu vos pregasse um evangelho diferente daquele que vos pregamos, seja excomungado. Como já dissemos e agora repito: Se alguém vos pregar um evangelho diferente daquele que recebestes, seja excomungado. Será que eu estou buscando a aprovação dos homens ou a aprovação de Deus? Ou estou procurando agradar aos homens? Se eu ainda estivesse preocupado em agradar aos homens, não seria servo de Cristo. Irmãos, asseguro-vos que o evangelho pregado por mim não é conforme a critérios humanos. Com efeito, não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por revelação de Jesus Cristo. (Gl 1,6-12).

É um texto forte. Paulo excomunga da comunidade aqueles que pretendem alterar o Evangelho por ele anunciado. Nem que fosse um anjo que anunciasse um Evangelho diferente do recebido por Deus, deveria ser excomungado!

Pobres dos autores dos apócrifos. E pobres dos divulgadores de apócrifos, tão comuns, infelizmente, em nossos dias... Pobres daqueles que, mesmo ouvindo “amai-vos uns aos outros”, bradam a todos os ventos “armai-vos uns contra os outros”; pobres daqueles que, mesmo lendo “não matarás”, pregam a pena de morte; pobres daqueles que, ao invés de oferecer a outra face como ensinou Jesus, semeiam o ódio e o terror entre os pobres e desprotegidos; pobres daqueles que ao invés de repartir com os milhões de irmãos necessitados e famintos, acumulam insensatamente suas riquezas que as traças e a ferrugem hão de comer; pobres daqueles que do alto dos telhados, ao invés de proclamar a verdade, espalham mentiras, calúnias e fake news contra seus adversários; pobres daqueles que ao invés de descobrir que, em Jesus, não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, discriminam as pessoas por sua origem étnica, condição social ou de gênero; pobres daqueles que percorrem mares e terras para fazer um prosélito e, depois que ele dizima em sua igreja, transforman-no num “filho do inferno duas vezes mais infernal” do que seus próprios pastores... Pobres enfim daqueles que levantam templos em honra a Deus e destroem o templo mais sagrado que é o corpo do irmão e da irmã.

É um novo Evangelho que está circulando, inclusive dentro de muitas igrejas. E, como todo apócrifo, perigoso porque se disfarça com o discurso da verdade e da religião. Como todo apócrifo, precisa ser desmascarado. E, caindo a sua máscara, deixar que se divise o verdadeiro rosto dos que o propagam para semear a discórdia e a divisão, a mentira e a morte, os frutos daquele que divide, os frutos do diabo, satanás.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A opção é sua!


Ser de direita ou de esquerda, é uma opção política. Em ambos os casos, nada mais do que uma opção política. A primeira privilegia o indivíduo e o capital. A segunda - a esquerda - privilegia o comunitário e o trabalho. Entre as duas opções, há vários tons, tanto de esquerda como de direita. Os mais conhecidos: centro-esquerda e centro-direita. E tem também os que se dizem de "centro": nem esquerda e nem direita. Não sei muito bem o que isto significa. Mas, se há alguém que se autodenomina assim, é porque isso faz sentido para ele...
Ser democrata ou ser fascista, já não é mais uma questão política. Ser democrata ou ser fascista, é uma opção ética. É uma escolha entre a convivência humana baseada no reconhecimento do outro enquanto sujeito de direitos e deveres. Essa é a opção democrata. Já os fascistas, na base de sua opção está a afirmação de que há seres humanos que são superiores e outros que são inferiores e que os superiores tem o "direito" de dominar e até eliminar os inferiores.
No presente processo eleitoral, temos candidatos de esquerda e de direita. E de centro esquerda e de centro direita. E candidatos que se dizem de centro... João Amoedo, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias, por exemplo, são candidatos de direita. Boulos e Haddad são assumidamente de esquerda. Ciro se diz e pode ser dito de centro esquerda. Marina e Daciolo, não sei como classificá-los... Os argumentos por eles apresentados dificultam uma identificação clara de seu posicionamento político.
Todos eles têm algo em comum: lançaram-se ao pleito tentando conquistar votos da sociedade brasileira. E todos eles, pelos que pudemos constatar, aceitarão os resultados da eleição.
Minha opção política, como é do conhecimento de todos os que observam minhas postagens, é de esquerda. Privilegio o comunitário e os trabalhadores e trabalhadoras acima do individual e do capital. É uma opção que tomei e mantenho a partir dos princípios humanitários de minha formação pessoal e de minhas convicções religiosas.
E essa minha opção pelo comunitário e pelos pobres inclui a opção democrática. Creio que a convivência com o diferente e a resolução das diferenças deve dar-se pelo diálogo e, no caso da administração do poder e do Estado, pela disputa democrática.
Baseado nisso, respeito os que fazem a opção pela direita. Admiro o João Amoedo, o Meirelles e o Alckmin que, mesmo não "decolando" nas pesquisas eleitorais, mantém-se na disputa e apresentam argumentos para tentar convencer os eleitores. Da mesma forma os candidatos de esquerda. Boulos, Haddad, Ciro... certamente aceitarão os resultados eleitorais.
Mas há um candidato que, desde o início da campanha apresenta-se como um candidato anti-democrático. Afirma não conhecer nada de economia. E nem se interessa por isso. Seu único objetivo é acabar com as pessoas e grupos sociais que se apresentam, a seu modo de ver, como incompatíveis com sua proposta de sociedade. Ontem, dia 28 de setembro, este candidato, em entrevista a um apresentador de televisão também de tendência fascistóide, afirmou explicitamente que não irá aceitar outro resultado que não seja o da sua eleição. Essa postura já não é uma postura política. É uma postura ética inaceitável por quem se proclama do campo democrático.
Essa afirmação do candidato do qual declino pronunciar o nome é um teste para a maturidade de nossa democracia. Se a democracia brasileira sobreviver a essa reivindicação autoritária, ela terá dado um passo acima no patamar da convivência democrática.
E, é o que quero ressaltar, depende da nossa disposição de eleitores. O tamanho da derrota do candidato antidemocrático será a medida da capacidade democrática da sociedade brasileira. Cada voto a menos dado ao inominável, será um voto a mais para a democracia brasileira.
Vote em quem manda sua opção política. Vote em candidatos de direita ou de esquerda. Só não vote no candidato antidemocrático. Com a democracia não se brinca e nem se tergiversa. É uma questão ética.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

De quanto é o juro?


O fato é real. Aconteceu com uma senhora conhecida minha. Mas com certeza aconteceu a cada dia com outras tantas pessoas no Brasil. Pode até ter acontecido com algum conhecido seu.
No caso que vou contar aqui, trata-se de Dona Cidinha. Uma mulher pobre de um bairro popular de uma cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. Dona Cidinha é uma mulher pobre. E além de pobre, é negra. Hoje está com em torno de 70 anos. Mas aparenta ter mais fruto de uma vida de muito trabalho e sofrimento. Desde a infância Dona Cidinha trabalhou em “casa de família”. Como milhões de mulheres, trabalhava e morava na casa dos patrões. Isso até ter a primeira filha. Quando a menina nasceu, a patroa disse que não podia  morar na casa com a menina. Se quisesse continuar a trabalhar, tinha que deixar a menina com alguém. E foi com a avó que ela deixou a menina. Quando veio a segunda criança, a mesma coisa. E também com a terceira. E as crianças foram sendo criadas pela vó e sustentadas pelo trabalho de Dona Cidinha. Até o dia em que a patroa disse que não precisava mais do serviço de Dona Cidinha. Cansada do Brasil, a patroa ia se mudar para os Estados Unidos. E lá se foi a patroa para Nova Iorque. E Dona Cidinha foi morar com a avó e as filhas que, a estas alturas, as duas mais velhas, já eram mães também.

Mas a desgraça maior de Dona Cidinha não foi perder o emprego. Foi saber que todos aqueles anos trabalhados na casa da patroa não tiveram Registro em Carteira e ela não teria nem Seguro Desemprego, nem Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Como recorrer à justiça se a patroa já não morava no Brasil? Nenhum advogado quis assumir a causa. Por sorte, Dona Cidinha, com a ajuda de uma Assistente Social, conseguiu encaminhar o Benefício Continuado por idade. Foi a salvação para ela, suas filhas e suas duas netas.

Mas a desgraça não tinha acabado para Dona Cidinha. Aos dois meses, a mãe de Dona Cidinha faleceu. E poucos dias depois uma de suas filhas também adoeceu e morreu. A outra se foi com um homem morar na fronteira. A terceira ficou porque doente estava e não podia trabalhar. E o dono da casa que a mãe de Dona Cidinha alugava aproveitou a ocasião para pedir o imóvel de volta. E de uma hora para outra Dona Cidinha se viu sem um lugar para morar, com uma filha doente e duas netas para cuidar.

Por sorte conseguiu nas proximidades uma pecinha para morar. Pequena, apertada, calorenta no verão e húmida no inverno. Mas era o que cabia no chuleado orçamento de Dona Cidinha. E ainda havia a água e a luz. E a comida e os remédios seus e da filha doente.

Tudo pareceu se resolver quando um dia Dona Cidinha foi ao banco retirar sua aposentadoria. A uma quadra do banco, uma moça a abordou e, com uma gentileza que Dona Cidinha nunca tinha recebido na vida, convidou-a a entrar na Financeira. E explicou-lhe que, se ela quisesse, poderia dispor imediatamente de dez mil reais. E que esse empréstimo seria pago em pequenas parcelas descontadas mensalmente de sua aposentadoria. E o primeiro desconto só seria feita em três meses. Tudo muito fácil, sem exigência nenhuma. Apenas uma cópia dos documentos e a assinatura nos papéis. Dona Cidinha não queria acreditar. Mas era real. Não havia qualquer dúvida. E ela aí viu a ocasião para fazer aquelas compras com que tanto sonhava, garantir os remédios para a filha e uma melhor alimentação para os netos.

Com um frio na barriga vazia e o coração a mil, Dona Cidinha mandou que preenchessem os papeis, assinou onde lhe mandaram e saiu da financeira com o dinheiro apertado dentro da sacola fortemente segurada pelas duas mãos. Foi para casa direto e no dia seguinte começou a implementar seus sonhos com o tão precioso dinheiro. Foram três meses de felicidade. A filha doente, com os remédios certos e a alimentação melhorada, se sentiu quase boa. As netas, com as roupas novas e os brinquedos, até melhoraram na escola. O problema começou no quarto mês quando começaram entrar os descontos na aposentadoria. Os quase mil reais do salário mínimo baixaram para pouco mais de seiscentos. E, no mês seguinte, baixaram ainda mais. E no terceiro, mais ainda. Dona Cidinha não entendia o porquê isto estava acontecendo. Foi à financeira onde tomara o empréstimo e lhe disseram que era por causa dos juros. “Juros? Mas que juros?”, perguntou ela estupefata. “Vocês não me disseram que ia ter juros!” “A senhora não perguntou!” respondeu a moça com um sorriso amarelo no rosto. E Dona Cidinha soube ali que a cada mês seu saldo iria diminuir por causa dos juros e que não havia nada a fazer, pois ela tinha assinado sem ler!

No quinto mês Dona Cidinha não pagou a conta da água. No seguinte, foi a vez da conta da luz atrasar. E também o aluguel que atrasou já pelo segundo mês. E o remédio não pode ser comprado. E a comida começou a faltar... Tudo porque não tinha perguntado de quanto seriam os juros a pagar.
Penso na triste situação de Dona Cidinha nestes dias em que um séquito de candidatos de todos os partidos passam por nossas portas, ruas, rádios, jornais, televisão e internet oferecendo mil maravilhas para hoje e para amanhã. Eles se parecem com a funcionária da financeira que ofereceu o empréstimo a Dona Cidinha. São só sorrisos e amabilidades. E dizem que tudo é fácil. Basta digitar o número deles e apertar “confirma”.

Não podemos fazer como a pobre Dona Cidinha e não perguntar de quanto será o juro a pagar por essas benesses que nos oferecem. O Brasil já gasta, hoje, 43,98% do dinheiro arrecadado com impostos no pagamento dos juros da dívida. Isso mesmo: quase metade do dinheiro que pagamos em impostos são destinados ao pagamento dos juros da dívida pública. E quem detém esta dívida? Os bancos, públicos e privados. E quem estabelece de quanto vai ser o juro da dívida?  Quem estabelece os juros da dívida é o COPOM, um organismo do Ministério da Fazendo composto, em sua maioria, por representantes do mercado financeiro, ou seja, dos bancos. Alguns membros do COPOM fogem a essa regra. Mas são a minoria. É a raposa cuidando do galinheiro. Imagina então, se colocarmos um banqueiro ou um seu representante para governar o Brasil? Os bancos vão estar com a faca e o queijo na mão para aumentar ainda mais a fatia dos impostos por nós pagos e por eles apropriados.

Antes de votar, então, busque ver qual é a proposta de política financeira de seu candidato. Mais concretamente, busque saber como ele vai tratar a dívida pública. Qual vai ser a política dele em relação ao Banco Central? Vai deixá-lo à mercê do mercado ou vai utilizá-lo como instrumento de política pública? É bom saber antes de digitar o número e confirmar, porque depois, quando ele começar a cobrar os juros, podemos ficar sem educação, sem saúde, sem saneamento, sem investimento em infraestrutura... E aí já não vai mais ter o que chorar! Será tarde demais!

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Que tal um Golpe de Democracia?

A origem do conceito – como não poderia deixar de ser – é francesa: Coup d’État. Dito assim, com a suavidade gaulesa, até parece uma coisa bonita, elegante, delicada: Coup d’État! Em português, foi traduzido literalmente: Golpe de Estado. Os ingleses, na sua mania de praticidade, nem se deram ao trabalho de traduzir a expressão para seu idioma. Utilizaram a versão francesa de modo que, em inglês, Golpe de Estado também se diz Coup d’État. De um lado e de outro do Canal da Mancha – ou do Atlântico, se preferirem – um Coup d’État é um Coup d’État. Já do outro lado do Reno, lá onde se fala a língua germânica, Golpe de Estado pode ser dito de duas formas. A mais breve, utilizada quando tudo acontece em poucas horas e sem muito sangue, diz-se Putsch. Rápido assim, quase que deslizando entre os dentes: Putsch! Já quando é violento, dura semanas, meses e tem como consequência a destruição de muitos bens e de muitas vidas, a palavra é bem mais solene e aterradora: Staatsstreich. Só de ouvir já dá medo! Em russo também soa assustador: gosudarstvennyy perevorot! Não sei se a sensação ao ouvir a expressão russa é de frio ou de ebriedade! Mas que é pesada, não há dúvida.

Mas voltemos ao sentido da expressão. Ela foi inventada por Gabriel Nodé no ano de 1639. Em sua obra Considerations politiques sur les coups d'Etat definiu o Golpe do Estado como a derrubada ilegal, por parte de um órgão do Estado, da ordem constitucional legítima. A primeira e a terceira parte da definição se relacionam entre si e são fáceis de entender. Golpe é quando alguém ou um grupo, de forma ilegal, toma o poder contra a lei e implanta uma nova lei. O detalhe importante na definição de Nodé está no elemento intermediário, ou seja, Golpe mesmo, no sentido estrito da expressão, acontece quando esta ruptura da ordem institucional e legal é feita por alguém que faz parte da estrutura do poder de Estado. Se só estivessem presentes o primeiro e terceiro elemento, Golpe poderia ser confundido por Revolução. Por isso os teóricos políticos do século XVII e XVIII aprofundaram o tema e explicitaram o implícito em Nodé: as Revoluções são as transformações da ordem institucional que vem de fora da estrutura do poder estatal. Revoluções acontecem quando pessoas ou grupos que nunca fizeram parte do Estado tomam o poder do Estado. Foi o caso da Revolução Francesa de 1789 onde a burguesia que não fazia parte do aparato estatal subverteu a ordem vigente e tomou o poder. O mesmo aconteceu na Revolução Russa de 1917 e em outras tantas revoluções populares que derrubaram sistemas oligárquicos de poder que excluíam do Estado a classe trabalhadora. O mesmo pode-se dizer da irrupção das mulheres nas democracias ocidentais no séc. XIX.

Voltando aos Golpes de Estado, eles podem dar-se de várias formas. O Golpe clássico, tão conhecido por nós latino-americanos, é aquele em que os militares – um poder do Estado – intervém destituindo a autoridade vigente e instalando em seu lugar outras pessoas ou grupos para exercer o poder. Mas existe também o autogolpe. Nele, o Presidente ou o Rei fecha o Parlamento e o Judiciário e torna-se a única autoridade da Nação. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Peru no ano de 1992, quando o então Presidente Alberto Fujimori, com o apoio das Forças Armadas, dissolveu o Parlamento e interveio no Judiciário. Existe também o Golpe Parlamentar quando o Legislativo, à margem da Constituição, utiliza sua força para depor um Presidente legitimamente eleito. É o que vem ocorrendo nos últimos tempos na América Latina com a deposição do Presidente Lugo no Paraguai em 2012 e com a Presidenta Dilma em 2016 no Brasil. E existe ainda o Golpe Judiciário quando este poder do Estado em sua máxima expressão, o Supremo Tribunal Federal, utiliza a interpretação da Constituição para destituir ou impedir alguém de assumir o poder. É o que aconteceu no Equador com o ex-Presidente Rafael Correa em 2016; com o ex-Presidente de El Salvador, Mauricio Funes, também em 2016; no Brasil, com o ex-Presidente Lula neste ano de 2018 e possivelmente, acontecerá com a ex-Presidenta Cristina Kirchner na Argentina. Este último modelo de Golpe é o Golpe 3.0 em que o Judiciário age com o apoio das polícias e dos Meios de Comunicação que, na maioria dos países, também são uma concessão do Estado.

Depois disso tudo, passo a explicitar a minha proposta de “Golpe de democracia”. E no Brasil ele é necessário e, a meu ver, viável. A Constituição de 1988 que rege a atual vida política brasileira, em seu Art. 1º, parágrafo único, afirma: “todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”. No caso das eleições, através do voto, esse instrumento da democracia representativa previsto na Constituição, os eleitores podem alijar do poder, por via pacífica, as elites e seus representantes que se apossaram do Estado – no Executivo, Legislativo e, sobremaneira, no Judiciário – e usam-no para manter a população e as riquezas do país sob o seu controle. Por isso, é preciso votar. Nada de abster-se, anular ou votar em branco. E é preciso votar distinguindo claramente quem faz parte da elite e quem faz, realmente, parte do povo. Analisar quais são os partidos que sempre votaram em defesa dos 1% que detém a maior parte da riqueza nacional e os que sempre votaram a favor da imensa maioria que vive no limite da pobreza e dos miseráveis da nação.

Se não fizermos essa mudança radical pelo “golpe democrático”, talvez em breve tempo tenhamos que fazer não um golpe, mas uma revolução democrática. E as revoluções sempre são muito mais sangrentas e custosas que os golpes. Mas elas se tornam inevitáveis quando os “golpes democráticos” não funcionam.

sábado, 8 de setembro de 2018

Violência, desigualdade e fé.


Os dados são da Organização Mundial da Saúde: o Brasil é o nono país mais violento do mundo. Mata-se no Brasil cinco vezes mais que a média mundial. No cômputo global, a média da taxa de homicídios é 6,4 para cada 100 mil pessoas. Na África, a média é de 10 mortes a cada 100 mil, contra apenas 3,3 na Europa. O continente mais afetado pela violência é a América, com 17,9. O índice brasileiro é de 31,1 pessoas a cada 100 mil habitantes.
No ranking mundial da violência a liderança é ocupada por Honduras. No pequeno país centro-americano, são 55,5 homicídios para cada 100 mil pessoas. Em segundo lugar vem a Venezuela com 49,2 homicídios para cada cem mil venezuelanos. Na sequência vem El Salvador (46 para cada cem mil), Colômbia (42), Trinidad e Tobago (41), Jamaica (39,1). Lesoto (35) e África do Sul (33,1).
No ano de 2016, a OMS contabilizou 477 mil homicídios em todo o mundo. 80% das vítimas foram homens. Nas Américas, o total de mortes violentas chegou a 156 mil.
O espantoso é que, nas Américas, onde não há nenhuma guerra declarada, o número de homicídios é maior do que o daquelas regiões onde há conflitos bélicos. Há menos mortos de forma violenta na Síria, no Iraque e no Afeganistão do que no Brasil!
O que explica isso? Somos os americanos – latino-americanos em particular – mais violentos que os outros povos do mundo? Uma resposta simplista seria a afirmativa: sim, somos mais violentos que africanos, asiáticos e europeus!
Mas, como dissemos, é uma resposta simplista. Se formos a fundo e tomarmos outro dado, o da desigualdade social, podemos constatar que os índices de violência se sobrepõe quase que de forma absoluta sobre os índices de desigualdade. A América Latina é o continente mais desigual e, ao mesmo tempo, o mais violento do mundo. Honduras, o país mais violento da América Latina, é também o país mais desigual. O Brasil, nono no índice de violência, é o 10º em desigualdade social. 1% dos brasileiros mais ricos detém mais de 90% da riqueza brasileira. Os seis brasileiros mais ricos detém mais recuros econômicos que os 100 milhões de brasileiros mais pobres. Não há como não relacionar um dado com o outro. Só não querendo ver...
Mas há outro dado a colocar nesta análise. E ele é preocupante: a América Latina é o Continente com o maior percentual de cristãos e, particularmente, com o maior percentual de católicos. 50% dos católicos do mundo estão concentrados na América Latina. E com isso vem a pergunta que não pode ser evitada: há uma relação entre este dado e os dois anteriores? São os cristãos – e os católicos em particular – mais violentos e mais tolerantes com a desigualdade social? Ou, dita em outras formas: a fé declarada de cristãos e católicos tem alguma influência sobre o convívio social? Ou é o cristianismo apenas uma expressão religiosa que não tem nada a ver com o dia a dia das pessoas que a professam e com a sociedade em que elas vivem?
Questões a se por, especialmente nestes tempos em que a motivação religiosa é embaraçosamente misturada com as opções políticas de candidatos e eleitores. Pensemos nisso antes de ler o próximo trecho da Bíblia, de ir ao culto ou à Missa. E pensemos nisso, sobretudo, antes de ir às urnas. E que Deus nos proteja dos cristãos violentos!

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O Oráculo de Delfos contra o voto feminino

Diferentemente do que alguns pensadores de viés positivista querem passar por verdade, os mitos não são uma forma primitiva de tentar explicar a realidade. Pelo contrário, os mitos são, talvez, a forma mais profunda de conhecer o ser humano. E não o ser humano passado dos tempos primitivos em que os mitos parecem situar-se. Mais do que explicar o passado, os mitos explicam o presente daqueles que os criam e recontam. Se quisermos conhecer uma sociedade, nada melhor que conhecer os mitos que lhe dão fundamento.

Além da mitologia do Oriente Próximo presente nas narrativas bíblicas, são muito conhecidas entre nós as mitologias gregas e romanas. Cada uma, a seu modo, ajudam-nos a entender a realidade das respectivas culturas em que foram fornadas. E, na medida em que as recontamos, elas se tornam significativas para explicar nossa própria cultura.

Pensando nisso, trago presente um mito grego pouco conhecido e que ajuda a explicar a exclusão das mulheres da vida política no berço da democracia ocidental. Exclusão que, como vemos no processo eleitoral atual, mesmo que legalmente superada, ainda é factualmente persistente.

Conta a mitologia grega que Atenas, o berço da democracia ocidental, nem sempre se chamou assim. Na origem, ela não tinha nome. Todos a chamavam de Cecrópia pelo fato de ela ter sido fundada pelo rei Cécropes. Filho de Hefesto e Gaia, o fundador tinha dupla natureza: era metade humano e metade réptil.

Cécropes era um rei cuidadoso e diligente e buscava com todo esforço e dedicação o bem estar de seus cidadãos. Além de edificar a cidade e construir muros para defendê-la, estimulou ele a navegação – a cidade era cercada por mares –, a agricultura e as artes.Preocupado em ter a proteção divina, Cécropes foi o primeiro a cultuar a Zeus, o soberano de todos os deuses. Quis também ele que a cidade tivesse um deus protetor em especial. Mas, temendo, ao escolher um, desagradar os outros deuses, não sabia qual escolher.

Posseidon, o deus dos mares, desejoso de ter uma cidade pujante como aquela sob sua proteção, logo se apresentou como candidato. Para ganhar o favor dos habitantes da cidade, jogou seu tridente contra o rochedo sob o qual estava situada a cidade e da rocha brotou uma fonte de água. A cidade se alegrou, pois a água era escassa naquele local.

Sabendo da competição, Atenas, a deusa da sabedoria, também se apresentou. Sua relação com a cidade era próxima por um outro fator. Com efeito, Hefesto tentara estuprar Atenas. Esta fugiu e o sêmem de Hefesto caiu sobre Gaia e dela surgiu Cécropres. Desse modo, mesmo a contragosto, Atenas tinha algo a ver com a origem de Cécropes e da cidade. Para mostrar seu interesse em tornar-se protetora, Atenas fez surgir do rochedo da cidade um pé de oliveira. Diante do presente que lhe fornecei comida, óleo, madeira e sombra, a cidade exultou e tendeu a escolhê-la como sua protetora. Sem saber como resolver o impasse, Cécrope chamou todos os cidadãos de Atenas para a praça para consultá-los e assim não assumir sozinho tão grande responsabilidade.

Ora, naquele tempos primordiais da democracia, tanto homens como mulheres votavam. E todos, homens e mulheres, votaram. Os homens, unanimemente elegeram Posseidon como protetor da cidade. As mulheres, por sua vez, votaram em Atenas. E esta venceu, porque na cidade  havia uma mulher a mais que o total dos homens. E Atena foi instalada como protetora da cidade que recebeu, então, o nome de Atenas.

Poseidon, derrotado, não se conformou. Furioso, agitou as águas dos mares e a navegação tornou-se impossível. Não contente com isso, jogou suas ondas sobre as terras circundantes da cidade que se tornaram incultiváveis. Levados pelo terror, os habitantes de Atenas apelaram para o Oráculo de Delfos. Este, após muitas oferendas e rituais, proclamou sua sentença: Posseidon só cessaria sua fúria quando as mulheres que haviam eleito Atena como sua protetora fossem castigadas. E era um triplo castigo o que tinha que ser imposto a elas. Primeiramente, elas perderiam o mátrio poder, ou seja, os filhos que elas gerassem, daquele momento em diante, já não seriam delas, mas de seus maridos dos quais herdariam o nome. Em segundo lugar, elas deveriam ser destituídas do título de cidadãs de Atenas. E, em terceiro lugar, e consequência do anterior, elas não mais poderiam votar nas decisões a serem tomadas relativas à cidade.

Satisfeitas as exigências de Posseidon, sua violência cessou e Atena pôde reinar sobre a cidade. Quanto às mulheres, a partir daquele momento, não mais puderam participar das atividades democráticas da cidade.

Como disse anteriormente, por sorte esse mito é um dos menos conhecidos entre nós. Mas não faltam os Posseidon que, furiosos por verem-se preteridos na escolha das cidadãs, ameaçam-nas com sua violência a cidade e seus cidadãos e propõem a supressão dos direitos cidadãos das mulheres. E, pior hoje do que nos tempos míticos, às vezes com o voto das próprias mulheres.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

A Democracia é Masculina


Assim como a liberdade, a igualdade e a fraternidade, a democracia é masculina. Não importa se os artistas que celebrizaram a Revolução Francesa de 1789, num lapso involuntariamente contraditório, sempre representaram estes ideais com figuras estupendamente femininas. Só para citar um entre os tantos exemplares icônicos, basta ver a anônima obra Allegorie auf die Werte der Verfassung nach der Französischen Revolution.

Mas o fato é que naquela revolução burguesa, assim como em todas as que se seguiram pela Europa e pelo mundo, as mulheres sempre permaneceram excluídas dos processos decisórios de seus povos. O direito ao voto feminino sequer foi cogitado pelos revolucionários gauleses. O mesmo deu-se em outros povos que, paulatinamente, foram instaurando sistemas democráticos para o governo de seus países.

O voto das mulheres só foi reconhecido depois de intensas lutas das “sufragettes”. Ser chamada de “sufragista” na Europa ou nos Estados Unidos do final do século XIX e início do século XX era uma ofensa terrível. Algo mais ou menos parecido com o que hoje se atribui através da pecha de “ideologia de gênero” ou “gayzista”. Ser sufragista, segundo os defensores da democracia masculina da época, era querer inverter os papéis sociais do masculino e do feminino e acenar com a hipótese de que as mulheres eram tão capacitadas quanto os homens para escolher os dirigentes da sociedade e – extrema pretensão! – até poderem ser eleitas para governar.

Mesmo que a legislação de muitos países não impedisse, formalmente, que as mulheres votassem, era senso comum e poucos ousavam questionar o fático impedimento. Foi na Inglaterra que o movimento pelo direito à participação política das mulheres ganhou vigor ainda no século XIX. Mas foi necessária a morte, em 1913, da militante Emilly Davidson sob as patas do cavalo do Rei da Inglaterra para que a causa ganhasse repercussão. E foi necessário também que, durante a Primeira Guerra Mundial, as mulheres inglesas fossem chamadas a exercer funções até então reservadas aos homens para que a sociedade tomasse consciência de que as mulheres, sim, podem exercer as mesmas funções dos homens. Com tudo isso, só em 1928 na Inglaterra as mulheres passaram a ter o direito de votar e serem votadas.

Coincidentemente, foi neste mesmo ano que, no Brasil, um grupo de mulheres venceu a barreia masculina e pode aproximar-se das urnas. Isso aconteceu na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. E o direito não foi conseguido através de lei, mas por decisão judicial. No mesmo ano de 1928, em Minas Gerais, Maria Ernestina Carneiro Santiago Manso Pereira, conhecida como Mietta Santiago, além do direito de poder votar, conseguiu o direito de ser votada. Como candidata a Deputada Federal, fez um único voto, o dela mesma. E mais: a Justiça eleitoral, depois das eleições, anulou todos os votos femininos. Mas o movimento iniciado no Rio Grande do Norte e em Minas Gerais se espalhou pelo Brasil e, em 1932, a reforma eleitoral de Getúlio Vargas estendeu este direito ao todo o país.

Hoje, no Brasil, as mulheres não encontram nenhuma barreira formal para votar e serem votadas. Mas ainda há barreiras culturais difíceis de serem vencidas. Por isso a legislação eleitoral obriga os partidos a apresentarem 30% de candidatas mulheres. E agora, 30% dos recursos do fundo público para as eleições devem ser destinados a candidatas mulheres. Mas, mais uma vez, são apenas leis. Na real, nas eleições de 2016, dos candidatos que não receberam nenhum voto, 86% eram mulheres. Ou seja, apresentou-se o nome de uma mulher apenas para preencher uma formalidade legal. Mas, de fato, elas não concorreram. E, dado que não deixa mentir ou enganar, apenas 11% do parlamento brasileiro e composto por mulheres. Temos neste quesito uma das piores performances do mundo.

E nesta eleição de 2018, como será? O que presenciamos até agora nesta etapa preparatória parece indicar que avançaremos para o retrocesso. Nas candidaturas proporcionais, a cota de 30% foi registrada. Mas é muito provável que, mais uma vez, seja uma mera formalidade e as candidaturas femininas permaneçam no esquecimento partidário.

Nas chapas majoritárias, salvo raras e honrosas exceções, as mulheres continuam sendo ínfima minoria. Das 13 candidaturas registradas, apenas duas são de mulheres. Quatro candidatos apresentam mulheres como vice. E sete são as chapas exclusivamente masculinas. Já em São Paulo, o principal Estado da Federação em números eleitorais, das doze candidaturas ao Palácio dos Bandeirantes, apenas uma é encabeçada por mulher. Oito candidaturas têm mulheres como vice. E destas, oito, três são policiais militares.

Em relação a eleições passadas, aumentou o número de mulheres como vice candidatas. Mas o que é ser vice no Brasil? Salvo aqueles que entram com a intenção de derrubar o titular, vice, no Brasil, na maioria dos casos, é algo meramente decorativo. O candidato pinça uma vice de um determinado segmento social para obter penetração em um espaço político que lhe é estranho ou que tem apelo popular. É o caso das vices policiais militares de São Paulo que simulam responder ao clamor por segurança. Mas isso garante a participação feminina nas eleições?

Temo que a resposta seja negativa. E, mesmo que as mulheres ilustrem as campanhas dos candidatos homens como as imagens femininas da Liberdade, Igualdade e Fraternidade ilustraram as pinturas da propaganda revolucionária jacobina, no quesito de efetiva participação das mulheres, continuaremos uma democracia majoritariamente masculina.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Cada candidato tem o banqueiro que merece


Afirmar, como fez o filósofo francês Joseph-Marie de Maistre (1753-1821), que “cada povo tem o governo que merece” é, sem sombra de dúvida, ou suprema ignorância ou, como foi o caso do ilustre francês aqui citado, uma manifestação de desprezo pela democracia. Monarquista convicto, De Maistre não se conformava com a ascensão da burguesia ao poder na França revolucionária e desejava a volta ao “Ancien Régime” onde governavam aqueles que tinham “sangue azul”. Para ele, governar um povo era uma concessão divina reservada à nobreza da qual, como conde, fazia parte.

A afirmação de De Maistre batia de frente com o princípio democrático recém instaurado que afirmava que o poder nasce da vontade popular. Para o conde saboiardo, o governante não deve responder aos anseios do povo mas às ordens de Deus, pouco se importando se há contradição entre ambas. Mesmo que a posição de De Maistre tenha sido considerada como retrógrada pela história, nas sociedades ditas democráticas ainda podemos perceber que, mesmo dizendo-se que o governo nasce do povo, tal afirmação é suscetível de questionamentos.

Com efeito, o resultado das eleições nem sempre respeita o sentir e a vontade popular. Como todos sabemos, há muitas formas de burlar a democracia. E estas múltiplas formas vão desde as legislações e suas interpretações que excluem segmentos e pessoas do certame eleitoral até o uso abusivo do poder econômico e midiático. O que pode fazer um candidato que dispõe de pouco dinheiro e nenhum tempo de rádio e TV contra candidatos que dispõe de milhões e um verdadeiro latifúndio televisivo? A luta é desigual e nada democrática. O mais forte, geralmente, vence.

Na verdade, na realista expressão de Boaventura de Souza Santos, as democracias, numa sociedade desigual, sempre são “democracias de baixa intensidade”. Elas permitem a participação popular apenas e na medida em que esta não interfira no poder daqueles que realmente detém o poder. No estágio atual da economia capitalista, tais detentores do poder dão-se a conhecer não mais nominalmente, mas apenas pelo etéreo nome de “mercado”. Há candidatos que “agradam ao mercado” e há candidatos que “desagradam ao mercado”. Mas quem é o mercado? É o sistema financeiro, ou seja, os donos dos bancos. E, se algum candidato que não agrada ao mercado consegue vencer as barreiras que lhe são impostas e fazer-se eleger pela vontade popular expressa no voto, corre o sério risco de não chegar ao fim de seu mandato. Um rápido olhar pelos acontecimentos políticos da última década na América Latina mostra o quanto tais fatos são recorrentes. Em ordem cronológica, as crises políticas de Honduras, Paraguai, Venezuela, Peru, Equador, Brasil, Argentina e, nos últimos meses, na Nicarágua, com datas e nomes diferentes, são a luta dos eternos “donos do poder”, como diria Raimundo Faoro, com intrusos que ousaram fazer-se eleger pela vontade popular.

Nas eleições presidenciais que se avizinham, o jogo não vai ser diferente. Mas, ao menos no quesito de nomes e identidades, haverá uma novidade. Com efeito, tradicionalmente, os banqueiros, dada a natureza da profissão durante séculos proibida pela Igreja, costumavam ser discretos e não expor seus nomes ao escrutínio público. Mas desta vez tal regra não é respeitada por todos. Pela primeira vez nas eleições presidenciais deste a restauração democrática de 1988, vamos ter banqueiros disputando abertamente as eleições. Pelo menos dois dos candidatos – Henrique Meirelles e João Amoedo - cumprem o quesito de ter uma longa ficha de serviço a instituições financeiras que sugam quase a metade do total de impostos – federais, estaduais e municipais – recolhidos anualmente no Brasil. Em outras palavras, se um dos dois ganhar, ele vai unir as duas pontas do ciclo econômico brasileiro que, por um lado, gera pobreza sugando a população através de impostos e, por outro, deposita o recolhido nas anchas burras dos bancos. O eleito seria, ao mesmo tempo, pagador e credor. Uma bela posição para o anônimo Senhor Mercado.

Todos dirão que as possibilidades destes dois Senhores do Mercado se elegerem são remotas. E, de fato, não creio que alcançarão a meta. Mas nos darão a oportunidade de perguntar: quem são os banqueiros que estão por trás dos outros candidatos? Ou, pergunta mais sutil e que também deve ser feita: estão estes outros candidatos dispostos a fazer frente ao sistema financeiro que governa o Brasil? Quais são as medidas concretas propostas por cada um ou uma para contrarrestar a onipotência dos bancos?
São perguntas que não podem deixar de ser feitas pois, assim como cada candidato tem o banco que o financia, cada povo também pode ter o banqueiro que merece.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Escrever é preciso, viver não é preciso!

Tarefa árdua a de escrever em tempos tão polarizados como os nossos. No mesmo momento em que qualquer indivíduo, relevante ou anônimo na cena social, afirma publicamente sua posição sobre um determinado tema, aparece imediatamente um outro defendendo veementemente posição diametralmente oposta. Parecemos todos envoltos num Fla-Flu de final de campeonato brasileiro.

O tema candente do momento na cena midiática brasileira é o da descriminalização do aborto. E logo aparece gente que, sem preocupar-se em saber do que trata o projeto, confunde a descriminalização com a liberação do aborto. E outros que vão além e afirmam que o projeto de lei institui a obrigatoriedade do aborto e que, se aprovado, todas as mulheres terão que, forçosamente, arrancar os fetos de seus ventos. E logo se instaura um Gre-Nal dos que são a favor do aborto e dos que são contra o aborto. Calma! Antes de entrar no mérito, perguntemo-nos: por que a suprema ministra do STF colocou em discussão essa temática justamente agora a poucas semanas das eleições presidenciais, estaduais e parlamentares, tanto a nível federal como a estadual? E mais: por que este tema sempre é colocado em questão em véspera de eleições? Será que não dá prá desconfiar? Sou tentado a prever que a atual ministra presidenta do STF não vá colocar em votação a questão antes das eleições e ela vai voltar daqui a quatro anos, justamente nas vésperas das próximas eleições...

Dei-me ao trabalho de assistir a alguns dos pronunciamentos feitos por representantes da sociedade na audiência pública relativa ao tema convocada pelo STF. A grande maioria, tanto no bloco a favor como no bloco contrário à aprovação do projeto de lei, me pareceram muito fundamentadas e sensatas desde o ponto de vista dos proponentes. Não vou aqui discutir o mérito de cada uma, pois não é esta a finalidade que aqui me proponho. O que me impele a escrever, é que, apesar daquelas argumentações sérias e consistentes, nos meios de comunicação tradicionais e nas mídias alternativas, seguia a todo vapor o Ba-guá com os que defendem uma posição demonizando a posição dos outros e, dos dois lados, a grande maioria sem apresentar argumentos a não ser o direito ao aborto e o direito absoluto à vida. Raros foram e são os que apresentam seus argumentos. Das poucas intervenções fundamentadas, a mais sensata me pareceu a de Frei Betto. Ela está disponível na internet. É só dar uma busca e logo aparece. E - pasmem! - malhada por radicais de ambos os lados! É isso que acontece com quem pensa e argumenta com lucidez...

O mesmo aconteceu com outro tema que, não sei por qual razão, de uma hora para outra, saiu das manchetes: a legalização do consumo de maconha. Mesma cena: há argumentos tanto a favor como contra que são solenemente esquecidos nas discussões superficiais promovidas por meios de comunicação mais interessados em aumentar sua audiência do que buscar uma solução para o problema da drogadição e da violência resultante do mercado clandestino de estupefacientes. Chega a ser cômico o esforço feito por emissoras de televisão patrocinadas pela indústria do álcool – uma droga legalizada, mas assim mesmo, sempre uma droga – contra a legalização de outra droga, a maconha. Os industriais e mercadores de cerveja não querem que os industriais e mercadores de maconha disputem com eles o mesmo mercado! Ou então, suspeita terrível se verdadeira for, são os mesmos que querem manter o comércio de uma droga legal e o de outra ilegal. Assim ganham tanto num esquema como em outro.

E agora, para alegria dos flafuzeiros, grenalistas e bagualeiros, estamos entrando na disputa eleitoral. E tudo o que não se quer neste cenário de democracia sequestrada e presa pela República de Curitiba, são argumentos. O campo já está sendo demarcado com linhas de pura emoção. A mensagem que nos passam é de que devemos deixar os neurônios em casa e colocar o fígado e a suprarrenal em campo para que a bílis destile seu verde amargor sobre os adversários! Nada de argumentos. A eleição é só emoção. Nós contra eles. A luta do bem contra o mal. As luzes contra as trevas. O progresso contra o atraso. A ordem contra o caos. A modernidade contra a velharia. E tantas outras formas de maniqueísmo que fariam o velho Santo Agostinho ruborescer!

Como argumentar nestes tempos sem argumentos? Confesso que às vezes tenho vontade de parar de escrever... Será que alguém lê meus textos até o fim ou já, desde a primeira linha, serei classificado como pertencente a esta ou àquela tendência e a leitura interrompida antes de eu poder expor meu primeiro argumento?

Se você chegou até aqui, por favor, faça-me saber! Será para mim um consolo e um estímulo. Será um bálsamos para minha atribulada alma de escritor improvisado. Faça isso, por favor, mesmo que eu tenha decidido que, nestes tempos em que muito se fala e pouco se escuta, é preciso continuar a escrever para que o pensamento não se intimide e morra na escuridão que querem nos impor. Parar de escrever é parar de pensar. E parar de pensar, é morrer. Não quero nem me deixar abortar e nem permitir que me entorpeçam com discursos de trevas e silêncio. A escrita é o trigo que mata a nossa fome de saber. Escrever é preciso, viver não é preciso.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

RECUERDOS DE UMA EX-REVOLUÇÃO

Na medida em que os anos que contamos em cada aniversário vão aumentando em número, a vida vai nos cumulando com lastros de memórias que são despertadas por fatos do presente e nos provocam a pensar em nossos futuros. Nos últimos três meses, são os eventos na Nicarágua que vieram provocar alvoroços nos meus recuerdos dos anos 1990 quando tive a graça de viver naquele então e atualmente convulsionado e belo país.

Em março de 1991, em um seco verão com calor de quarenta graus, juntamente com o já falecido Frei Vitor Poloni, chegava eu na cidade de El Rama, no Caribe Nicaraguense, para ajudar os frades norte-americanos e nicaraguenses no cuidado pastoral do então Vicariato Apostólico de Bluefields. Eram tempos pós-revolucionários. Em 1990, a Frente Sandinista de Libertação Nacional que governava o país desde a revolução de 1979, foi derrotada nas eleições presidenciais e, num gesto democrático, abandonou o poder e passou para a oposição.

No segundo semestre de 1991, o FSLN realizou seu primeiro congresso nacional. Cada região elegeu seus delegados. Tratava-se de reorganizar o partido na oposição e preparar-se para os embates não mais com as armas, como no tempo do combate à ditadura de Somoza ou da resistência à agressão imperialista norte-americana, mas no campo da disputa política e eleitoral. Boa parte dos sandinistas desejava a renovação do partido e a eleição de uma nova direção nacional. Outros, aglutinados ao redor de Daniel Ortega e seu irmão Humberto, comandante do Exército, desejavam a manutenção da antiga direção sob o comando de Daniel. Os delegados ao congresso da Quinta Região onde se situava a cidade de Rama eram em sua grande maioria pela renovação. No dia em que se deslocavam para Manágua, homens armados, a mando de Daniel e Humberto, impediram que chegassem à capital e participassem do Congresso.

Em outras regiões aconteceu o mesmo com outros delegados que também desejavam a renovação do FSLN. Resultado: Daniel continuou no comando e os que com ele tinham a coragem de dissentir publicamente foram pouco a pouco sendo excluídos dos espaços de decisão do partido e, finalmente, em 1995, fundaram o Movimento de Renovação Sandinista. Entre eles estavam comandantes históricos como Dora Maria Tellez, Monica Baltodono, Henry Ruiz, Hugo Torres, Victor Hugo Tinoco, Herty Lewites, o popular cantautor Carlos Mejia Godoy e o ex-presidente Sergio Ramirez. Mais tarde a eles se juntaram, entre tantos outros, figuras como o monge e poeta Ernesto Cardenal, o jesuíta Fernando Cardenal que coordenara a épica Cruzada de Alfabetização e a escritora Gioconda Belli. Quando Ernesto Cardenal oficializou seu desligamento do FSLN, Daniel apenas afirmou: “Ninguém pediu para ele entrar, ninguém vai pedir para ele ficar. Se quiser sair, que saia.”

Para mim, estrangeiro que sempre simpatizara com a Revolução Popular Sandinista, estava naquela frase selada a morte do antigo caráter revolucionário do FSLN. Daniel Ortega deixava de ser um líder revolucionário popular e se tornava incurável de uma das mais nefastas tradições da esquerda latino-americana: o autoritarismo.

Nas eleições de 2006, Herty Lewites, que administrara com lisura e efetividade a cidade de Manágua, candidatou-se a presidente pelo MRS. Misteriosamente, às vésperas da eleição, quando era franco favorito para vencer, enfermou-se e faleceu. No vácuo deixado pela morte de Lewites, Daniel, utilizando o capital simbólico da bandeira rojinegra, elegeu-se presidente do país. Para manter-se no poder, tomou duas medidas: colocou um parente informal do Cardenal Obando y Bravo, seu conterrâneo e antigo opositor, na presidência do Conselho Superior Eleitoral e este, em troca, colocou na clandestinidade o Movimento de Renovação Sandinista.

Neste segundo período do poder a estrela do novo governo do FSLN passou a ser Rosário Murillo, esposa de Daniel Ortega. Ela tornou-se a figura central da simbólica sandinista e a grande articuladora política. Abandonando as tradicionais demandas revolucionários por democracia, o novo governo de Daniel aproximou-se cada vez mais das figuras da direita nicaraguense e dos fundamentalistas católicos representados por Obando y Bravo. Para agradá-los, derrogou todos os avanços no campo da educação e da saúde.

Em compensação, Daniel impulsionou programas de assistência social que tiraram da miséria parte significativa da sociedade nicaraguense, principalmente no campo. Para financiar tais projetos, contou com generosa ajuda da Venezuela e da China que projetava construir no país um novo canal interoceânico. Em 2016, Daniel reelegeu-se Presidente com 70% dos votos válidos. A oposição, incapaz de articular-se politicamente e apresentar um projeto democraticamente viável, passou, com o nada secreto apoio da embaixada dos Estados Unidos, a buscar outros meios para tirar Daniel do poder. A ocasião surgiu há três meses quando o governo nicaraguense, sob orientação do Fundo Monetário Internacional, anunciou o aumento das alíquotas patronais e dos trabalhadores para a Previdência Social e uma simultânea diminuição do valor das aposentadorias. A ocasião estava formada para que toda forma de insatisfação contra Daniel explodisse nas ruas e chegasse aos mais de 300 mortos que até hoje tivemos.

Alguns bispos da Igreja Católica que tradicionalmente se opunham a qualquer coisa que levasse o nome de sandinista, agora livres do lastro do Cardeal Obando y Bravo que faleceu em 3 de junho e teve seus funerais ignorados até por seus colegas, passaram da função de mediadores para a de parte no conflito exigindo a renúncia de Daniel e a convocação de novas eleições. Mas Daniel tem a seu lado a sutil estrategista Rosário Murillo – que de louca, como dizem alguns, não tem nada – e tem a força do Exército e da Polícia. E, diga-se de passagem, tem a seu favor o apoio da maioria pobre da população que, nos 13 últimas anos de seu governo, viu as condições de vida melhorar significativamente.

O xadrez é complicado. A dinâmica política da Nicarágua não é para principiantes e para comentaristas da Band News que afirmam que Daniel está dando um “golpe de esquerda”. Não há saída fácil e talvez ainda muito sangue seja derramado porque a maioria das partes, desde Daniel até seus opositores eclesiásticos, não trabalham com a possibilidade de uma transição democrática. O objetivo de cada parte é destruir – política, simbólica e até mesmo fisicamente – a outra parte. Para Daniel e o grupo político e econômico que gira a seu redor, o risco é de perder o poder e parar na cadeia, coisa que não lhe aconteceu nem no tempo de guerrilheiro. Para a Igreja Católica, o dano já provocado é de ser utilizada para um interesse político contrário à vontade da maioria dos pobres do país. Quando a crise passar, será uma Igreja ainda mais enfraquecida numérica e moralmente.

Qual o futuro de Nicarágua? Difícil de imaginar... Desde a distância no tempo e no espaço que Nicarágua significou na minha vida, só posso desejar que o realismo fantástico de Gioconda Belli no provocador “Waslala” não se torne uma profecia realizada: Nicarágua não pode voltar a ser o depósito de lixo do Império Americano. Que Dirianguén e Sandino, desde as montanhas do norte, intercedam pelo país de lagos e vulcões e seu povo valente e sempre disposto a lutar por liberdade!

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Sobre pneus queimados, plásticos e telhados.

O domingo amanheceu tenso em Abacou. A falta de notícias fiáveis sobre o que estava acontecendo no país fazia com que os boatos corressem soltos e construíssem uma realidade ao gosto das afinidades políticas de cada grupo. A incipiente democracia, a tradição autoritária e as fake news potencializadas pela omnipresença da telefonia digital, fazia com que as mais absurdas e contraditórias informações fossem tomadas como verdade factual. Havia os que diziam que tudo estava normal e os que afirmavam que o Presidente já havia encaminhado sua renúncia. As barricadas nas estradas, os pneus queimados, as pedras nas mãos, os olhares tensos e as conversas acirradas do dia e da noite anterior me faziam crer que todas as informações poderiam ser simultaneamente verossímeis.

Para mim, havia uma situação pessoal: como voltar a Porto Príncipe e tentar, terça-feira, partir para o Brasil? Problema minúsculo diante da caótica situação do país. Mas problema real a ser resolvido. Primeira alternativa: ir a Les Cayes ver se os ônibus estavam funcionando. Fomos. Negativo. Nenhum transporte público. Segunda alternativa: ir até a cidade de Aquin onde moram Inês e Eugênia, brasileiras, Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora. Frei Sérgio falara com elas. Aí estava hospedado Pe. Rogério, jesuíta brasileiro, com seus cinco noviços. Partimos. Entre pedras na estrada e pneus ainda queimando chegamos a Aquin. Nenhum manifestação na rua. Até aqui tudo tranquilo. As irmãs Franciscanas de Nossa Senhora mantém na cidadezinha encravada na encosta de uma montanha um serviço básico de saúde para a população. Com as duas brasileiras, está uma irmã malgaxe. É a solidariedade sul-sul.

Depois do almoço e das informações que continuam desencontradas, a decisão é ir adiante até onde for possível. Se não der para avançar muito, voltamos. Se for possível ir um pouco mais, mas não se puder entrar em Porto Príncipe, em Léogane há hospedagem com as Irmãs de Cristo Rei. Foi o que aconteceu. Na medida em que nos aproximávamos de Porto Príncipe as manifestações aumentavam e em Léogane foi impossível avançar. As irmãs nos acolheram e aí passamos a noite esperando o que aconteceria no dia seguinte.

Perto do meio dia os jovens noviços jesuítas, em contato com seus amigos de Porto Príncipe, afirmam que é possível chegar à cidade. Almoçamos e partimos com a possibilidade de ter que voltar... À medida que avançávamos em direção à capital, os sinais das manifestações dos dias anteriores se faziam mais fortes. Galhos, troncos, pedras, lixo, pneus queimados, carros velhos... tudo tinha sido usado par obstruir os caminhos. Em Porto Príncipe ainda havia grupos nos entroncamentos e esquinas sinalizando que nem tudo estava terminado no protesto. Do habitual trânsito caótico, nada. Poucas pessoas nas ruas. Muito medo no ar. A qualquer momento paus e pedras poderiam surgir no caminho. Polícia? Formalmente existe, mas está há dois anos sem receber salários... O que se poderia esperar dela? Nenhum sinal de sua presença nas ruas. Seguimos espreitando em cada esquina e, depois de contornar várias ruas obstruídas, finalmente Pe. Rogério e seus noviços me deixaram em casa.

Resultado final das manifestações? Alguns mortos – não se sabe exatamente quantos -, feridos, saques em lojas, bancos, nas companhias telefônicas e de internet, o país inteiro dois dias parado e muito trabalho para desobstruir ruas e estradas. Mas quem vai fazê-lo, já que não há funcionalismo público? Os que acreditam no “estado mínimo” tem que reconhecer que este também tem seus problemas... De prático, o resultado mesmo foi que o governo voltou atrás e revogou o aumento dos combustíveis. Mas os postos estão todos fechados e a oposição pede a renúncia do Presidente. Este oferece a cabeça do Primeiro Ministro. O jogo político continua!

Depois de um banho, duas mangas e vários copos de água, parto com frei Aldir para ver o local onde será instalada a futura fábrica de reciclagem de plásticos. É um projeto espetacular sob todos os pontos de vista. Matéria prima há em abundância em Porto Príncipe. Montanhas e rios de plástico por todos os lados. Sim, rios... As valas por onde correm as águas na temporada de chuva, quando estão secas, são preenchidas com quantidades enormes de plástico que, com o correr das primeiras chuvas, formam rios em direção ao mar. Às vezes ocorre de algum desavisado tocar fogo nesta corrente de plástico e temos um rio de fogo! São os restos do capitalismo predatório que se manifestam na ponta mais frágil do sistema.

Além de recolher o plástico e evitar que chegue ao mar, o projeto tem ainda a vantagem de gerar uma fonte de renda para a população mais pobre que recolherá a matéria prima e a venderá para a fábrica onde haverá um grupo de trabalhadores assalariados. Tudo será pago com a venda das telhas e blocos de plástico usados na construção de casas. Além de ecológico e barato, o material tem uma durabilidade superior ao zinco e aos blocos de cimento hoje usados e também é menos danoso em caso de terremoto ou furacão, duas coisas frequentes por aqui.

O sonho é grande. Financiamento, felizmente, há. Um jovem frade haitiano foi ao Brasil para fazer um estágio na empresa onde o maquinário é fabricado. Outros dois frades haitianos estão se preparando para administrar o projeto. Só falta a esperada assinatura do Presidente e do Tesoureiro da Conferência Episcopal Haitiana para o contrato de aluguel do terreno. Há quase um ano frei Aldir vem tentando conseguir esta assinatura e nada... Mas ele tem paciência e perseverança. Se todas as peças se encaixarem, em pouco tempo mais um sinal de vida e esperança será posto pelos missionários brasileiros no Haiti. Do que hoje é tratado lixo, poderá surgir muita vida nova. Há esperança!