terça-feira, 28 de agosto de 2018

A Democracia é Masculina


Assim como a liberdade, a igualdade e a fraternidade, a democracia é masculina. Não importa se os artistas que celebrizaram a Revolução Francesa de 1789, num lapso involuntariamente contraditório, sempre representaram estes ideais com figuras estupendamente femininas. Só para citar um entre os tantos exemplares icônicos, basta ver a anônima obra Allegorie auf die Werte der Verfassung nach der Französischen Revolution.

Mas o fato é que naquela revolução burguesa, assim como em todas as que se seguiram pela Europa e pelo mundo, as mulheres sempre permaneceram excluídas dos processos decisórios de seus povos. O direito ao voto feminino sequer foi cogitado pelos revolucionários gauleses. O mesmo deu-se em outros povos que, paulatinamente, foram instaurando sistemas democráticos para o governo de seus países.

O voto das mulheres só foi reconhecido depois de intensas lutas das “sufragettes”. Ser chamada de “sufragista” na Europa ou nos Estados Unidos do final do século XIX e início do século XX era uma ofensa terrível. Algo mais ou menos parecido com o que hoje se atribui através da pecha de “ideologia de gênero” ou “gayzista”. Ser sufragista, segundo os defensores da democracia masculina da época, era querer inverter os papéis sociais do masculino e do feminino e acenar com a hipótese de que as mulheres eram tão capacitadas quanto os homens para escolher os dirigentes da sociedade e – extrema pretensão! – até poderem ser eleitas para governar.

Mesmo que a legislação de muitos países não impedisse, formalmente, que as mulheres votassem, era senso comum e poucos ousavam questionar o fático impedimento. Foi na Inglaterra que o movimento pelo direito à participação política das mulheres ganhou vigor ainda no século XIX. Mas foi necessária a morte, em 1913, da militante Emilly Davidson sob as patas do cavalo do Rei da Inglaterra para que a causa ganhasse repercussão. E foi necessário também que, durante a Primeira Guerra Mundial, as mulheres inglesas fossem chamadas a exercer funções até então reservadas aos homens para que a sociedade tomasse consciência de que as mulheres, sim, podem exercer as mesmas funções dos homens. Com tudo isso, só em 1928 na Inglaterra as mulheres passaram a ter o direito de votar e serem votadas.

Coincidentemente, foi neste mesmo ano que, no Brasil, um grupo de mulheres venceu a barreia masculina e pode aproximar-se das urnas. Isso aconteceu na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. E o direito não foi conseguido através de lei, mas por decisão judicial. No mesmo ano de 1928, em Minas Gerais, Maria Ernestina Carneiro Santiago Manso Pereira, conhecida como Mietta Santiago, além do direito de poder votar, conseguiu o direito de ser votada. Como candidata a Deputada Federal, fez um único voto, o dela mesma. E mais: a Justiça eleitoral, depois das eleições, anulou todos os votos femininos. Mas o movimento iniciado no Rio Grande do Norte e em Minas Gerais se espalhou pelo Brasil e, em 1932, a reforma eleitoral de Getúlio Vargas estendeu este direito ao todo o país.

Hoje, no Brasil, as mulheres não encontram nenhuma barreira formal para votar e serem votadas. Mas ainda há barreiras culturais difíceis de serem vencidas. Por isso a legislação eleitoral obriga os partidos a apresentarem 30% de candidatas mulheres. E agora, 30% dos recursos do fundo público para as eleições devem ser destinados a candidatas mulheres. Mas, mais uma vez, são apenas leis. Na real, nas eleições de 2016, dos candidatos que não receberam nenhum voto, 86% eram mulheres. Ou seja, apresentou-se o nome de uma mulher apenas para preencher uma formalidade legal. Mas, de fato, elas não concorreram. E, dado que não deixa mentir ou enganar, apenas 11% do parlamento brasileiro e composto por mulheres. Temos neste quesito uma das piores performances do mundo.

E nesta eleição de 2018, como será? O que presenciamos até agora nesta etapa preparatória parece indicar que avançaremos para o retrocesso. Nas candidaturas proporcionais, a cota de 30% foi registrada. Mas é muito provável que, mais uma vez, seja uma mera formalidade e as candidaturas femininas permaneçam no esquecimento partidário.

Nas chapas majoritárias, salvo raras e honrosas exceções, as mulheres continuam sendo ínfima minoria. Das 13 candidaturas registradas, apenas duas são de mulheres. Quatro candidatos apresentam mulheres como vice. E sete são as chapas exclusivamente masculinas. Já em São Paulo, o principal Estado da Federação em números eleitorais, das doze candidaturas ao Palácio dos Bandeirantes, apenas uma é encabeçada por mulher. Oito candidaturas têm mulheres como vice. E destas, oito, três são policiais militares.

Em relação a eleições passadas, aumentou o número de mulheres como vice candidatas. Mas o que é ser vice no Brasil? Salvo aqueles que entram com a intenção de derrubar o titular, vice, no Brasil, na maioria dos casos, é algo meramente decorativo. O candidato pinça uma vice de um determinado segmento social para obter penetração em um espaço político que lhe é estranho ou que tem apelo popular. É o caso das vices policiais militares de São Paulo que simulam responder ao clamor por segurança. Mas isso garante a participação feminina nas eleições?

Temo que a resposta seja negativa. E, mesmo que as mulheres ilustrem as campanhas dos candidatos homens como as imagens femininas da Liberdade, Igualdade e Fraternidade ilustraram as pinturas da propaganda revolucionária jacobina, no quesito de efetiva participação das mulheres, continuaremos uma democracia majoritariamente masculina.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Cada candidato tem o banqueiro que merece


Afirmar, como fez o filósofo francês Joseph-Marie de Maistre (1753-1821), que “cada povo tem o governo que merece” é, sem sombra de dúvida, ou suprema ignorância ou, como foi o caso do ilustre francês aqui citado, uma manifestação de desprezo pela democracia. Monarquista convicto, De Maistre não se conformava com a ascensão da burguesia ao poder na França revolucionária e desejava a volta ao “Ancien Régime” onde governavam aqueles que tinham “sangue azul”. Para ele, governar um povo era uma concessão divina reservada à nobreza da qual, como conde, fazia parte.

A afirmação de De Maistre batia de frente com o princípio democrático recém instaurado que afirmava que o poder nasce da vontade popular. Para o conde saboiardo, o governante não deve responder aos anseios do povo mas às ordens de Deus, pouco se importando se há contradição entre ambas. Mesmo que a posição de De Maistre tenha sido considerada como retrógrada pela história, nas sociedades ditas democráticas ainda podemos perceber que, mesmo dizendo-se que o governo nasce do povo, tal afirmação é suscetível de questionamentos.

Com efeito, o resultado das eleições nem sempre respeita o sentir e a vontade popular. Como todos sabemos, há muitas formas de burlar a democracia. E estas múltiplas formas vão desde as legislações e suas interpretações que excluem segmentos e pessoas do certame eleitoral até o uso abusivo do poder econômico e midiático. O que pode fazer um candidato que dispõe de pouco dinheiro e nenhum tempo de rádio e TV contra candidatos que dispõe de milhões e um verdadeiro latifúndio televisivo? A luta é desigual e nada democrática. O mais forte, geralmente, vence.

Na verdade, na realista expressão de Boaventura de Souza Santos, as democracias, numa sociedade desigual, sempre são “democracias de baixa intensidade”. Elas permitem a participação popular apenas e na medida em que esta não interfira no poder daqueles que realmente detém o poder. No estágio atual da economia capitalista, tais detentores do poder dão-se a conhecer não mais nominalmente, mas apenas pelo etéreo nome de “mercado”. Há candidatos que “agradam ao mercado” e há candidatos que “desagradam ao mercado”. Mas quem é o mercado? É o sistema financeiro, ou seja, os donos dos bancos. E, se algum candidato que não agrada ao mercado consegue vencer as barreiras que lhe são impostas e fazer-se eleger pela vontade popular expressa no voto, corre o sério risco de não chegar ao fim de seu mandato. Um rápido olhar pelos acontecimentos políticos da última década na América Latina mostra o quanto tais fatos são recorrentes. Em ordem cronológica, as crises políticas de Honduras, Paraguai, Venezuela, Peru, Equador, Brasil, Argentina e, nos últimos meses, na Nicarágua, com datas e nomes diferentes, são a luta dos eternos “donos do poder”, como diria Raimundo Faoro, com intrusos que ousaram fazer-se eleger pela vontade popular.

Nas eleições presidenciais que se avizinham, o jogo não vai ser diferente. Mas, ao menos no quesito de nomes e identidades, haverá uma novidade. Com efeito, tradicionalmente, os banqueiros, dada a natureza da profissão durante séculos proibida pela Igreja, costumavam ser discretos e não expor seus nomes ao escrutínio público. Mas desta vez tal regra não é respeitada por todos. Pela primeira vez nas eleições presidenciais deste a restauração democrática de 1988, vamos ter banqueiros disputando abertamente as eleições. Pelo menos dois dos candidatos – Henrique Meirelles e João Amoedo - cumprem o quesito de ter uma longa ficha de serviço a instituições financeiras que sugam quase a metade do total de impostos – federais, estaduais e municipais – recolhidos anualmente no Brasil. Em outras palavras, se um dos dois ganhar, ele vai unir as duas pontas do ciclo econômico brasileiro que, por um lado, gera pobreza sugando a população através de impostos e, por outro, deposita o recolhido nas anchas burras dos bancos. O eleito seria, ao mesmo tempo, pagador e credor. Uma bela posição para o anônimo Senhor Mercado.

Todos dirão que as possibilidades destes dois Senhores do Mercado se elegerem são remotas. E, de fato, não creio que alcançarão a meta. Mas nos darão a oportunidade de perguntar: quem são os banqueiros que estão por trás dos outros candidatos? Ou, pergunta mais sutil e que também deve ser feita: estão estes outros candidatos dispostos a fazer frente ao sistema financeiro que governa o Brasil? Quais são as medidas concretas propostas por cada um ou uma para contrarrestar a onipotência dos bancos?
São perguntas que não podem deixar de ser feitas pois, assim como cada candidato tem o banco que o financia, cada povo também pode ter o banqueiro que merece.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Escrever é preciso, viver não é preciso!

Tarefa árdua a de escrever em tempos tão polarizados como os nossos. No mesmo momento em que qualquer indivíduo, relevante ou anônimo na cena social, afirma publicamente sua posição sobre um determinado tema, aparece imediatamente um outro defendendo veementemente posição diametralmente oposta. Parecemos todos envoltos num Fla-Flu de final de campeonato brasileiro.

O tema candente do momento na cena midiática brasileira é o da descriminalização do aborto. E logo aparece gente que, sem preocupar-se em saber do que trata o projeto, confunde a descriminalização com a liberação do aborto. E outros que vão além e afirmam que o projeto de lei institui a obrigatoriedade do aborto e que, se aprovado, todas as mulheres terão que, forçosamente, arrancar os fetos de seus ventos. E logo se instaura um Gre-Nal dos que são a favor do aborto e dos que são contra o aborto. Calma! Antes de entrar no mérito, perguntemo-nos: por que a suprema ministra do STF colocou em discussão essa temática justamente agora a poucas semanas das eleições presidenciais, estaduais e parlamentares, tanto a nível federal como a estadual? E mais: por que este tema sempre é colocado em questão em véspera de eleições? Será que não dá prá desconfiar? Sou tentado a prever que a atual ministra presidenta do STF não vá colocar em votação a questão antes das eleições e ela vai voltar daqui a quatro anos, justamente nas vésperas das próximas eleições...

Dei-me ao trabalho de assistir a alguns dos pronunciamentos feitos por representantes da sociedade na audiência pública relativa ao tema convocada pelo STF. A grande maioria, tanto no bloco a favor como no bloco contrário à aprovação do projeto de lei, me pareceram muito fundamentadas e sensatas desde o ponto de vista dos proponentes. Não vou aqui discutir o mérito de cada uma, pois não é esta a finalidade que aqui me proponho. O que me impele a escrever, é que, apesar daquelas argumentações sérias e consistentes, nos meios de comunicação tradicionais e nas mídias alternativas, seguia a todo vapor o Ba-guá com os que defendem uma posição demonizando a posição dos outros e, dos dois lados, a grande maioria sem apresentar argumentos a não ser o direito ao aborto e o direito absoluto à vida. Raros foram e são os que apresentam seus argumentos. Das poucas intervenções fundamentadas, a mais sensata me pareceu a de Frei Betto. Ela está disponível na internet. É só dar uma busca e logo aparece. E - pasmem! - malhada por radicais de ambos os lados! É isso que acontece com quem pensa e argumenta com lucidez...

O mesmo aconteceu com outro tema que, não sei por qual razão, de uma hora para outra, saiu das manchetes: a legalização do consumo de maconha. Mesma cena: há argumentos tanto a favor como contra que são solenemente esquecidos nas discussões superficiais promovidas por meios de comunicação mais interessados em aumentar sua audiência do que buscar uma solução para o problema da drogadição e da violência resultante do mercado clandestino de estupefacientes. Chega a ser cômico o esforço feito por emissoras de televisão patrocinadas pela indústria do álcool – uma droga legalizada, mas assim mesmo, sempre uma droga – contra a legalização de outra droga, a maconha. Os industriais e mercadores de cerveja não querem que os industriais e mercadores de maconha disputem com eles o mesmo mercado! Ou então, suspeita terrível se verdadeira for, são os mesmos que querem manter o comércio de uma droga legal e o de outra ilegal. Assim ganham tanto num esquema como em outro.

E agora, para alegria dos flafuzeiros, grenalistas e bagualeiros, estamos entrando na disputa eleitoral. E tudo o que não se quer neste cenário de democracia sequestrada e presa pela República de Curitiba, são argumentos. O campo já está sendo demarcado com linhas de pura emoção. A mensagem que nos passam é de que devemos deixar os neurônios em casa e colocar o fígado e a suprarrenal em campo para que a bílis destile seu verde amargor sobre os adversários! Nada de argumentos. A eleição é só emoção. Nós contra eles. A luta do bem contra o mal. As luzes contra as trevas. O progresso contra o atraso. A ordem contra o caos. A modernidade contra a velharia. E tantas outras formas de maniqueísmo que fariam o velho Santo Agostinho ruborescer!

Como argumentar nestes tempos sem argumentos? Confesso que às vezes tenho vontade de parar de escrever... Será que alguém lê meus textos até o fim ou já, desde a primeira linha, serei classificado como pertencente a esta ou àquela tendência e a leitura interrompida antes de eu poder expor meu primeiro argumento?

Se você chegou até aqui, por favor, faça-me saber! Será para mim um consolo e um estímulo. Será um bálsamos para minha atribulada alma de escritor improvisado. Faça isso, por favor, mesmo que eu tenha decidido que, nestes tempos em que muito se fala e pouco se escuta, é preciso continuar a escrever para que o pensamento não se intimide e morra na escuridão que querem nos impor. Parar de escrever é parar de pensar. E parar de pensar, é morrer. Não quero nem me deixar abortar e nem permitir que me entorpeçam com discursos de trevas e silêncio. A escrita é o trigo que mata a nossa fome de saber. Escrever é preciso, viver não é preciso.