segunda-feira, 26 de agosto de 2019

O peso da comida


Comer é uma necessidade biológica. É o meio pelo qual suprimos os nutrientes necessários ao funcionamento do corpo. Se não comemos, enfraquecemos e, no limite, morremos por desnutrição.

O ser humano, no entanto, na medida em que passou da sua condição animal à condição social, transformou aquilo que era uma necessidade física em uma expressão cultural. Em outras palavras, para os seres humanos, o comer tem um sentido, uma significação que ultrapassa o simples ato de ingerir alimentos.

Analisando o modo como se dá a alimentação nas diversas sociedades, os antropólogos afirmam que em todas elas, desde as mais simples até as mais complexas, o ato de comer é um dos mecanismos fundamentais através dos quais se iniciam e se mantém as relações humanas. E que, quando descobrimos onde, quando e com quem se dá a alimentação, chegamos muito perto de conhecer quase tudo sobre as relações sociais deste grupo humano.

E mais: o modo como se compartilha a comida dentro de um determinado grupo social, desde a família até a escala global, permite delinear o caráter de uma sociedade. Com efeito, compartilhar a comida é uma transação que envolve uma série de obrigações mútuas e dá origem a um complexo interconectado de mutualidade e reciprocidade, tanto no âmbito das relações domésticas quanto no das relações sociais. Não são todas as pessoas que convidamos para almoçar ou jantar em nossa casa. E também somos seletivos quando alguém nos convida para uma refeição em sua casa. Receber alguém para comer ou ir comer na casa de alguém, simboliza fazer parte do mesmo grupo social.

Em todas as cidades, pequenas ou grandes, os restaurantes e as festas onde há comida são distinguidas pelo tipo de pessoas que as frequentam. Cada restaurante e a comida nele oferecida é tipificado segundo a classe social de seus fregueses. E quem vai um tipo de restaurante, dificilmente acessa um lugar “de outro nível”. Se o faz, ou se sente mal ou é mal visto.

Mas não é preciso ser antropólogo para perceber estas realidades ligadas à comida. O “filósofo” Zeca Pagodinho já dizia: o mundo se divide entre aqueles que comem caviar e aqueles que comem arroz, feijão, ovo frito e torresmo. A divisão entre os que comem caviar e o que dele só ouvem falar, é o retrato de um país onde “na mesa de poucos fartura adoidado, mas se olha pro lado, depara com a fome”.

Esse é o país onde os cereais não são mais vistos como “comida” mas como “commodities” e não se pergunta mais quem produz e quem vai comer o trigo, o arroz, o leito, o soja, a carne, mas se pergunta apenas pela cotação de tais produtos na Bolsa de Valores. Nesse mesmo país, quarenta por centos dos alimentos produzidos são desperdiçados enquanto uma parte significativa de sua população ainda passa fome. Isso diz quase tudo sobre o caráter de nossa sociedade...

Jesus não era antropólogo nem cantor. Mas, com certeza, um fino observador da realidade em que lhe tocou viver. Por isso, além de instituir uma refeição como símbolo de sua perene presença na humanidade, chamou a atenção para o modo como são organizadas as refeições. Aconselhou os discípulos a nunca buscarem os primeiros lugares nas refeições, mas a colocarem-se entre os últimos e com eles partilhar a comida.

E os aconselhou também a convidar aqueles que não têm comida para serem comensais em suas casas: “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos.”

Esse é o caminho para construir uma nova sociedade baseada não na capacidade de cada um, mas na graça de Deus e em relações gratuitas com as pessoas. Fazendo isso, as refeições certamente serão mais leves, tanto no seu custo como na sua digestão.
______________________
Inscreva-se em nosso canal no YouTube e receba, antecipadamente, nossos vídeos



segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Quem poderá me salvar?


Todos os que vivemos a infância ou adolescência nas duas últimas décadas do século passado, tivemos o privilégio de conhecer o Chapolin Colorado. Ele deu o nome à serie mexicana que, com mais de duzentos episódios, retratava situações hilariantes de um super-herói sem poderes que, com suas trapalhadas, conseguia salvar pessoas em situação de perigo. O cômico personagem era vivido por Jorge Bolaños, o mesmo da série "O Chaves" e continua sendo reprisado em alguns canais de televisão.

Parodiando os filmes de super-heróis norte-americanos, o Chapolin Colorado aparecia quando alguém, em perigo, gritava a frase: “E agora, quem poderá me salvar?” ou então, “E agora, quem poderá me defender?” ou “E agora, quem poderá me ajudar?”

A série, direcionada ao público infantil, trabalha com a fragilidade e a necessidade de proteção que toda criança tem. Com efeito, a criança vê no adulto, mesmo que sem grandes poderes ou atabalhoado, aquele ou aquela que pode lhe trazer ajuda, proteção, segurança, salvação. Essa é a condição infantil. Quanto alguém se torna adulto e faz positivamente essa transição psicológica, passa a não mais precisar de proteção. Ele sabe e pode resolver as situações difíceis. E mais: é capaz de partir generosamente em auxílio dos mais fragilizados e em risco.

Mas, e do ponto de vista existencial, podemos dizer o mesmo? Tenho minhas dúvidas... Acho que toda pessoa humana, por mais adulta que seja, também precisa sentir-se ajudada e protegida. Na resposta a este sentimento, um papel fundamental é jogado pelas religiões. Elas, efetivamente, suprem esta necessidade. E o fazem de formas variadas. Por isso existem diferentes religiões.

Há religiões que, paradoxalmente, afirmam que o ser humano faz sua própria salvação. Nelas, o fiel toma o lugar do próprio Deus e cria a certeza de que, praticando este ou aquele tipo de ação, garante a sua salvação. Em outras religiões, a salvação é alcançada através da prática ritual. Quando o crente executa o rito de forma perfeita, os deuses se sentem satisfeitos e garantem a salvação àqueles que os buscam. São religiões ritualísticas.

O cristianismo, por sua vez, coloca a ação salvadora totalmente nas mãos de Deus. É ele quem nos salva, seja no momento em que Deus-Pai nos cria já com o desígnio de ternos em sua convivência, na ação redentora de Deus-Espírito e pela presença, em nós e em todas as criaturas, de Deus-Espírito que nos conduz de volta ao seio do Pai. Deus não exige nada em troca. A salvação é graça. O único que Ele pede é que correspondamos a essa gratuidade da salvação sendo graça para aqueles que estão ao nosso lado.

Quando perguntado sobre o número dos salvos, Jesus, olhando ao redor e vendo o contexto de injustiça e indiferença que grassava em Israel, responde: “Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão”. E logo esclarece: a dificuldade em entrar não é por não terem ouvido a pregação ou não dizerem-se adoradores de Deus. A dificuldade de muitos em alcançar a salvação nasce do fato de não terem praticado a justiça para com os empobrecidos e debilitados do povo.

E Jesus acrescenta: haverá multidões vindas do norte, do sul, do leste e do oeste que, mesmo sem nunca terem ouvido falar de Deus e sem professarem qualquer tipo de fé e sem praticarem qualquer tipo de religião, mesmo assim entrarão pela porta estreita pelo fato de terem praticado a justiça.
Os discípulos não contavam com a astúcia de Jesus que continua a afirmar: Que me sigam os bons!
_______________
Siga-nos em nosso canal no YouTube e receba os vídeos em primeira mão:


segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Sobre utopias, distopias e heterotopias


A Modernidade nasceu sob o signo da utopia. A Europa, que durante quase setecentos anos vivera enclausurada, vence o cerco árabe e, singrando Atlântico, Índico e Pacífico, encontra o Novo Mundo que excede a tudo aquilo até então visto. Um mundo exótico que assusta e encanta. Um mundo cheio de riquezas. Especiarias nas Índias Orientais, escravos da África negra, o ouro e prata das Índias Ocidentais.

Com a força de cães, cavalos e canhões, o El Dorado das terras “descobertas” foi transferido para a Europa onde financiou o Renascimento cultural, a Revolução comercial e industrial e os nascentes Estados nacionais. Para os europeus, tudo parecia possível. Thomas Morus, em sua “Utopia”, faz uma crítica da moderna sociedade inglesa e afirma que tudo poderia ser ainda melhor. Igual Tomás de Campanella na “Cidade do Sol” onde as contradições da modernidade são superadas e chega-se à  cidade ideal.

Não durou muito e, aquilo que parecia utópico, se mostrou distópico. Primeiro, nos continentes periféricos onde milhões de pessoas foram sacrificadas na produção e transferir das riquezas para o Velho Continente. Depois, na própria Europa onde a máquina de produzir riqueza para poucos não se importou com a cor da pele das pessoas e os camponeses e operários brancos foram transformados em matéria prima do capitalismo. Jonathan Swift, em suas “Viagens de Gulliver”, descreve as cidades absurdas da modernidade. John Stuart Mill cria a palavra para nomear esta realidade: distopia. Karl Marx, em “O Capital”, destapa as entranhas deste sistema que produz absurdos e chega à exasperação na Primeira e Segunda Guerra Mundial. Absurdo que tem sua versão coletivista nos “gulags” soviéticos, nos campos de reeducação maoísta, nas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki e se atualiza nas guerras da Afeganistão, Iraque, Congo, Iêmen, Síria e nos setenta milhões de homens e mulheres que peregrinam em busca de um lugar para morar e, muitos deles, acabam afogados no Mediterrâneo ou no Rio Grande que, no dizer do Papa Francisco, se transformaram em grandes cemitérios de corpos e esperanças.

Os clássicos “A Máquina do Tempo” de H.G. Wells, “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley e no mais conhecido “1984” de George Orwell e seu famoso “Grande Irmão” refletem, em forma de arte, o mundo distópico que nos ameaça com seu sonho pavorosamente real.

Hoje constatamos que as utopias fracassaram e as distopias nos aterrorizam cada vez mais. Há para elas um alternativa possível? Michel Foucault, já na perspectiva de uma pós-modernidade, criou o termo heterotopia. Com este neologismo ele quer significar aqueles espaços marginais dentro da sociedade onde se pode viver não apenas o contrário da sociedade presente, mas uma antecipação do ideal que sonhamos para cada pessoa e para toda a humanidade. O heterotópico sempre é minoritário e, às vezes, fugaz. Mas indica que um outro mundo é possível e que a humanidade não está condenada à prisão do presente ou ao devaneio de um futuro incerto. É possível viver no presente o futuro.

A esta experiência de heterotopia os cristão chamam de Ressurreição. Ressuscitar não é nascer para outra vida. Ressuscitar é ter esta vida radicalmente transformada pela graça de Deus. Simbolizamos esta vida nova no renascer batismal. E esperamos que ela se complete na morte quando nos encontraremos face a face com Deus na Nova Jerusalém. Entre o batismo e o sábado de Deus, cabe-nos viver no presente como se já estivéssemos no futuro.

Tarefa difícil, pois o mundo nos seduz com sua lógica que parece insuperável. Mas difícil também pela tentação de evadir-nos deste mundo. Alguns conseguem viver esta dupla tensão de forma limitada. Outros conseguem ir mais além. A estes nós os chamamos de “santos” e “santas”. Entre estas últimas, Maria, a Mãe de Jesus. Em toda sua vida, desde a experiência de Deus em Nazaré até o Pentecostes, ela viveu no quotidiano o futuro de Deus. Em seu cântico diante do Anjo, ela lembra a fidelidade de Deus para com seu povo e sua decisão de colocar-se inteiramente a serviço de Seu projeto. Sua fidelidade leva-a ao pé da cruz e à missão guiada pelo Espírito. Viveu tão perfeitamente o futuro de Deus em seu presente, que a Igreja proclamou que ela já vive na plenamente na realidade divina. Não só seu espírito, mas também seu corpo. É a Assunção de Maria.

Na sua pessoalidade, Maria vive a heterotopia do Reino. Ela vive o novo em meio ao velho. E ela não vai sozinha. Junto com Maria de Nazaré vão tantas outras Marias da Graça, Marias de Lourdes, Marias das Dores, Marias das Neves, as Isabeis, Roses, Marieles, Dorothys, Matildes, Martas, Márcias, Joanas, Anas, Terezinhas, Tânias, Anastácias, Nargis... Mulheres testemunhando que não basta a utopia e que não se há de temer as distopias. Elas são a prova de que é possível viver a vida nova aqui e agora. Em amostra antecipada, sim,  mas já ressurreição.
_____________________________
Inscreva-se em nosso canal no YouTube e acesse o vídeo antecipadamente

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O presente do futuro


Que é o tempo? Uma velha pergunta que a humanidade sempre se colocou e que hoje parece em desuso. Vivemos a civilização do instantâneo, do agora, do imediato, onde o que importa é o presente.

Mas, concomitantemente, nos queixamos de que tudo passa muito rápido, que não temos tempo para tudo o que gostaríamos de fazer, que a realidade é fugaz, que tudo flui tão rapidamente e temos a impressão de que não somos nós mesmos o que fomos ontem e o que seremos amanhã ainda não o sabemos. Vivemos o paradoxo da atemporalidade e de um tempo que nos devora. Cabe, pois, voltar a pensar o que significa o tempo.

Ninguém melhor que Santo Agostinho para nos ajudar a pensar esta realidade humana. Na obra “Confissões”, Livro XI, ele se pergunta: “O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; porém, se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” Se ficarmos só nesta frase, parece que o santo africano desistiu de compreender a condição temporal de nossa existência. Mas, em seguida, no mesmo livro, ele nos convida a pensar o tempo não na sequência linear passado-presente-futuro, mas na mistura dos tempos que constitui o âmago da nossa existência: “É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras.”

“Presente das coisas passadas” é aquilo que vivemos e constitui a identidade que carregamos conosco como lastro ou como suporte. “Presente das presentes” é o agora que nos cabe viver e do qual não podemos fugir. Mas o que é “presente das coisas futuras”? Como algo que ainda não aconteceu pode incidir no que somos agora e, por paradoxal que possa parecer, mudar o passado que já se foi?
Se pensarmos bem, isso é mais comum do que reconhecemos. Na linguagem cotidiano, a isso nós chamamos “fé”. Não a fé enquanto conceito intelectual de acreditar no que não pode ser visto ou não pode ser compreendido. Mas a fé enquanto atitude existencial de viver no presente aquilo que sonhamos ser o futuro do ser humano e do mundo.

Quem tem fé em Deus, vive no presente como se já estivesse na presença do Deus que espera ver plenamente na eternidade futura. Se acredita num Deus que é amor, vai viver no presente relações amorosas com as pessoas com as quais convive. Se acredita num Deus de justiça, vai praticar a justiça para com os injustiçados. Se acredita num Deus da vida, vai cuidar das vidas feridas pelas forças da morte. Se acredita num Deus da verdade, vai opor-se a todas as calúnias, mentiras e trapaças semeadas pelos inimigos de Deus.

Essa fé de Abraão, de Isaac, de Jacó e de tantas personagens da tradição bíblica judaica que viveram coerentemente com aquilo que acreditavam ser o desejo de Deus para suas vidas. Essa também é a fé de Jesus que viveu no seu quotidiano aquilo que acreditava ser o projeto do Pai. Com efeito, ter fé significa, acima de tudo, viver no presente aquilo que acreditamos ser o mundo futuro.

Aquele que pratica no presente o contrário daquilo que afirma ser o ideal para o futuro, ou não tem fé, ou é mentiroso. Para enganar os outros, pode apresentar sonhos de futuro mirabolantes que não se concretizam em suas ações no presente. Com isso até é possível que engane alguns incautos. Mas, não passará muito tempo e a sua máscara cairá e todos perceberão que o seu futuro, na verdade, é o retorno do passado de morte e o sonho da sua continuidade num presente sem fim. Mas ninguém vive sem sonhos, sem futuro, sem fé. E os que se deixaram enganar, em pouco tempo, retomarão seus sonhos e sua fé e destruirão o devorador do tempo para que o presente volte a ser futuro e todos possamos voltar a sonhar.
_______________________
Inscreva-se em nosso canal no YouTube e receba em primeira mão os nossos vídeos: