terça-feira, 24 de abril de 2018

Mulheres na Igreja: da suplência à titulariedade

Era o ano de 1944. O mundo ardia sob as chamas e bombas da Segunda Guerra Mundial. Enquanto na Europa a grande batalha se dava entre as forças alemãs e italianas por um lado, e as soviéticas, britânicas, francesas e americanas por outro, na longínqua Ásia, os protagonistas do conflito eram japoneses e chineses. O império japonês, em um rápido e avassalador avanço, já no ano de 1937, havia conquistado todos os territórios do Pacífico e do Índico. A China, sob a liderança de Mao Tsé-Tung, resistia como podia. O caos era generalizado. As cidades de Hong Kong e Macau, ainda sob o domínio britânico e português, tornaram-se lugar de refúgio para milhares de pessoas que fugiam da guerra. A Igreja Anglicana de Hong Kong e Macau, sob a liderança do bispo Robert Hall, buscava, dentro de suas possibilidades, ajudar a foragidos e feridos.
Entre as pessoas destacadas para a missão em Macau, estava Florence Li Tim-Oi. Nascida no enclave português, Florence fez sua formação teológica no Seminário de Cantão e, em 1938, foi para Hong Kong onde, durante dois anos, dedicou-se ao serviço aos refugiados. Em 1940 ela foi enviada por seu bispo para Macau. Seis meses depois retornou a Hong Kong para ser ordenada diaconisa. De volta a seu posto em Macau, continuou servindo à comunidade que vivia um problema inusitado: por causa da guerra, não havia presbíteros para celebrar os sacramentos para a comunidade. As crianças não eram batizadas e não havia Eucaristia para a comunidade. Diante da situação e da demanda da comunidade, o bispo Robert Hall autorizou Florence a administrar os sacramentos à comunidade. E ela o fez, mesmo sem ainda ser ordenada ao presbiterato. Foi só em 2 de janeiro de 1944 que Florence, cruzando os territórios ainda ocupados pelos japoneses, conseguiu encontrar-se com o bispo e receber oficialmente a ordenação presbiteral. Foi a primeira mulher ordenada presbítero na Igreja Anglicana.
Com o fim da guerra e a normalização da vida, a Igreja Anglicana, na Conferência de Lambeth de 1948, decidiu pela invalidade das ordens concedidas a Florence e pela impossibilidade da ordenação de mulheres ao presbiterato. A questão só foi retomada na década de 1960 e, a partir de 1968, em várias partes do mundo, inclusive Hong Kong e Macau, a Igreja Anglicana começou a ordenar mulheres. Em 1971, Florence Li Tim-Oi teve suas ordens reconhecidas.
No Brasil, foi no ano de 1985 que a Igreja Anglicana passou a ordenar mulheres ao presbiterato. Neste fim de semana, no dia 21 de abril, na Catedral Anglicana Santa Maria de Belém do Pará, a Reverenda Cônega Marinez dos Santos Bassotto foi sagrada  bispa da Igreja Anglicana. Ela é a primeira mulher da Igreja Anglicana a receber a Sagração Episcopal na América Latina. Ela foi eleita pelo Concilio Extraordinário da Diocese Anglicana da Amazônia em 20 de janeiro de 2018 e servirá no ministério episcopal da Igreja naquela região.
Marinez é casada com Paulo Antônio Bassotto, com quem tem duas filhas, Laura e Luísa. Ela foi ordenada há 23 anos e, entre outras funções, foi Deã da Catedral Anglicana de Porto Alegre e responsável pela Liturgia e Diaconato na Diocese Meridional.
Para os católicos romanos que, no próximo ano, teremos o Sínodo Extraordinário sobre a Amazônia que discutirá, entre outros temas, a possibilidade da ordenação presbiteral de homens casados para o serviço da Igreja naquela região, a história da Reverenda Florence Li Tim-Oi e da Reverendíssima Marinez dos Santos Bassotto é muito desafiadora. Ela nos mostra como o Espírito Santo vai construindo seus caminhos e conduzindo a sua Igreja em meio às dificuldades da história. E nos mostra que, nos momentos em que parece que todos as estradas se fecham, surgem então novas luzes que, mesmo se num primeiro momento parecem nos cegar com sua claridade, com o tempo se tornam faróis a iluminar novos sendeiros a trilhar.
Nessa perspectiva, é muito significativa a nomeação feita, neste mesmo dia 21 de abril, pelo Papa Francisco, de três mulheres para o Colégio de Consultores da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. São elas a italiana Linda Ghisoni, susbcertária do Dicastério para os Leigos, Família e Vida (Santa Sé), especialista em Direito Canónico; a também italiana Michelina Tenace, professora de Teologia na Universidade Pontifícia Gregoriana, de Roma; e a belga Laetitia Calmeyn, professora de Teologia no Colégio dos Bernardinos, em Paris.
Elas, mulheres e leigas, passam a integrar o seleto e poderoso grupo que, historicamente, só teve homens e clérigos como seus membros e, quando ainda se chamava Santo Ofício da Inquisição, se notabilizou por condenar mulheres à fogueira sob a acusação de bruxaria.
Linda, Michelina e Laetitia vem juntar-se à irmã Carmen Ros Nortes que, em fevereiro deste ano,  foi nomeada pelo Papa Francisco como nova subsecretária da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica (Santa Sé). Em novembro de 2017, o Papa já havia nomeado duas mulheres como subsecretárias do novo Dicastério para os Leigos, Família e Vida (Santa Sé): a já referida Linda Ghisoni e e Gabriella Gambino, professora de Bioética. Desde julho de 2016, a jornalista espanhola Paloma García Ovejero é vice-diretora da Sala de Imprensa da Santa Sé. Entre outros cargos de alto escalão ocupados por mulheres no Vaticano, está Margaret Archer presidindo a Pontifícia Academia de Ciências Sociais e Barbara Jatta sendo a primeira diretora dos Museus Vaticanos desde janeiro de 2017.
São sinais que nos permitem sonhar com uma Igreja onde a diferença de gênero não seja mais vista como um fator de hierarquização, mas como uma possibilidade de mútuo engrandecimento para todos os filhos e filhas de Deus.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Por que os padres não casam?


Para quem trabalha com formação teológica em meio popular, esta pergunta, inevitável e reiteradamente, aparece: por quê os padres não casam?
Normalmente, quando interpelado sobre o tema, não dou uma resposta direta. Respondo quase sempre com uma outra pergunta: “Você iria se confessar com um padre casado?” Ou então, com essa outra pergunta: “Na sua comunidade, um padre casado seria bem aceito?” Diante destas perguntas, as respostas começam a variar… É que a pergunta em abstrato é fácil de responder. Mas quando situada e feita concretamente a alguém ou a alguma comunidade, a coisa começa a mudar de figura.
Com efeito, a manutenção ou a extinção da obrigatoriedade do celibato como condicionante para a ordenação presbiteral e episcopal, não é uma verdade de fé. Se o fosse, a resposta seria fácil: “Deus quer assim e ponto!” O celibato obrigatório foi instituído pela Igreja Católica Apostólica Romana em um determinado contexto histórico em que se fazia necessária um alinhamento absoluto de todo o clero com as determinações da Cúria Romana. Para isso o caminho escolhido foi a criação de um estamento eclesiástico totalmente separado do contato com o mundo. Assim foram criados os seminários onde os meninos, ainda crianças, eram enviados e ali recebiam uma educação, tanto humana como religiosa, totalmente em acordo com as determinações da hierarquia eclesiástica e aprendiam a exercer os ofícios relacionados à ação sacerdotal. Tal modelo foi implementado na sequência do Concílio de Trento (1545-1563) que tinha como objetivo a uniformização do catolicismo tornando-o assim romano.
E antes, como era? O que podemos dizer, de forma sintética, é que antes do Concílio de Trento a formação para o exercício do ministério ordenado na Igreja era muito variada. Não havia seminários para a formação do clero. Para que alguém fosse ordenado, bastava que tivesse algumas noções fundamentais de direito eclesiástico e fosse desenvolto na execução das tarefas litúrgicas. A designação para as funções presbiterais e episcopais dependia da eleição da comunidade ou da determinação por parte das autoridades civis e das autoridades eclesiásticas. E é bom lembrar que as duas autoridades em muitos casos coincidiam na mesma pessoa. O celibato, por sua vez, apesar de recomendado pelas autoridades eclesiásticas desde o século XII, não era uma realidade muito usual. Boa parte do clero era, formal ou informalmente, casada.
Mas por quê trago tudo isso à reflexão nesse momento? É que no próximo ano teremos o Sínodo para Amazônia. E neste Sínodo, uma das questões já em pauta é a possibilidade de ordenação de homens casados. Ou seja, muda-se a pergunta com a qual iniciamos nosso texto. Não se trata de “por quê os padres não casam”, mas de “por quê não ordenar homens casados”?
Digo de antemão que sou totalmente favorável à ordenação de homens casados. Assim como sou favorável à ordenação de mulheres. Não é o celibato ou a pertença ao gênero masculino que faz alguém ser mais ou menos apto para o serviço à comunidade. Homens, mulheres, casados, solteiros… todos têm a possibilidade de serem bons servidores da comunidade no ministério ordenado.
Mas, considero que esta questão tem que ser colocada para toda a comunidade cristã. Todos os católicos romanos - bispos, presbíteros, leigos, leigas, religiosos e religiosas - devem ser consultados sobre a possibilidade e a necessidade de ordenação de homens casados. E não apenas para as distantes regiões da Amazônia. Tanto quanto na Amazônia, nossas comunidades das periferias das grandes cidades e das zonas rurais sofrem com a ausência de um clero que com elas se identifique e conviva nas necessidades e alegrias do quotidiano. Mas é preciso que se construa um consenso eclesial para que estes novos ministros sejam aceitos e não relegados a uma função supletiva e auxiliar enquanto as decisões na Igreja continuariam a ser tomadas por senis machos celibatários.

sábado, 14 de abril de 2018

A história é dialética...

Por que temos um Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos? Porque antes tivemos um Barack Obama... Simples assim. O Trump se elegeu prometendo desfazer tudo o que o Obama tinha feito: o plano de saúde popular conhecido como “Obama Care”; os direitos das minorias sociais, étnicas e sexuais; o tratamento digno para com os migrantes que a própria economia norte-americana necessita; um menor unilatelarismo imperial nas relações internacionais... Quem elegeu Trump? É conhecido até pelas árvores das ruas de Whashington que Trump foi o candidato da “velha indústria” americana – armas, segurança, automóveis e petróleo – que capitalizou os medos da classe média tradicional “wasp” (white, anglo-saxon and protestant) que sentia sua hegemonia sacudida pela emergência de novos sujeitos sociais tão simbolicamente representados pelo casal presidencial Barack e Michelle Obama. E Trump está dando respostas concretas aos que o elegeram. Ele não é louco. Muito antes pelo contrário. Ele tem uma clareza política ímpar e toma as pequenas decisões do dia-a-dia fundamentado neste norte político.
Por que temos um Papa Francisco à frente da Igreja Católica? Porque antes tivemos um Papa João Paulo II e um Papa Bento XVI. Simples assim... O Papa Francisco foi eleito para desfazer muito do que seus predecessores tinham feito à frente da Igreja Católica Romana: uma excessiva preocupação com a verdade dogmática, uma burocracia focada no dinheirismo e devassa do ponto de vista moral, um fechamento às novas realidades contemporâneas, um medo à democracia e ao popular, uma elitização gnóstica e uma liturgia e uma moral de corte pelagianiano... Quem elegeu o Papa Francisco? Até as Colunas de Bernini, mesmo sem nunca terem-se movido do lugar onde estão há cinco séculos, sabem que Francisco Bergoglio foi eleito pela maioria silenciosa dos cardeais que nos últimos 30 anos foram sistematicamente relegados pela Cúria Romana ao ostracismo eclesiástico e viam suas igrejas definharem em meio aos escândalos vaticanos e os novos desafios da realidade. E o Papa Francisco está dando respostas aos que o elegeram. Seus gestos e suas palavras – tanto nos grandes textos das Exortações Apostólicas e nas Encíclicas como nos pequenos textos dos sermões e catequeses – ele apresenta performaticamente um novo rosto da Igreja cuja maior característica é a alegria e a esperança para os que sofrem. Ele não é o anti-papa nem um pastor sem teologia como querem seus detratores. Tudo o que faz e diz é norteado pelo princípio do amor misericordioso pregado e vivido por Jesus.
Por que temos um golpe parlamentar-midiático-jurídico em curso no Brasil? Porque antes tivemos um Lula durante oito anos na Presidência e uma sua sucessora que, reeleita, ameaçava levar adiante o mesmo projeto por mais oito anos. Simples assim... Os governos Lula e Dilma, mesmo em meio a grandes contradições e a uma oposição feroz, estavam fazendo aquilo para o qual foram eleitos: tirar o Brasil do mapa da miséria e da fome através dos programas sociais, abrir as portas das escolas e das universidades às crianças e aos jovens de baixa renda que antes nunca haviam podido alcançar tais níveis de escolarização, criar políticas para o resgate da identidade e afirmação das peculiaridades de negros e quilombolas, fazer com que os direitos humanos básicos fossem acessíveis àqueles e àquelas que sempre tiveram sua humanidade espezinhada, oferecer emprego, casa e saúde digna para a maioria da população, fortalecer a economia nacional e inserir o país, de forma soberana e altiva, no cenário internacional... Quem elegeu Lula e Dilma? Até as emas dos jardins do Palácio da Alvorada sabem que o voto que elegeu Lula e Dilma veio das camadas mais pobres da população do campo e da cidade. E esse voto e as mudanças sociais nele fundamentadas começaram a mudar a cara da sociedade brasileira. E aqueles que governaram durante 500 anos o Brasil sentiram sua hegemonia ameaçada pelos novos sujeitos sociais que se transformavam em sujeitos políticos. E é bom lembrar que a reação não é recente. Começou com o dito “Mensalão” de 2005, passou pela reeleição de 2006, se explicitou nas eleições de 2010 e 2016. Mas como através do caminho democrático - mesmo que a nossa democracia seja apenas formal - as elites dominantes não conseguiram dar cabo do novo projeto em ascensão, foi necessário o golpe parlamentar de 2016 e, agora, em 2018, a joia da coroa, a prisão de Lula.
Onde vamos terminar? Não sei... Ninguém sabe! O que esperamos é que, depois do Trump, haja um Obama II. E depois de Francisco, um Francisco II. E nunca mais tenhamos que temer um Temer II! E muito menos generais e seus séquitos militares a enfeiar a paisagem do Planalto Central. Porque a democracia é um valor básico da convivência social. Sem ela, só resta o caos. E no caos, todos perdem. Inclusive as elites!

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Maria Madalena outra vez no cinema


O que seria do Cristianismo se a liderança feminina de Maria Madalena não tivesse sido sufocada pela liderança masculina de Pedro, Tiago e João e pela misoginia do tardio Apóstolo Paulo? O que seria do Cristianismo se a tradição gnóstica, tão presente nos evangelhos apócrifos redescobertos na segunda metade do século XX, tivesse sobrevivido à ortodoxia imposta pela hierarquia eclesiástica do Norte da África, da Itália e de Constantinopla que buscava acomodar as sempre revoltosas comunidades cristãs à Pax Romana?
Difícil saber e arriscado afirmar algo sobre tal possibilidade. Afinal, a história não trabalha com hipóteses. Ela trabalha com fatos. E o fato é que Maria Madalena, mesmo sendo ela a personagem mais citada pelos evangelhos canônicos nas cenas decisivas da vida de Cristo – Morte e Ressurreição –, sua memória foi apagado dos outros textos do Novo Testamento. Em nenhuma das cartas de Paulo, tanto as autênticas como as deutero-paulinas, seu nome aparece. Tampouco nas cartas dos outros apóstolos. Nem mesmo nas de João e em seu Apocalipse.
Não tardou para que um terceiro passo fosse dado. Do protagonismo nos evangelhos sinóticos ao esquecimento nas cartas apostólicos passou-se, na tradição patrística, à difamação da mulher que mais aparece – até mesmo mais que a mãe de Jesus – nos evangelhos. Pouco a pouco, na literatura patrística, Maria Madalena passou a ser associada à pecadora que, no capítulo sete do Evangelho de Lucas, ungiu os pés de Jesus. E sem que o Evangelho o diga, o Papa Gregório Magno, no ano de 591 d.C., numa homilia proferida em Roma, afirmou que o pecado de Maria Madalena era a prostituição. A autoridade de Gregório sobre a Igreja era tal que sua versão a respeito de Maria Madalena espalhou-se rapidamente pelo Ocidente e passou a fazer parte das verdades tradicionais da Igreja.
A arte comprou tal versão. Basta fazer um passeio pela pintura renascentista e encontraremos dezenas de belas e sedutoras Marias Madalenas aproximando-se de Cristo em busca de arrependimento. Nikos Kazantzakis em “A última tentação de Cristo” trabalha maravilhosamente bem uma possível relação amorosa entre Maria Madalena e Jesus. O mesmo argumento é utilizado por Dan Brown em “O código Da Vinci”. Ambas as obras foram vertidas para o cinema e, por razões distintas que não temos aqui o espaço de discutir, atraíram milhões de pessoas e ajudaram a popularizar a versão de uma relação amorosa entre o Nazarena e a Madalena.
O filme de Garth Davis atualmente em cartaz nos cinemas não vai por esse caminho. Em nenhum momento há qualquer insinuação de uma relação amorosa entre os dois. O único sentimento que entre eles se estabelece é o de afeto fraterno na espera da chegada iminente do Reino de Deus que trará a justiça para os fracos da terra. O peculiar de Maria é que ela, diferentemente dos outros discípulos, entendeu a proposta de Jesus. Enquanto os outros discípulos viviam na expectativa de que Jesus levantasse as multidões contra o jugo do Império Romano, Maria compreendeu que as curas operadas por Jesus e sua proximidade amorosa para com os sofredores já eram esse Reino presente no mundo.
Se Maria tivesse sido substituída nesse papel por qualquer um dos outros discípulos homens, a trama em nada mudaria. Não há, propriamente falando, no filme, uma relação entre Jesus e Maria Madalena. A relação se dá dos dois para com o Reino de Deus. E nessa relação o filme parece se ater à tradicional divisão de trabalho por gênero: Jesus evangeliza os homens e Maria evangeliza as mulheres e as crianças! E mais: Maria é a única mulher entre os discípulos de Jesus. As outras mulheres mencionadas pelos evangelhos, simplesmente estão ausentes da trama... Ponto a menos para qualquer tentativa de reinterpretação feminista dos evangelhos.
Talvez a falta de uma trama mais ardente entre os dois tenha feito com que Rooney Mara e Joaquim Phoenix que interpretam Maria Madalena e Jesus, transmitam um certo ar de apatia, no sentido etimológico do termo. Falta paixão na interpretação. Os dois parecem deixar-se levar pela trama sem contribuir para que a história, em si já conhecida de todos, ganhe em dramaticidade. Por falar em trama, faltou às roteiristas Philippa Gosslett e Helen Edmundsen uma mais acurada pesquisa histórica sobre a Palestina do tempo de Jesus. O modo como é crucificado Jesus, por exemplo, nada tem a ver com o que nos revelaram as últimas pesquisas arqueológicas.
O que tem de bom o filme, então? Um olhar complacente que não considere a pesquisa histórica como acima consideramos, pode alegrar-se com a inclusão de vários personagens negros na história. Pedro, por exemplo, bem representado por Chiwetel Ejiofor, é um deles. Mas podemos ver outros negros entre os discípulos de Jesus. E também entre os soldados romanos.
O que salva o filme são as cenas iniciais e seu relacionamento com os últimos segundos. Maria Madalena, de uma mulher oprimido e controlada pelo pai e pelos irmãos nas cenas iniciais, depois do encontro com o curador de Nazaré, toma as rédeas da vida em suas próprias mãos e, impulsionada pelo encontro com o Ressuscitado, torna-se anunciadora da Boa Nova do Reino. Isso é o essencial que salva o filme. Para tal, não era necessária uma produção de 40 milhões de dólares e 119 minutos de duração. Com muitos menos dinheiro, poder-se-ia ter produzido um curta metragem muito mais apaixonante e contundente mostrando a importância feminina nos inícios do cristianismo e o desafio de incluir as mulheres, hoje, nas estruturas eclesiásticas de poder.
Mas Maria Madalena é sempre um argumento chamativo, ainda mais em tempo de Páscoa e com uma boa promoção no preço da entrada. Aí vale a pena!