sexta-feira, 22 de junho de 2018

VALHA-NOS PLATÃO!

Platão não está entre minhas referências filosóficas. Por motivos que vão deste a metafísica até o estilo de argumentação. Na metafísica, minha discordância é quanto à irrealidade do mundo material em que vivemos. Minha hérnia de disco e meu estômago desmentem Platão! Quanto ao estilo da argumentação, os ditos diálogos platônicos não passam de monólogos com a farsa do ventríloquo que sempre diz ou é levado a dizer o que o mestre quer. Em linguagem futebolística, o parceiro de diálogo de Platão sempre deixa a bola picando para que o filósofo faça o gol. Assim não tem graça... É sempre de goleada que Platão vence as contendas filosóficas em que ele joga dos dois lados.
Mas não por isso menosprezo o pensamento e a obra platônica. Quem sou eu para tal! Foi um grande intelectual que conseguiu apresentar como pretensamente universalizável o modo de pensar da elite dominante da Atenas clássica.
Em sua ampla labuta filosófica, o objetivo era o de chegar à verdade mais estável possível, ao conceito puro que revelasse a essência real deste mundo irreal que se mostra na multiplicidade dos objetivos variáveis. Essa era, para Platão, a tarefa do filósofo.
Sem deixar de perseguir este objetivo, o filósofo da amplitude, para ajudar seus discípulos no caminho das ideias puras, fez uso do artifício das imagens e produziu algumas das alegorias mais famosas da cultura Ocidental. Todos conhecemos, por exemplo, “a alegoria da caverna” onde Platão tenta mostrar a diferença entre a verdade e a ilusão na qual a maioria das pessoas vivem.
Mas há uma alegoria, não tão conhecida como a primeira, através da qual, no Livro VI do A República, o filósofo ateniense argumenta na defesa de que só aos filósofos deveria caber o governo dos Estados. É a “alegoria do navio”. Assim diz Platão:
O tratamento que os Estados dispensam aos homens mais sábios é tão duro que não há ninguém no mundo que sofra outro semelhante e que, para criar uma imagem, aquele que pretende defendê-los é obrigado a reunir os caracteres de múltiplos objetos, à maneira dos pintores que representam animais metade bodes e metade veados e outras misturas do mesmo tipo. Agora imagina que algo semelhante a isto se passa a bordo de um ou de vários navios. O comandante, em compleição e força física, sobrepuja toda a tripulação, mas é um pouco surdo, um pouco míope e possui, em termos de navegação, conhecimentos tão curtos como a sua vista. Os marinheiros disputam o leme entre si; cada um julga que tem direito a ele, apesar de não conhecer a arte e nem poder dizer com que mestre nem quando a aprendeu. Além disso, não a consideram uma arte passível de ser aprendida e, se alguém ousa dizer o contrário, estão prontos a fazê-lo em pedaços. Atormentam o comandante com os seus pedidos e se valem de todos os meios para que ele lhes confie o leme; e se, porventura, não conseguem convencê-lo e outros o conseguem, matam estes ou os lançam ao mar. Em seguida, apoderam-se do comandante, quer adormecendo-o com mandrágora, quer embriagando-o, quer de qualquer outra forma; senhores do navio, apropriam-se então de tudo a que nele existe e, bebendo e festejando, navegam como podem navegar tais indivíduos; além disso, louvam e chamam de bom marinheiro, de ótimo piloto, de mestre na arte náutica, aquele que os ajuda a assumir o comando, usando de persuasão ou de violência em relação ao comandante, e reputam inútil quem quer que não os ajude. Por outro lado, no que concerne ao verdadeiro piloto, nem sequer suspeitam de que deve estudar o tempo, as estações do ano, o céu, os astros, os ventos, se quiser de fato tornar-se capaz de dirigir um navio. Quanto à maneira de comandar, com ou sem a aquiescência desta ou daquela facção da tripulação, não pensam que seja possível aprender isso, pelo estudo ou pela prática, e, ao mesmo tempo, a arte da pilotagem. Não acreditas que nos navios onde acontecem semelhantes cenas o verdadeiro piloto será tratado pelos marinheiros de indivíduo inútil, interessado apenas em observar as estrelas?
Ao ler esta alegoria, retomo minha afirmação inicial de, ao mesmo tempo que discordo, também devo concordar com Platão. Discordo da afirmação do sábio ateniense de que só aos filósofos deveria caber o governo das cidades. Ele mesmo, em suas várias tentativas de influenciar o poder na Sicília, encontrou o fracasso. Afinal, diferentemente do que pensava Platão, o mundo das ideias é o mundo irreal. Principalmente no campo da política. Esta é a arte de governar o mutável das relações humanas. E isso não é para filósofos. Ao menos para os filósofos tal qual os pensava Platão.
Mas a alegoria que ele constrói, por usar os elementos da fluidez do quotidiano, serve muito bem para ilustrar o modo como o Estado, tanto no templo de Platão como hoje, é dirigido. Se tomarmos a atual crise brasileira, parece que Platão tinha razão: os que não conhecem a arte de navegar tomaram o timão e estão conduzindo a nau brasilis para o fundo do abismo. E o pior, como assinala a alegoria, parece que eles não têm o menor interesse em aprender a governar. Simplesmente locupletam-se na posse do timão sem importar-se com o destino do navio, dos tripulantes, dos passageiros e deles próprios. Além de expulsarem o antigo comandante, parece que beberam toda a mandrágora e todo álcool que estava a bordo. Salve-nos Platão deste tipo de governantes!

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Dando voltas na memória


Por uma destas contingências da vida, fiz meu Mestrado em Teologia na Universidade Católica de Lyon, na França.Uma bela Universidade, de não longa tradição se comparada com outras Universidades europeias, mas que foi, durante muito tempo, uma referência no ensino de Teologia.
Situado na Place Carnot, no centro da principal cidade do Vale duRhône, o prédio principal da instituição mantém o seu estilo clássico francês. Nada de inovações arquitetônicas nem de negociações com as sedutoras comodidades da modernidade. Era a pura tradição de uma instituição de ensino que se propunha fiel às tradições da sociedade e do catolicismo gaulês.
Tudo no prédio era original. Portas, janelas, fechaduras, vidros, mesas, cadeiras... remetiam à segunda metade do séc. XIX. Bonito, charmoso, mas incomodo. Sobretudo incômodas eram as mesas e cadeiras, mormente as da biblioteca. Desenhadas para uma época em que a altura média dos franceses não chegava a um metro e sessenta, elas tinham dificuldades em oferecer comodidade – mesmo a um brasileiro! – para quem passou do metro e oitenta. Quem se sentia muito cômodo para trabalhar naquele espaço era o professor Christian Duquoc. Aposentado daquela universidade, o eminente teólogo dominicano era assíduo e pontual em sua presença na bliblioteca. Todos os dias, das duas às cinco da tarde, lá estava ele. Sempre no mesmo lugar. Era seu lugar que ninguém ousava ocupar, nem mesmo antes de que ele chegasse ou depois que ele saísse.
A Biblioteca ostenta como seu patrono um dos grandes nomes da teologia católica do séc. XX: Henri de Lubac. Foi um dos grandes nomes que prepararam e assessoraram a elaboração dos documentos, principalmente eclesiológicos, do Vaticano II. Seu nome era e ainda é citado por aqueles que buscam pensar a renovação da Igreja para que ela possa dar novas respostas aos novos desafios que a realidade exige para o anúncio e o testemunho da Boa Nova.
Já as salas de aula destinadas ao Mestrado em Teologia tinham nomes que para mim não eram nada familiares. As salas Elie Blanc e Joseph Tixeront eram as mais usadas. Enquanto estudante em Lyon, nunca me interessei por saber quem haviam sido aqueles personagens. Mas, como a vida dá voltas, quase vinte anos depois, tive que dar resposta àquelas interrogações que naquele tempo não me coloquei. Em minha pesquisa de doutorado, encontrei a informação de que alguns dos mais destacados capuchinhos franceses que lecionaram no Seminário Madre de Deus de Porto Alegre entre os anos de 1903 e 1913, haviam sido alunos, na Universidade de Lyon, dos professores Elie Blanc e Joseph Tixeront! E lá fui eu buscar informações sobre aqueles dois nomes das salas de aula em que eu havia estudado...
Descobri então que Eli Blanc (1846-1926) foi um eminente representante do neo-tomismofrancês do final do séc. XIX e início do séc. XX. Intelectual de grande envergadura, foi filólogo, filósofo, teólogo, jornalista e político. Distinguiu-se por ensaiar um diálogo entre as ciências e a Teologia cristã e por preocupar-se com a inserção do cristianismo na realidade social. Por sua mentalidade inovadora, teve problemas com as autoridades eclesiásticas de então e teve que retratar-se de suas proposições.
Já seu colega, Joseph Tixeront (1856-2925), foi um religioso sulpiciano, historiador e teólogo. Sua obra mais conhecida é “História dos dogmas na antiguidade cristã”. Publicada em três volumes, entre 1905 e 1912, a obra foi uma das primeiras tentativas, no mundo católico, de estudar criticamente o desenvolvimento da doutrina da Igreja nos primeiros séculos. Em 1913, sob acusação de modernismo, foi obrigado a retratar-se, diante do bispo de Lyon, a respeito de algumas de suas proposições teológicas. Segundo as autoridades eclesiásticas, sua afirmação de que os dogmas mudam para dizer a mesma verdade de fé de modo diferente, colocava em risco a verdade da fé cristã e a estabilidade da Igreja em sua luta contra a modernidade. Em nome da imutabilidade das formulações dogmáticas, Elie Blanc e Joseph Tixeront perderam suas cátedras na Universidade Católica de Lyon.
Anos depois, já em tempos conciliares, a memória de Elie Blanc e Joseph Tixeront foi resgatada, sua obra reabilitada e seus nomes passaram a adornar as salas de aula da Faculdade de Teologia como a dizer que, aquelas condenações do início do séc. XX, haviam sido um erro.
Um dos discípulos dos eminentes mestres franceses, Frei Léandre de Bellevaux, foi professor de Filosofia dos formandos capuchinhos em Flores da Cunha até o ano de 1908 e, de 1908 a 1913, ensinou no Seminário de Porto Alegre. Assim como seus mestres, Frei Léandre também teve problemas com os defensores da imutabilidade do dogma. Em 1913, mesmo ano em que retornou à França, foi formalmente denunciado ao Santo Ofício por questionar elaborações teológicas oriundas do tomismo, então considerado teologia oficial da Igreja.
Em 1915, Frei Léandre estava prestando serviço militar numa unidade de produção química em Lyon e ali morreu em consequência de ferimentos sofridos durante um bombardeio alemão sobre a cidade. Lyon. Mesmo morto o frade, seu processo no Santo Ofício continuou. Foi apenas em 1941, vinte e seis anos depois de sua morte, que o processo contra ele foi arquivado. Afinal, assim como os dogmas demoram a mudar, a mentalidade dos que defendem a letra sem se preocupar com a verdade, também demora a mudar. Feliz ou infelizmente, há feridas que só o tempo cura.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Pobre diabo!

Dentre as muitas surpresas que a dialética da história e o Espírito Santo nos reservam, está o Papa Francisco. Ninguém de nós, em sã consciência, poderia esperar que do Conclave que escolheu o sucessor de Bento XVI surgissem um Papa argentino que assumisse o nome e o espírito de Francisco de Assis. E aí está ele hoje, em seu ainda curto e denso pontificado, assumindo a condição de única inconteste liderança moral da humanidade.
Seus gestos e suas palavras, solenes ou banais, não deixam ninguém indiferente. Há os que são radicalmente contra e os que são radicalmente a favor. A razão disso, penso eu, deve-se a que ele se atém à simplicidade do Evangelho: Deus quer a libertação e a salvação de todos e todas!
Essa é a alegre notícia da qual o Papa quer ser anunciador. Seu documentos magisteriais expressam-na nos títulos: Evangelii Gaudium, Laudato Sì, Amoris Laetitia, Gaudete et Exsultate. E tudo iluminado pela Misericordiae Vultus.
Na última Exortação Apostólica por ele publicada, a Gaudete et Exsultate, Francisco chama a atenção para duas pedras de tropeço dos católicos que buscam a santidade. Segundo ele, são heresias clássicas que, por nascerem da própria condição humana, “continuam a ser de alarmante atualidade”. Trata-se do gnosticismo e do pelagianismo. O primeiro, o gnosticismo, apresenta “uma mente sem Deus e sem carne”. Trata-se de “uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos”. É uma fé individualista, egoísta, que busca a própria satisfação e por isso é incapaz de abrir-se a Deus e ao irmão necessitado.
No outro extremo está o pelagianismo, ou a religião daqueles que creem que podem salvar-se por suas próprias forças. É uma “vontade sem humildade” que esquece que somos justificados unicamente pela graça de Deus.  O moderno pelagianismo, segundo Papa, “manifesta-se na obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial.”
Creio que todos nós, de uma forma ou de outra, nos sentimos exortados à conversão por estas palavras, tanto no agir pessoal enquanto cristãos, como no nosso atuar eclesial e social. Todos trazemos em nós algo de gnóstico ou de pelagiano e, como afirma constantemente o Papa Francisco referindo-se a si mesmo, somos pecadores e necessitamos do perdão e da misericórdia de Deus.
Lendo a Gaudete et Exsultate e suas advertências contra as versões modernas de velhas heresias, veio-me à mente uma outra velha heresia que também foi reciclada pela modernidade e não é abordada pelo Papa. Trata-se do maniqueísmo. De origem pagã, o maniqueísmo foi, nos primeiros séculos, um forte concorrente do cristianismo. Agostinho de Hipona, o grande teólogo do primeiro milênio, durante nove anos militou nas fileiras do maniqueísmo e, ao converter-se ao cristianismo, teve que enfrentar a grande questão que aquela doutrina solucionava com enorme facilidade: unde malum? De onde vem o mal? Por que o mal existe? Por que fazemos o mal?
O maniqueísmo tinha uma resposta fácil: há um deus bom e um deus mau. O primeiro é fonte de tudo o que é bom e o segundo de tudo o que é mau. E o universo também está dividido em duas esferas, a do bem e a do mal. Do mesmo modo a humanidade e cada ser humano.
Mas se afirmamos, como faz o cristianismo, que Deus é um só, que Ele é bom e que tudo foi criado por Ele no amor, a questão se torna mais exigente, como bem o demonstra Santo Agostinho nas “Confissões”: “E, uma vez que Deus, sendo bom, fez todas as coisas boas, donde vem então o mal? Será que, naquilo donde as fez boas as coisas mais pequenas, mas no entanto, tanto o Criador é bom como são boas todas as coisas criadas. Donde vem então o mal? Será que naquilo donde as fez, havia alguma matéria má, e formou-a, e ordenou-a, mas deixou nela qualquer coisa que não teria transformado em bem? E porquê isto? Será que, embora não sendo omnipotente, não tinha poder para transformá-la e mudá-la na totalidade, de modo a que nada de mal restasse? Finalmente, porque é que quis fazer dela alguma coisa e não preferiu fazer, com a mesma omnipotência com que ela não existisse em absoluto?”
Na sua argumentação, tanto nas Confissões como nos outros escritos, o bispo de Hipona refuta a afirmação de que Deus, direta ou indiretamente, seja a fonte do mal. Para Agostinho, tanto pelo caminho da lógica filosófica como o da tradição judaico-cristã, o mal existe por causa do pecado humano, seja o “pecado do mundo” que herdamos de nossos pais seja o pecado resultante de nossas opções pessoais.
Lembro do maniqueísmo ao ver tantos cristãos, católicos inclusive, obcecados pela ideia do demônio. Ao passar por certas igrejas e presenciar certos cultos – missas também! – parece que há uma preocupação maior com o diabo que com Deus. Na televisão então, é atroz! Cultos de cura e libertação, exorcismos, sessões de descarrego e outros aos quais é até difícil dar um nome, afirmam, clara ou sub-repticiamente, que o diabo tem tanto ou mais poder que Deus. E isso é maniqueísmo. Santo Agostinho ficou para trás... Foi vencido pelos novos maniqueus que, dizendo que cultuam a Deus, na verdade prestam culto ao demônio.
Que o diabo, existe, não nego! O Papa Francisco, na Gaudete et Exsultate, ocupa vários parágrafos com a questão. E afirma que o diabo não é um mito, mas uma realidade pessoal. E que, para combatê-lo, não há necessidade de ritos mirabolantes. Basta “a fé que se expressa na oração, a meditação da Palavra de Deus, a celebração da Missa, a adoração eucarística, a Reconciliação sacramental, as obras de caridade, a vida comunitária, o compromisso missionário”. É esse modo de ser cristão que afasta do Maligno e nos mantém firmes em Jesus no caminho do Reino do Pai.
Não coloquemos, pois, toda a culpa no pobre diabo. No inferno, onde ele habita, deve haver suficientes problemas com os quais ele tem que se ocupar. Não criemos mais problemas para ele. Que descanse em paz!