quarta-feira, 4 de julho de 2018

Platão em Cité Soleil

Pela primeira vez na vida sou tentado a concordar com Platão. Aqui, neste lugar pelo menos, pode ser que Platão tenha razão. Esse não é o mundo real. Corrijo: este não pode ser o mundo real. E, no entanto, ele está aqui, bem na minha frente, bem ao meu redor.
São dez horas da manhã. O sol escaldante de quase quarenta graus transforma as úmidas ruas de Porto Príncipe em nuvens de pó que se levantam a cada Tap-Tap que passa repleta de homens e mulheres de todas as idades. O colorido berrante dos 4X4 adaptadas para o transporte público contrasta com o rosto sombrio da maioria de seus passageiros. Na longa e ampla avenida que separa a Zona Portuária do aglomerado de Cité Soleil, a cada cinquenta ou cem metros, um pequeno grupo de pessoas se aglomera em torno a um pastor que chama à conversão e à prosperidade em Jesus. Ao lado dos prédios das igrejas com as denominações as mais chamativas possível, pequenos quiosques que vendem loterias que prometem fazer milionários.
Vou numa camionete com Padre Renato para uma missa na comunidade da Missão Belém. Padre Renato é catarinense. Há quase dez anos deixou sua terra e sua diocese e veio se juntar à missão capuchinha no Haiti. Morou um tempo na região sul da ilha e agora está na capital. Fala perfeitamente o francês e o créole, a língua falada por toda a população. No fim da avenida dobramos à direita por uma estreita rua. À esquerda, uma grande planície de lama, lixo e plástico. Sobre os monturos que se formam pela força da água e do vento, porcos, vacas e crianças. Cada um buscando algo para sobreviver. Cortando a planície, uma grande vala que faz às vezes de rio. Quando chove na parte alta da cidade, a água desce transportando toneladas e toneladas de lixo orgânico e inorgânico de toda espécie. Tudo deságua na Bahia de Porto Príncipe.
Às vezes, no entanto, a combinação de assoreamento, vento e maré alta, faz com que o fluxo se inverta e um mar de lixo transborda sobre Cité Soleil. Ela está à minha direita. Um aglomerado sem fim de pequenas casas em quarteirões geometricamente dispostos. No interior dos quarteirões, pequenas ruelas permitem o acesso às casas que ocupam todos os espaços possíveis. Há casas de blocos de cimento, de lata, de telhas de zinco, de papelão e de tecido. Nas ruas, crianças, crianças e mais crianças... Junto delas, muitas mulheres. Homens, parecem aqui seres invisíveis.
Chegamos à Missão Belém. Ali nos esperam três irmãos e duas irmãs da comunidade de vida que iniciou em São Paulo acolhendo moradores de rua. Em 2010, após o terremoto que destruiu Porto Príncipe e deixou em torno de 300.000 mortos, um grupo desses irmãos e irmãs para aqui se deslocaram e iniciaram seus trabalhos. Além da escola para 1.400 crianças, garantem uma refeição diária – que para a maioria é a única – e assistência médica básica para as crianças e suas mães. Recursos para isso? O trabalho dos cinco voluntários que aqui estão e a colaboração de brasileiros e italianos que, movidos pela fé, tentam fazer algo em favor desta população.
A missa, animada ao som do atabaque, se prolonga por hora e meia. Padre Renato flui belamente em créole. Acompanho adivinhando através da sonoridade as aproximações com a língua francesa. Ao meu lado no banco, três meninos que dividem sua atenção entre as palavras do padre, o som do atabaque e a minha pele branca. No final, a convite do Coordenador da Missão, faço uma pequena saudação em meu esforçado francês.
Ao fim da missa, sem pressa, as mães partem acompanhadas por seus filhos. O galpão vai ficando vazio. Nos despedimos dos irmãos e irmãs da Missão Belém e retomamos o caminho de casa. À direita, a grande planície de lixo, lama e plástico. À esquerda, o mar de casas de Cité Soleil. Será esse o mundo real? Não sei. Tampouco vou perguntar a Platão. Ele nunca esteve aqui...
Mas o que, tenho certeza, é real, são os três meninos que estiveram a meu lado durante a missa, a centena de mulheres e crianças que rezaram e cantaram ao som dos tambores e a presença de Padre Renato e dos irmãos e irmãs da Missão Belém. Tudo isso é muito real num mundo que nos quer fazer crer no irreal.

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